Reportagens

A terra prometida

A morte de Dorothy Stang é um caso clássico do que acontece na Amazônia quando desmatamento e desordem fundiária dividem o espaço onde deveria estar o Estado.

Carolina Elia ·
18 de fevereiro de 2005 · 20 anos atrás

A freira americana Dorothy Stang foi mais uma vítima da violência provocada por desmatamentos e conflitos por terra na Amazônia. Sem políticas públicas claras para organizar a desordem fundiária na região, criou-se espaço para o poder de fogo definir quem é o dono das terras e como elas devem ser utilizadas.

O objetivo de Dorothy era criar dois Projetos de Desenvolvimento Sustentável em Anapu. Um em cada lado da Transamazônica, que corta o município paraense. Esses PDS, como são conhecidos, são um tipo de assentamento criado pelo Incra para áreas de mata primária. O objetivo seria usá-los para ordenar o espaço antes da chegada dos grileiros. Juntos, os dois PDS somariam quase 100 mil hectares e seriam ocupados por cerca de 600 famílias. Dentro deles se poderia fazer agricultura de subsistência e explorar os recurso da floresta de forma controlada. Para garantir o equilíbrio, cada um teria um plano de manejo que definiria áreas para corredores ecológicos, áreas de proteção permanente e terras para atividades agro-pastoris. Mas a bagunça da região não permitiu a concretização da idéia.

Todo projeto ligado ao Incra só pode ser estabelecido em terras públicas, mas depois de 20 anos de omissão do Instituto na região todo mundo tem argumentos para afirmar que é dono da fatia ocupada. As terras em Anapu foram distribuídas no fim da década de 70 a fazendeiros pela Sudam e a pequenos agricultores pelo Incra. Os colonizadores receberam licença para explorar as terras depois de apresentarem um projeto de uso, que deveria ser implantado em 5 anos. Caso não fosse, o governo poderia reaver as terras. Passado esse prazo, o Incra não fez a vistoria devida e só foi realizá-la em 2001. A história foi relatada pelo próprio chefe da unidade avançada do Instituto na região, Bruno Kempner, que a concluiu com um desfecho pouco surpreendente: em 98% dos casos os proprietários não cumpriram o plano acordado e muitos repassaram as terras para terceiros, o que era proibido pelo contrato.

Teoricamente, a quebra do compromisso daria direito ao Incra de retomar as terras sem ser necessário pagar indenizações, mas um juiz de Marabá interpretou ao contrário e concedeu liminar favorável aos posseiros. Resultado: a área destinada à criação das duas PDS da irmã Dorothy, Esperança e Viola do Jatobá, foi retalhada em terras públicas e privadas. Nas da União foram criados quatro PDS que ocupam no total 62 mil hectares e abrigam 250 famílias. Todos estão cercados por propriedades particulares onde os técnicos do Incra são impedidos de pisar. “ Eles chegam nas fazendas e sofrem as mesmas ameaças que os agricultores. Ainda escutam que ali o Incra não manda”, disse Bruno Kempner.

A criação dos quatro PDS em 2002 desencadeou uma onda de violência na região. Em 28 de novembro do mesmo ano, a prefeitura de Anapu, junto com a Câmara dos Vereadores e o Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais enviou um ofício ao INCRA, à Procuradoria da República, à Policia Federal e à Secretaria Executiva de Segurança Pública denunciando abusos. Nele, dizia-se que, “depois da publicação de criação dos referidos projetos [PDS Anapu], pessoas que se diziam donas dos lotes envolvidos se armaram e passaram a fazer ameaças de morte aos trabalhadores lá residentes. Jagunços armados e encapuzados estão invadindo as casas dos colonos, queimando-as, arrancando as lavouras, furando as panelas com balas e botando as famílias para correr.” O documento ainda ressalta o aumento de derrubadas e extração de madeira ilegal na região.

Um estudo feito pelos pesquisadores do Instituto de Economia da UFRJ, André Albuquerque Sant’Anna e Carlos Eduardo Young , mostra que existe uma relação direta entre desmatamento e violência no campo. Os dois são frutos de direitos de propriedades mal definidos e exclusão de acesso a terra. Em muitos casos, os posseiros derrubam as matas para plantar grama e justificarem o uso do solo. Segundo o advogado Girolamo Treccani, que acompanhou Dorothy em várias brigas judiciais, o fazendeiro suspeito de ser o mandante do crime vinha realizando desmatamentos ilegais para plantar capim.

Ele conta que Dorothy foi a primeira pessoa a se convencer da inviabilidade de realizar assentamentos tradicionais naquela região e da necessidade de se preservar a floresta. Aos poucos, ela conseguiu não só defender a idéia junto ao Incra como promover uma mobilização social a favor da criação da Reserva Extrativista do Bacajá na região. Essa reserva nunca saiu do papel e recentemente a freira já teria se convencido de que seria necessário abandonar o projeto.“ A quantidade de agricultores familiares alojados na área destinada à reserva a tornaram inviável”, diz Bruno.

Mas Dorothy não desistiu de criar os dois grandes PDS e vinha pressionando o Incra, com sucesso, a desapropriar as terras. O instituto retomou o processo no começo deste ano, o que deixou os proprietários em posição de ataque. “Eles viram que não teria mais jeito”, conta o chefe da unidade avançada do Incra.

A freira americana de 73 anos, naturalizada brasileira, foi morta quando seguia a pé por uma estrada de terra do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança, a 20 quilômetros da cidade de Anapu. Ela se reuniu com produtores rurais para conversar sobre as denúncias de violência, ameaças de morte e os casos de invasões coordenadas por grupos de pistoleiros interessados na posse das terras. Após o encontro, iria redigir um documento para encaminhar ao Ministro de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, com quem esteve na semana passada denunciando as ameaças de morte sofridas por ela e outros aliados.

Segundo duas testemunhas que a acompanhavam na hora da emboscada, e que estão sob proteção policial, a irmã foi abordada por dois homens quando caminhava em direção ao seu carro. Ouviu deles ameaças, mas continuou andando. Os assassinos então abriram fogo. O primeiro tiro a atingir Stang acertou seu peito. O segundo pegou a cabeça. O último foi desferido nas suas costas.

“Dorothy queria que os Projetos de Desenvolvimento Sustentável fossem implantados exatamente como tinham sido concebidos por ela. Com a diminuição e divisão da área originalmente prevista, metas importantes, como os corredores ecológicos, não puderam ser implantadas”, disse Bruno, que conhecia a freira desde 1987. Agora, ele vai aproveitar a presença de 2 mil soldados enviados pelo Governo Federal à região depois do crime para tentar, mais uma vez, desapropriar as terras desejadas por Dorothy.

*Colaborou Milena del Rio do Valle.

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