Reportagens

Bolsonaro cria Fundo de multas ambientais com potencial bilionário para que Salles gerencie sob critérios próprios

Medida é mais um passo na reformulação do modo como multas ambientais são aplicadas e cobradas no país, uma demanda do setor ruralista e grandes infratores

Cristiane Prizibisczki ·
28 de outubro de 2019 · 4 anos atrás
Governo muda as regras como as infrações ambientais são cobradas e destinadas. Acima, Ricardo Salles e Jair Bolsonaro. Foto: Marcos Corrêa/PR.

Enquanto o Brasil assistia estarrecido à chegada das manchas de óleo a Maragogi e outros prontos da maior unidade federal de conservação marinha do Brasil, a APA Costa do Corais, entre os dias 17 e 18 de outubro, o governo enviava ao Congresso a Medida Provisória 900/2019, que trata da conversão de multas ambientais e muda, drasticamente, as regras como as infrações serão cobradas e destinadas no país.

Em linhas gerais, a MP autoriza o governo a criar um “fundo privado” para operar o dinheiro da conversão de multas e dá autonomia total ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para definir como serão usados esses recursos, que podem chegar a 15 bilhões, considerando o passivo de multas não pagas acumuladas nos órgãos ambientais. O valor é 25 vezes maior do que o orçamento divulgado pelo governo para a todo o Ministério do Meio Ambiente para 2020 – R$ 561,6 milhões.

A MP 900/2019 foi criada como mais um passo na reformulação do modo como as multas ambientais são aplicadas e cobradas no país, que já havia sido modificado grandemente com a publicação do Decreto 9.760, de 11 de abril de 2019, que, dentre outras mudanças, criou os “núcleos de conciliação” e suspendeu a conversão indireta de multas. .

Segundo a justificativa do Ministério do Meio Ambiente, as mudanças são necessárias para sanar o “crescente descontentamento com a dinâmica atual do processo sancionatório ambiental” por alguns segmentos da sociedade – leia-se, infratores ambientais. Para especialistas, a forma como o processo está sendo conduzido carece de transparência e critérios técnicos e representa um desmonte das estruturas e normas construídas ao longo dos últimos anos.

Conversão indireta

O Ibama aplica, por ano, cerca de 16 mil autos de infração que somam, em média R$ 3,7 bilhões em multas ambientais, segundo levantamento realizado em abril de 2019 pela Controladoria Geral da União (CGU). Por diversos fatores, o percentual de pagamento dessas infrações é historicamente muito baixo, em torno de 20%, sendo que a maior parte das multas pagas tem valores baixos, em média R$ 11 mil, o que representa, na soma final, menos de 5% do total de multas lavradas. Multas altas, de grandes infratores, não são pagas, em geral.

Decreto de conversão de multas indiretas foi assinado em 2017 pelo então presidente Temer. Foto: Gilberto Soares/MMA.

Como alternativa ao pagamento de multas, a lei nº 9.605/1998, chamada “Lei de crimes ambientais”, já previa a conversão de multas em serviços e ações de proteção ao meio ambiente. Esta prática chegou a ser aplicada pelo Ibama por vários anos, mas acabou suspensa em 2012. Segundo Suely Vaz de Araújo, doutora em Ciência Política que presidiu o Ibama entre junho de 2016 e janeiro de 2019, durante o governo de Michel Temer (MDB), essa suspensão se deu porque os projetos eram muito pulverizados pelo país e definidos sem critérios balizadores, dificultando o ganho ambiental em escala e a fiscalização por parte do Ibama. 

“Não existia um regramento. Às vezes um superintendente dizia [ao autuado]: ‘recupera mata ciliar’, ‘paga curso para o Ibama’.  Não que esses tipos de conversões fossem ilegais, mas não tinha um regramento do que era prioritário”, explica.

Para resolver o problema, Suely e sua equipe formularam o Decreto 9.179/2017, que criou a chamada conversão indireta de multas ambientais. A ideia era canalizar uma enorme quantidade de recursos das multas em projetos de grande escala, voltados principalmente para as prioridades do Brasil a partir do Acordo de Paris e da Convenção da Diversidade Biológica. “Sem extinguir a modalidade direta, em que o próprio infrator realiza o serviço, criamos uma modalidade em que o autuado opta por ficar responsável por uma cota de projetos maiores e estruturantes, recebendo um desconto de 60% no valor da sanção”, explica a ex-presidente do Ibama. 

Ao considerar os números de demonstração de interesse por parte de infratores ao novo modelo e de projetos interessados em participar do chamamento público para receber recursos na primeira etapa, técnicos e especialistas no assunto consideraram a experiência bem-sucedida. Tudo parecia correr bem, até o novo governo assumir.

Tudo indo bem, até chegar Bolsonaro

Mesmo antes de chegar à presidência, Bolsonaro já havia encarregado o então futuro ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de acabar com a “indústria da multa” e reduzir, assim, a pressão que vinha sofrendo do setor ruralista. Soma-se a este cenário o discurso “anti-ONG”, que sempre esteve muito claro no discurso de Bolsonaro. 

Decreto publicado em abril cria mais uma instância para o infrator ambiental se defender. Foto: Ibama.

Com o Decreto 9.760, de 11 de abril de 2019, o governo tentou resolver esses dois “problemas” de uma só vez: criou os “núcleos de conciliação” – que, na prática, funcionam como mais uma instância para o infrator recorrer – e suspendeu a conversão indireta de multas. Esse tipo de conversão não foi extinto, mas está suspenso, já que o decreto suprimiu regras de como essa modalidade passará a ser operacionalizada, remetendo o tema a regulação futura.

A expectativa do MMA era que os “Núcleos de Conciliação” começassem a funcionar ainda em outubro, então, o governo se apressou em publicar a Medida Provisória 900, para criação de um fundo para recebimento desses recursos bilionários de multas – a estimativa é que o passivo de multas é de cerca de R$ 38 bilhões, considerando desconto de 60%, o fundo tem potencial de recebimento de R$ 15 bilhões.

Mas, ao contrário da norma da conversão indireta de multas, de 2017, a MP carece de critérios e transparência em, ao menos, três aspectos:

1. Gestão dos fundos 

Pelas normas em vigor até o início deste ano, os recursos das infrações entravam diretamente em uma “conta garantia” na Caixa Econômica Federal no nome do projeto, com valores depositados em etapas, à luz do cumprimento de metas. “Não entra nem um tostão para o órgão público, e nem deve entrar, no meu entendimento”, defende Suely Araújo. 

No caso da MP 900/2019, o texto diz apenas que “fica a União, por intermédio do Ministério do Meio Ambiente, autorizada a contratar instituição financeira oficial, dispensada a licitação, para criar e gerir fundo privado com o objetivo de receber os recursos decorrentes da conversão de multa”. Isto é, o dinheiro vai para um “fundo privado”, num “banco oficial” contratado sem licitação. 

2. Destinação dos recursos

Na norma anterior, os projetos a serem contemplados com recursos eram selecionados por uma Câmara Consultiva Nacional, formada por representantes da sociedade civil, setor empresarial, Ibama e outros órgãos públicos. A partir da decisão da Câmara Consultiva, Ibama ou ICMBio abrem chamamento público para projetos interessados, de forma transparente e pública.

Já a MP 900 diz somente que “as diretrizes de gestão e destinação dos recursos e as definições quanto aos serviços a serem executados serão estabelecidas em ato do Ministro de Estado do Meio Ambiente”

Já a MP 900 diz somente que “as diretrizes de gestão e destinação dos recursos e as definições quanto aos serviços a serem executados serão estabelecidas em ato do Ministro de Estado do Meio Ambiente”, ou seja, Salles vai decidir onde e como o dinheiro será aplicado.

“Esse dinheiro não pode se confundir com dinheiro orçamentário, ele é dinheiro a mais, para coisas importantes, como cumprir a meta de recuperação de 12 milhões de hectares prevista no documento brasileiro relacionado ao Acordo de Paris. Ele não deve ser usado para combater incêndios, para licenciamento ambiental ou compra de equipamentos”, diz a ex-presidente do Ibama. 

A preocupação está relacionada, além da falta de critérios da MP, ao fato de que o Artigo 140, Incisos VII e VIII, do Decreto 9.760 prevê que os recursos de multas podem ser convertidos, respectivamente, em “promoção da regularização fundiária de Unidades de Conservação” e “Saneamento Básico”, entre outros. Isto é, multa por desmatamento de floresta primária sendo usado para indenizar proprietários rurais e para realizar obras.

3. Educação ambiental

Outro aspecto importante da conversão indireta que foi excluído com a MP 900 é o educativo. Na norma anterior, a “obrigação de pagar” era transformada em uma “obrigação de fazer”. Isto é, o autuado, ao pagar a multa com desconto de 60%, tinha a obrigação de acompanhar, junto com o Ibama, a execução do projeto beneficiado, a fim de garantir que haveria ganho ambiental para, assim, se livrar do passivo, nos moldes como hoje são feitos os Termos de Ajustamento de Conduta do Ministério Público Federal, por exemplo.

“No modelo atual, está escrito bem claro no artigo 3º da MP: é pagou, acabou. Qual o problema que vai gerar questionamento jurídico? O autuado não está fazendo nada. O fazer, nem que seja monitorar junto com o Ibama, esse monitoramento tem um caráter educativo proposital”, defende a ex-presidente do Ibama.

Projetos no limbo

Após a publicação da instrução Normativa que regulamentou a conversão indireta de multas, em fevereiro de 2018, a equipe do Ibama contabilizou mais de 12 mil pedidos de adesões ao programa ao longo de aproximadamente um ano. Os autuados que se manifestaram somavam cerca de R$ 2,6 bilhões em multas. Considerando os 60% de desconto concedido, as adesões significavam R$ 1,1 bilhão, que já poderiam ser utilizadas em janeiro de 2019. O valor é três vezes maior que o orçamento discricionário do Ibama. 

A Bacia Hidrográfica do Rio Taquari, que nasce em Mato Grosso e vai desaguando até o estado de Mato Grosso do Sul, seria alvo do ° Chamamento Público do Programa de Conversão de Multas do Ibama. O rio Taquari sofre processo de assoreamento devido ao aumento da atividade agropecuária na região desde a década de 70.  Foto: Ubirajara Pires/Ibama.

No primeiro chamamento público, foram selecionados 34 projetos, 14 deles na bacia do rio São Francisco e 20 no Baixo Parnaíba. Os projetos no São Francisco são relacionados a recuperação de vegetação em áreas de recargas de aquíferos de 10 sub bacias, que respondem a 70% da vazão do Velho Chico na calha principal. Os projetos no Baixo Parnaíba estão ligados a recuperação de áreas degradadas e fomento à produção em pequenas propriedades rurais no semi-árido, em uma região de baixíssima renda. 

A lista dos selecionados foi divulgada no final de dezembro 2018, mas, segundo apurou ((o))eco, até agora o chamamento aguarda um ato administrativo autorizativo do Ibama para que a próxima etapa – destinação de recursos às ONGs responsáveis por executar os projetos – seja iniciada. 

Devido às mudanças nas normas, pode ser que o processo, como estava sendo conduzido, nunca seja, de fato, finalizado. Justamente porque o desenho foi alterado drasticamente com as mudanças promovidas pelo Decreto 9.760 e pela MP 900. Duas questões permanecem em aberto: se a seleção pública de projetos será mantida – e com base em quais critérios –, e como os recursos serão repassados. Segundo apurou ((o))eco, ainda não há definição interna no Ibama sobre o encaminhamento dos projetos selecionados no Chamamento 1.

Tramitação

Até a última sexta-feira (25), a MP 900/2019 havia recebido 94 emendas de parlamentares. Muitas delas com o objetivo de trazer critérios e recuperar regras do modelo que vigorou até o início deste ano, como estabelecimento de órgão colegiado para definição de temas e territórios prioritários, tipos de projetos que podem receber recursos, exclusão de artigo que retira do infrator a obrigação do acompanhamento do projeto de recuperação, entre outras. Algumas das emendas, inclusive, são cópias da lei anteriormente em vigor.

Segundo o deputado federal Nilto Tatto (PT), autor de seis emendas, o objetivo é diminuir o poder centralizador da MP 900. “[A MP 900] Dá a liberdade para o ministro fazer qualquer tipo de utilização dos recursos sem os critérios que têm que existir quando se trata da gestão dos recursos públicos. Essa MP, na forma como foi enviada, reflete esse pensamento de falta de transparência, de falta de controle social, que é o pensamento do governo Bolsonaro. As emendas que fizemos vão no sentido de tentarmos garantir o que é conquista da sociedade brasileira do ponto de vista da transparência, da gestão, e definir melhor a utilização desses recursos”, diz.

A MP aguarda instalação da Comissão Mista no Senado para apreciação das emendas apresentadas e emissão de parecer sobre a matéria. 

 

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Comentários 2

  1. William Ruiner diz:

    Reportagem com cara de coluna. Esse trecho demonstra isso: 'criou os “núcleos de conciliação” – que, na prática, funcionam como mais uma instância para o infrator recorrer'.
    Isso é simplesmente uma opinião sem fundamento. Se fosse repórter mesmo, veria que os núcleos de conciliação em SP aumentaram a arrecadação de multas com taxas altas de conciliação.
    O jornalista hj é a única categoria no Brasil que não precisa se ater a fatos, podendo opinar sobre qualquer coisa e de qualquer forma, sem responsabilidade nenhuma sobre as consequências e tendo ainda um bônus de colocar tudo na conta de uma alegada "fonte".


  2. Paulo diz:

    O ministro Salles (do partido Novo), fazendo a velha política (sem transparência e muita fumarola).