Reportagens

Brasil precisa intensificar o controle ambiental da irrigação agrícola

A área nacional com esses sistemas já soma 70 mil km2, um território similar ao da Irlanda ou à metade do estado do Amapá

Aldem Bourscheit ·
5 de fevereiro de 2025

O Brasil tem uma das maiores áreas mundiais com irrigação artificial. Ela cresceu sem parar nas últimas décadas e já soma um território similar ao da Irlanda ou à metade do estado do Amapá, por volta de 70 mil km2.

Essa técnica agrícola permitiria maior produtividade e até três safras anuais de frutas e verduras, algodão, milho, feijão, soja e outros grãos, consumidos no país e exportados mundialmente. A demanda por esses itens dispara.

Só de soja, as lavouras nacionais aumentaram nove vezes nas últimas quatro décadas e já cobrem um Paraguai, ou cerca de 400 mil km2. No mesmo prazo, subiu 50% a área da agropecuária no país. As informações são do MapBiomas, iniciativa que acompanha usos da terra e da água no país.

De carona na expansão do agronegócio, as projeções são de que a mancha nacional irrigada aumente 60%, chegando a 112 mil km2. Um terço do salto ocorreria até o fim da década, diz a Agência Nacional de Águas, que gerencia o recurso no país. 

Com chuvas irregulares e menos fontes superficiais como rios e lagos, regiões do Nordeste ao Sul do país são grandes alvos da irrigação, inclusive com canais e reservatórios a céu aberto que podem ameaçar de morte a vida selvagem. É um cenário ainda desprezado.

“Pouco a pouco, são reconhecidas mais ameaças do agro para ambientes e espécies naturais”, diz Rodrigo Gerhardt, gerente da Campanha de Vida Silvestre da ong Proteção Animal Mundial no Brasil. A inação do poder público pode reforçar isso. 

A reportagem apurou que governos estaduais e federal não estão atentos e nem agem amplamente contra possíveis afogamentos de animais silvestres sequer nos dez estados com as maiores áreas de agricultura irrigada. 

O levantamento apontou que não há monitoramento e nem estatísticas sobre afogamentos mortais de fauna nativa nesses canais de água, e que os governos desconsideram o licenciamento ambiental dos sistemas, o que poderia conter danos à biodiversidade.

Apenas o estado de Goiás, na região centro-oeste, disse que licenças podem pedir “a instalação de estruturas que visam evitar que animais caiam na água (passagens) e, quando caem, que permitam que o animal consiga escapar, como as escadas aquáticas”.

Distribuição da agricultura irrigada nos estados e municípios brasileiros, para itens como arroz, frutas, cana-de-açúcar, café e eucalipto. Cores mais escuras indicam os maiores polos irrigados. Fonte: Atlas da Irrigação (ANA)/Gabriela Güllich/O Eco
Distribuição da agricultura irrigada nos estados e municípios brasileiros, para itens como arroz, frutas, cana-de-açúcar, café e eucalipto. Cores mais escuras indicam os maiores polos irrigados. Fonte: Atlas da Irrigação (ANA)/Gabriela Güllich/O Eco
Distribuição da agricultura irrigada nos estados e municípios brasileiros, para itens como arroz, frutas, cana-de-açúcar, café e eucalipto. Cores mais escuras indicam os maiores polos irrigados. Fonte: Atlas da Irrigação (ANA)/Gabriela Güllich/O Eco
Distribuição da agricultura irrigada nos estados e municípios brasileiros, para itens como arroz, frutas, cana-de-açúcar, café e eucalipto. Cores mais escuras indicam os maiores polos irrigados. Fonte: Atlas da Irrigação (ANA)/Gabriela Güllich/O Eco

A maioria dos polos irrigados não usa plástico escorregadio em canais e reservatórios, mas podem ter outros itens fatais à vida animal, como canalizações com paredes íngremes, barreiras ou comportas ou até fortes correntes de água, indicam os casos, estudos e fontes desta série de reportagens.

Já o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima afirmou ser possível criar projetos para monitorar prejuízos de canais de irrigação à fauna silvestre. “No momento, contudo, não há previsão para a implementação de um sistema específico para esse tipo de controle”, informou.

Responsável pelos parques nacionais e outras unidades federais de conservação, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) comentou que, até junho, pode ser disparado um projeto para reduzir os riscos de canais de irrigação para animais como o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus).

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a agência federal de fiscalização ambiental, disse levantar dados para agir contra as mortes de animais na irrigação. “Ainda não há um prazo definido para a realização e conclusão dessas ações”, afirmou.

As informações vieram por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), que garante respostas de órgãos federais, estaduais e municipais. A busca foi apoiada pela Fiquem Sabendo, organização sem fins lucrativos especializada no acesso a informações públicas.

Igualmente indagados pela reportagem, por email, quase todos os 20 municípios com maiores áreas irrigadas no país silenciaram sobre eventuais afogamentos de animais. Outros jogaram a responsabilidade no colo de órgãos policiais, estaduais ou federais.

À esquerda, um canal com membrana plástica ligado a um sistema de irrigação com pivô central para cultivo de soja em Riachão das Neves, no estado da Bahia. Foto: Victor Moriyama/Greenpeace.
À direita, um dos canais de água durante a implantação do Baixio de Irecê, apontado como o maior projeto de irrigação da América Latina. Foto: Codevasf/Jorge Serejo/Creative Commons

Além dos maiores centros nacionais de aguagem artificial da agricultura, há outros vultosos projetos em estados como das regiões Sudeste e Nordeste

Em Minas Gerais e na Bahia, os canais no Distrito de Jaíba e no Baixio de Irecê somam quase 640 km, similares à distância rodoviária entre São Paulo (SP) e Belo Horizonte (MG) ou entre as capitais europeias Oslo (Noruega) e Copenhague (Dinamarca).

Ambos os centros de irrigação usam águas do Rio São Francisco para produzir  itens como milheto, mamona, limão, abóbora, feijão, melancia, manga e banana, consumidos sobretudo no Brasil. Jaíba opera desde 1975 e Irecê desde 2021.

Ligada ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional e gestora dos projetos, a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) diz que ambos têm estruturas “passíveis de serem utilizadas para travessia pela fauna, evitando assim a queda de animais”.

No Baixio de Irecê, há equipamentos a cada 450 metros, como pontes, passarelas, bueiros e escadas de segurança, a morte e queda de animais nos canais são vigiadas e, nos próximos anos, é prevista a instalação de câmeras de monitoramento, afirma a Companhia. 

“Até o momento não há registro representativo de estatística de afogamentos de animais silvestres de ocorrências no projeto”, diz.

Quanto ao Jaíba, mais de 70% de seus canais (240 km) são rasos, o que facilitaria a saída de animais, e os demais trechos são distantes de áreas protegidas ou com vegetação natural, o que reduziria os riscos a espécies nativas, aponta a Codevasf. 

Apenas um afogamento fatal de uma raposa silvestre foi registrado no projeto, há cerca de dez anos, diz a Companhia.

O plano atual protetor da fauna tem itens como passagens aéreas e subterrâneas, equipes e materiais para resgate. O documento relata que a maioria da fauna se afasta do polo de irrigação e lista até efeitos positivos, como mais “fontes de dessedentação”.

“Os projetos da Codevasf são licenciados pelos órgãos ambientais competentes e, sempre que identificado o impacto em fauna, esses são mitigados por programas ambientais aprovados pelos órgãos licenciadores”, diz a Codevasf. Confira aqui a íntegra de sua resposta.

Por outro lado, Rodrigo Gerhardt (Proteção Animal Mundial no Brasil) avalia que pontes e outras estruturas informadas pela Companhia servem mais à operação dos projetos, veículos e pessoas do que aos animais. “Não há garantia de que a fauna silvestre as esteja aproveitando”, salienta.

O especialista também avalia que falta um monitoramento rígido nos sistemas de irrigação para assegurar que animais não sejam afogados. “Espécimes mortos na grande extensão de canais podem não ser reportados aos órgãos ambientais”, pondera.

Outro polo crescente de irrigação no país fica entre os municípios de Petrolina e Juazeiro, entre os estados nordestinos de Pernambuco e da Bahia. As águas usadas são do mesmo São Francisco.

Lavouras irrigadas com pivôs centrais no município baiano de Barreiras. Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace
Lavouras irrigadas com pivôs centrais no município baiano de Barreiras. Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace
Fruticultura irrigada em Petrolina (PE). Foto: Abdias Jr
Fruticultura irrigada em Petrolina (PE). Foto: Abdias Jr

Licenciamento em xeque

Frente às ameaças da irrigação à fauna silvestre, a superintendente da Associação Mineira de Defesa do Ambiente (AMDA), Maria Dalce Ricas, lembra que protegê-la é uma obrigação legal dos governos e pede a fiscalização da atividade no país todo.

“Isso ajudará a coibir possíveis crimes, gerar informações sobre a mortandade de animais silvestres e subsidiar ações preventivas”, avalia. “A irrigação deveria ter normas para reduzir os afogamentos de animais”, ressalta. 

Todavia, isso é algo distante da realidade brasileira. Na prática, a atividade não é nacionalmente vistoriada e depende hoje apenas de permissões para uso de água, pois é classificada como de “baixo impacto ambiental”.

Um projeto de lei do deputado federal Nilto Tatto (PT/SP) quer mudar isso, determinando o licenciamento ambiental para a irrigação agrícola. Ele avalia que isso pode reforçar a conservação da água e de animais silvestres. 

“É necessário aprimorar a legislação para que o que ocorre no oeste da Bahia não se espalhe no país”, destaca.

Também é possível construir um plano nacional contra prejuízos do agro à vida selvagem, diz Rodrigo Gerhardt (Proteção Animal Mundial no Brasil). “Já existem planos para hidrelétricas na Amazônia, mineração, extração marinha de petróleo e infraestruturas viárias”, lembra.

Os chamados “Planos de Redução de Impactos sobre a Biodiversidade” são baseados na legislação federal e executados por ICMBio e Ibama e outras instituições, públicas, científicas e civis.

Agricultura irrigada no Programa de Assentamento Dirigido do Distrito Federal (PAD/DF). Foto: Wenderson Araujo/Trilux
Agricultura irrigada no Programa de Assentamento Dirigido do Distrito Federal (PAD/DF). Foto: Wenderson Araujo/Trilux

Demanda aquecida

A reportagem apurou que, no novo plano federal a ser apresentado este ano para cortar emissões nacionais de gases de efeito estufa, a irrigação deve ser posicionada como chave para seguir produzindo alimentos na crise climática.

“É uma proposta oportunista e focada só nos interesses do agronegócio, que não revê suas práticas causadoras da própria crise do clima, como o desmate e o uso exacerbado de água”, avalia Rodrigo Gerhardt.

Uma década antes, em 2015, uma versão do planejamento para adaptar o Brasil à mudança climática citava a irrigação como positiva “para preservação da biodiversidade”. O afogamento de animais estava bem longe do radar.

Contudo, enquanto a temperatura dispara, a oferta de água superficial no país encolhe nas últimas décadas, mostra o MapBiomas. As piores perdas ocorreram justamente em grandes produtores rurais, como Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

Gerente de Água da ong The Nature Conservancy no Brasil, Samuel Barreto aponta que isso se deve ao desmatamento e a outras mudanças no uso da terra aliadas à alteração do clima. “Isso afeta economias, pessoas, fauna e flora”, salienta.

“Não dá para usar mais água do que a capacidade natural de reposição”, avisa o especialista. Soluções passam por pisar forte no freio da eliminação da vegetação nativa e regenerar ambientes naturais massivamente.

Na contramão, o agronegócio segue como maior fonte de desmatamento e usando 70% da água no país, ou cerca de 30 trilhões de litros anuais, estima a Agência Nacional de Águas. O percentual é similar à demanda global do setor.

Frente ao risco de que mais animais morram em estruturas de aguagem fomentadas pela alteração global do clima, Nilto Tatto (PT/SP) ressalta que uma adaptação séria à crise não pode envolver só “necessidades humanas”. 

“Se mais irrigação será necessária na produção rural, que isso seja feito com legislação e tecnologias que não gerem outros problemas, como ameaçar de morte a fauna silvestre”, pede o parlamentar. 

  • Aldem Bourscheit

    Jornalista cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Selvagem, Ciência, Agron...

Leia também

Massacre Invisível: Arte reportagem 1
Reportagens
4 de fevereiro de 2025

Agonizar até morrer tentando escapar de canais de irrigação

Especialistas pedem a vistoria e medidas urgentes para conter afogamentos de animais silvestres em todo o oeste da Bahia

Reportagens
27 de setembro de 2023

Lobos-guará e outros animais morrem afogados em canais de irrigação

Perdas ocorrem em polo do agronegócio no oeste baiano, mas o problema pode ser muito maior e fontes pedem ações urgentes

Reportagens
30 de outubro de 2023

Transposição do S. Francisco conteve afogamentos de animais silvestres

Mais de 235 mil espécimes já foram resgatados das obras em 16 anos do megaprojeto hídrico, ainda com trechos em construção

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.