Há 26 anos, um singelo boto-cor-de-rosa (Inia geoffrensis) se aproximava das margens da casa da ribeirinha Marilda Medeiros, uma plataforma flutuante sobre o rio Negro, em Novo Airão, no interior do Amazonas (AM) – região que mais tarde faria parte do Parque Nacional (Parna) de Anavilhanas. A filha dela, Marisa Granjeiro, era criança, mas ainda hoje se lembra daquele dia.
“Ao invés da gente espantar, maltratar, matar, a gente fez o contrário”, conta ela a ((o))eco, hoje com 34 anos. “As pessoas acreditavam muito na lenda que ele encantava, matava, engravidava”. Para mudar aquela mentalidade, Marisa, a mãe e a irmã, Monik Granjeiro Almeida, se esforçaram para convencer a população de que o animal não era outra coisa senão um amigo, um guardião da comunidade.
O trabalho não apenas deu certo como se tornou uma iniciativa pioneira, que passou a figurar como um dos principais atrativos turísticos do Parna de Anavilhanas, quando este foi criado em 2008.
“O ICMBio elaborou o manejo de turismo e começou-se a ter regras para melhoria do local e, principalmente, para segurança e bem estar do animal”, conta Marisa, atualmente técnica ambiental credenciada pela autarquia junto com a mãe e a irmã como responsáveis pelo projeto “Flutuante dos Botos”, que desempenha o turismo de interação com botos-cor-de-rosa no Parna de Anavilhanas.
Quase 27 anos depois daquele primeiro contato, “Curumim”, como foi apelidado aquele primeiro boto que visitou a família, foi novamente vítima da violência que há anos se luta para combater em Novo Airão (AM) – e também em outras regiões da Amazônia. No dia 18 deste mês, ele foi encontrado com um arpão alojado no olho direito ao retornar ao Parna – os cetáceos têm livre circulação para sair e entrar na unidade de conservação pelo rio Negro.
“Ele apareceu lá, pedindo socorro, com dor”, lamenta a técnica ambiental, que viu o animal. “Conheço o Curumim desde os 8 anos de idade. Ele frequenta o Flutuante dos Botos (no Parna de Anavilhanas) há 26 anos, vai fazer 27. Tem animais que vão lá há 20 anos, outros há 8, outros há 4, há 10 meses, tem uma variação de tempo entre eles. Mas o mais antigo, o mais veterano, é o Curumim, foi com ele que começou essa interação”, conta Marisa.
Esta não é a primeira vez que Curumim é ferido por um arpão. Há 24 anos, o cetáceo foi ferido da mesma forma, mas no bico, também chamado de rostro. Monik, irmã de Marisa, conta a ((o))eco que até o momento não se sabe quem pode ter ferido o animal. “Tem os igarapés que não são considerados parque, entrou nos igarapés já não é mais parque”, explica.
À mídia local, a Superintendência do Ibama no Amazonas (Supes/AM) disse que o boto pode ter sido vítima de caça ilegal. “Pelas características, ele foi arpoado no olho provavelmente por uma zagaia e esse tipo de método me diz que ele foi alvo da procura de caçadores”, afirmou Joel Bentes Araújo Filho, superintendente da Supes/AM, à Revista Cenarium.
A busca por Curumim
Quando foi visto ferido no Parna, o boto fugiu antes que pudesse ser capturado e resgatado – o que envolve uma operação de retirada do animal do rio e, em seguida, a realização de uma mini cirurgia de remoção do arpão. Com outros servidores do ICMBio, a família de Marisa, que também tem contado com o apoio da prefeitura de Novo Airão (AM), passou, então, a procurá-lo. “Geralmente, ele anda sempre só”, conta a técnica ambiental.
Dois dias depois, no dia 20, Curumim foi encontrado por uma amiga de Marisa já na comunidade ribeirinha de Santo Antônio, que fica distante cerca de 40 km do Parna de Anavilhanas. “Com o ICMBio, uma veterinária, fomos lá tentar capturar ele. Passamos a tarde toda tentando, mas não conseguimos”, conta a técnica ambiental.
Por conta da dificuldade imposta pela morfologia da região, os profissionais não tiveram como puxar o boto para fora da água. “Lá é cheio de toco, de árvore e não tinha como puxar no arrastão. A ideia é puxar, cercar ele, levar para a praia para fazer os procedimentos lá mesmo”, relata Marisa.
Para esse procedimento, o ideal seria que Curumim tivesse retornado ao Parna de Anavilhanas, porque a mini cirurgia envolveria anestesia, monitoramento pós operatório e acompanhamento do animal. “Lá é uma área mais limpa para isso”, explica a técnica ambiental. “Essa é a ideia inicial, que não deu pra ser executada”.
Durante o tempo que esteve na comunidade, o boto foi examinado por uma veterinária que acompanhava a equipe do ICMBio, conta Marisa. Até aquele dia 20, diz ela, o cetáceo respondia a todos os comandos, se alimentava normalmente e, aparentemente, também nadava com tranquilidade, mesmo perfurado pelo arpão. “Graças a deus não foi no cérebro, se não provavelmente ele teria morrido na hora”, conta.
Quando falou à reportagem na última quarta-feira (24), Marisa disse que, muito provavelmente, Curumim ainda atravessaria aquela semana com o arpão no olho até que uma nova operação de resgate fosse realizada. E foi o que aconteceu.
Situação ainda estável
Atualmente, o boto continua circulando na região da comunidade Santo Antônio, e, pelo menos até esta segunda-feira (29), não tinha retornado ao Parna de Anavilhanas. “Bem ele não está, porque ele ainda está com o arpão, mas ele está estável”, atualizou a irmã de Marisa à reportagem sobre a situação de Curumim.
Lá, enquanto aguarda a chegada de uma equipe maior do ICMBio – e mais preparada para este tipo de situação –, o boto tem recebido os cuidados de Marisa, que ficou na comunidade para monitorá-lo.
Como a internet é instável na comunidade onde está a irmã, Monik, que tem permanecido no Parna de Anavilhanas para caso o cetáceo retorne à UC, tem atuado como uma ponte entre Marisa e os profissionais do ICMBio – repassando as informações recebidas por ela –, que, por sua vez, a direcionam sobre como deve se dar a atenção médica ao boto.
“Todo dia eu mando vídeos e fotos [para eles] e falo como ele está. Os veterinários, infelizmente, não podem estar todo dia aqui”, diz Monik. “O Curumim está sendo acompanhado pela minha irmã, que está dando os medicamentos [receitados], mas ele está sendo acompanhado também por eles [ICMBio]. Tudo que acontece a gente passa para os veterinários que não podem estar diretamente na comunidade”, explica.
Força tarefa de ribeirinhos
Na comunidade Santo Antônio, Marisa tem ficado hospedada na casa de ribeirinhos, que, compadecidos com a situação, também tentam salvar Curumim da forma como podem.
“A comunidade está ajudando não só com a hospedagem, mas também os pescadores de lá sempre dão peixes pra minha irmã. As crianças da comunidade também estão pescando para dar para o Curumim”, conta Monik ao explicar que, por conta da situação que se encontra, o boto não tem conseguido praticar a caça.
A ((o))eco, ela diz acreditar que, pelo que tudo indica, nesta terça-feira (30) uma equipe maior de profissionais do ICMBio devem chegar até a comunidade. “[Com isso], a gente vai conseguir fazer a devida captura, com uma quantidade de pessoas maior, com equipamentos mais adequados, justamente para que o animal sofra bem menos. Quanto menos ele sofrer melhor […] precisa de todo um preparo pra isso”.
“São 26 anos a gente defendendo ele de pessoas que só matavam, maltratavam. A gente vai continuar tentando fazer a operação para tirar o arpão, medicar e ele conseguir sair dessa”, acrescenta Marisa.
Corrida contra o tempo
Para um animal ferido, a espera por uma cirurgia se torna uma corrida contra o tempo. E para Curumim, desde que foi visto ferido pela primeira vez até esta segunda, essa corrida já dura 11 dias. A ((o))eco, o ICMBio disse que todos os esforços estão sendo reunidos para que o procedimento seja feito com máxima urgência.
“É importante destacar que o boto está recebendo todos os cuidados necessários, e a cirurgia é prioridade”, disse o órgão ambiental, em nota encaminhada à reportagem nesta segunda, ao destacar que o procedimento exige uma estrutura adequada que garanta a segurança do manejo e a saúde de Curumim. O ICMBio ainda reafirmou que iniciou força tarefa para garantir a integridade do animal desde que foi comunicado sobre o episódio.
“Os primeiros cuidados foram adotados pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade Amazônica (Cepam) em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), que disponibilizou uma equipe de veterinários para realizar medicações contra possíveis infecções”, acrescentou na nota.
Enquanto o cetáceo permanece sob cuidados na comunidade Santo Antônio, o ICMBio afirmou que “a cirurgia de retirada do arpão deve ocorrer nos próximos dias com o apoio de especialistas”. O órgão não informou uma previsão para a realização do procedimento.
“O ICMBio continua envidando esforços para subsidiar o trabalho dos pesquisadores e especialistas parceiros, a fim de que o animal tenha sua saúde recuperada o mais breve possível”, finalizou.
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