Era início dos anos 2000. Tratores desenterravam toras de aroeira que tinham sido cortadas ilegalmente por fazendeiros em Bonito, em Mato Grosso do Sul (MS). O flagrante funcionou como uma espécie de estopim para a criação da Unidade de Conservação (UC) do Parque Nacional da Serra da Bodoquena, que também já estava sendo discutida por pesquisadores, ambientalistas e produtores da região. No Pantanal sul-mato-grossense, outra flagrante ameaça. Eram as carvoarias que tomavam conta de parte da maior área úmida do mundo. O registro de carvoarias com cerca de cem fornos nas sub-regiões do bioma, em Aquidauana (MS) e Miranda (MS), repercutia na denúncia que mudaria a legislação tanto em Mato Grosso do Sul, quanto em Minas Gerais, na época principal consumidor do produto da região – alterações tentavam diminuir a aquisição de carvão de origem vegetal ou nativa.
Nesse cenário, uma jornalista ambiental de olhar atento noticiava para o país inteiro os episódios que ameaçavam o meio ambiente na região. Era Cláudia Gaigher. Trabalhando como repórter de rede nacional da Rede Globo, baseada na TV Morena, afiliada da emissora em Mato Grosso do Sul, por mais de 24 anos ela acompanhou as transformações às quais tem sido exposto o Pantanal. Além do bioma pantaneiro, a capixaba de Cachoeiro de Itapemirim (ES) também se dedicou à cobertura de outros biomas como a Amazônia e o Cerrado, e até mesmo a Caatinga.
As duas histórias mencionadas no início deste texto fazem parte de uma coletânea de dezenas de bastidores de reportagens produzidas por Gaigher desde 1998, e que está sendo publicada nesta semana no livro “Diário de Uma Repórter no Pantanal”, obra financiada pelo Documenta Pantanal – o projeto reúne profissionais de diversas áreas para documentar fragilidades e biodiversidade do Pantanal.
Em entrevista a ((o))eco, a jornalista fala, entre outros assuntos, sobre o que testemunhou ao longo desses anos, expectativas em torno do lançamento da obra e a nova geração de jornalistas ambientais. “Eu vi muitas áreas de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul que tiveram a sua vegetação nativa convertida para pasto ou para lavoura. Eu vi o Cerrado sendo cada dia mais aberto. Eu vi o Pantanal sendo cada dia mais modificado. Eu vi a Floresta Amazônica sendo cada dia mais desmatada. Hoje a gente chama de Arco do Desmatamento uma região com mais de 500 mil quilômetros quadrados nos estados de Mato Grosso, Pará, Rondônia e Acre, onde se registram os maiores índices de desmatamento da floresta para cultivo de lavouras, criação de gado, corte ilegal de madeira e mineração. Quando eu comecei a fazer reportagens nessa região, nem se usava nessa expressão”, conta Gaigher.
Nessa missão de informar e pautar os assuntos ambientais, a jornalista compartilha os desafios e diz esperar que o livro possa ajudar a nova geração de colegas. “Eu acredito muito nessa nova geração de jornalistas ambientais e de jovens consumidores de conteúdo sobre a produção sustentável, a conservação e a preservação”, diz Gaigher.
Leia entrevista na íntegra:
((o))eco: Cláudia, antes de começarmos você poderia falar um pouco sobre você? E também sobre como se deu o processo de cobrir meio ambiente desde Mato Grosso do Sul?
Cláudia Gaigher: Eu sou capixaba, de Cachoeiro de Itapemirim (ES). Comecei a minha carreira como jornalista lá, na TV afiliada da Globo, depois fui para Gazeta, que é em Vitória, TV Gazeta, e depois passei pela Globo Rio, já me preparando pra mudar para o Centro-Oeste. Quando eu estava nessa transição, me foi oferecida a possibilidade de ir para outros lugares, porque naquela época o Evandro Carlos de Andrade (então diretor de jornalismo da Rede Globo) tinha uma política de ter um repórter em cada estado, e eu queria conhecer um Brasil que eu não conhecia. Eu sou nascida numa capitania hereditária, cercada de Mata Atlântica e conhecia muito pouco do interior do Brasil. Foi muito interessante porque eu nunca tinha pisado no Centro-Oeste, foi a primeira vez. Primeiro eu vim conhecer, antes de aceitar. A orientação da direção da Globo era, ‘vai lá para ver se você topa e fica lá um tempo, depois você volta’. Esse ‘um tempo’ se transformaram em 24 anos. Foi muito interessante, porque foi uma descoberta não só de um Brasil que eu não conhecia, mas de grandes possibilidades.
E a relação com o meio ambiente, ela surge quando?
A minha relação com o meio ambiente vem de dentro de casa. Os meus pais, a gente é do interior, da roça. Todo final de semana ou a gente ia pra praia, acampar e pescar, ou para Mata Atlântica fazer expedições, ou visitava propriedades. A gente não tinha fazenda, mas os amigos do meu pai, quando o papai era vivo, tinham, e a gente ia passar o final de semana. Esse contato com a natureza sempre foi muito presente na minha vida, desde que eu nasci. É muito natural para mim estar em contato com a natureza, até um pouco longe dos grandes centros, isso para mim não foi difícil. Tem gente que às vezes pergunta ‘nossa, mas você se meteu na Amazônia, você foi para o Pantanal’. Eu que quis, eu que escolhi, e realmente eu sempre escolho isso, as possibilidades de estar em contato com a natureza, com as comunidades tradicionais, os povos originários. A gente aprende tanto.
Predominantemente inserido em Mata Atlântica, o Espírito Santo é distante e diferente do Mato Grosso do Sul, que abrange a maior parte do Pantanal no Brasil. Foi difícil para se adaptar no estado?
Uma das primeiras pessoas que eu conheci foi o Almir Sater, por incrível que pareça, sem que eu soubesse quem ele era. Isso gerou um encontro engraçadíssimo que a gente dá risada até hoje, ele virou um grande amigo. A Neiva Guedes, do Instituto Arara Azul, também foi uma das primeiras pessoas que eu entrevistei aqui, uma das primeiras reportagens. Nossas almas se reconheceram e somos amigas irmãs até hoje. E o empresário Roberto Klabin, quando eu fui fazer uma reportagem na Cayman sobre turismo, de experiência, na época todo mundo falava ecoturismo. O Roberto sempre foi uma pessoa muito querida na minha vida. Além disso, eu fui conhecendo os pesquisadores, fui conhecendo os pantaneiros, as comunidades e a vida foi fluindo.
Ao longo desses 24 anos que você fez essa cobertura do Pantanal para a Rede Globo, você com certeza deve ter presenciado mudanças no bioma e na região. Você poderia comentar sobre isso?
Na verdade, a minha base é Campo Grande (MS), mas como eu vim como repórter de rede nacional, eu viajei, e viajo, o Brasil inteiro, passando por outros biomas, não só o Pantanal, mas Cerrado, Amazônia, Caatinga. Viajei muito pela Globo para fazer reportagens e eu pude ver e ser testemunha de uma transformação na paisagem e uma transformação que tem várias nuances. Você tinha ali, quando eu cheguei aqui, imagina 1998, uma outra forma de olhar o meio ambiente. Não se olhava a natureza conservada como um ativo econômico, como algo que poderia também gerar recursos. Pelo contrário, o que se incentivava era a abertura de áreas, aumento de produção, superávits da balança comercial.
Eu me lembro que me causou muita estranheza viajar horas e horas, aqui no Centro-Oeste, e dos dois lados da estrada tudo plantado, tudo ou com pasto ou com lavouras de grãos, principalmente soja. Já tinha bastante naquela época e foi aumentando cada vez mais, principalmente nas áreas de Cerrado. O que essa experiência de viajar por Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, Amapá, Pará, Piauí, enfim, rodei esse Brasil inteiro, foi ver, exatamente, essa expansão do agronegócio sem um zoneamento agroambiental que permitisse uma convivência sustentável, ou sem fiscalização, ou as duas coisas. Quando eu comecei a viajar por esse Brasil, ainda existiam muitas áreas nativas, muitas áreas conservadas ali naquela região, onde você vai subindo de Mato Grosso e chega em Jacareacanga, e chega ali aonde hoje tá o olho do furacão.
Acabei de chegar de lá e quase morri de chorar ao ver tudo aberto, de sobrevoar o município de Alta Floresta, por exemplo, e não ter Floresta. Não justifica nem o nome mais do município, só tem lavoura, só tem pasto. Aqui [em Mato Grosso do Sul] foi a mesma coisa.
Neste mês, o País realiza as eleições presidenciais, assim como de governadores, senadores, deputados federais e estaduais. Que preocupações os gestores devem ter com o Pantanal, assim como com os demais biomas cuja ameaças você documenta há anos?
Eu acho muito tímida a postura dos gestores públicos e empresas privadas diante do meio ambiente, e muitos estão fazendo isso visando apenas por exigências de mercado, por conta das ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), que são as diretrizes da ONU (Organização das Nações Unidas). A gente precisa estar ali, acompanhando para exigir que seja a longo prazo e com efeitos. Uma coisa que me choca profundamente é ver que os gestores, os legisladores, o brasileiro, não enxergam os povos originários, os povos indígenas como fonte de informação e de sabedoria para a gente encontrar o caminho da sustentabilidade.
O grande problema do Brasil, que eu enxergo hoje, é a falta de pertencimento. Muitos brasileiros não enxergam as áreas de unidades de conservação, os povos indígenas como sendo parte da nossa história, trazem também o conhecimento. Isso é muito triste, é uma sentença até de finitude. O Brasil tem a capacidade de ser uma das maiores potências ambientais e de bioeconomia do mundo. Nós temos a floresta mais biodiversa do mundo, nós temos a savana mais biodiversa do mundo, que é o Cerrado, nós temos um bioma exclusivamente brasileiro que é a Caatinga. E aí, a gente vai deixar passar a corrente em cima? A gente vai deixar meter fogo? E vai ficar por isso mesmo? E os nossos povos originários? Quanto conhecimento tradicional, quantos princípios ativos, quantas relações e interconexões a gente pode aprender com eles, se eles estiveram ali. Por que a prosperidade no Brasil precisa ser de apenas um setor? de uma categoria?
E o mundo precisa também se posicionar, porque se existe mineração ilegal na Amazônia, se existe corte ilegal de madeira, se existe produção com alto índice de química, se existem rios assoreados e existem novas derrubadas de floresta Amazônica, de Cerrado, de Pantanal para criar gado, existe alguém que compra. Não é uma questão de economia apenas, é uma questão de sustentabilidade e de sobrevivência.
Eu acredito que já está tendo essa mudança. Eu vejo no meu círculo, vejo nos jovens que estão preocupados com isso, mas eu também vejo o outro lado da história que não está nem aí, é o imediatismo, sabe? Subiu o dólar “oba, vou vender minhas commodities”. A gente precisa cobrar nesse momento de eleição, nesse momento de escolha de gestores e de legisladores, aqueles que vão cumprir com o que prometem e não simplesmente engolir esses discursos que agora tá todo mundo “ternurinha”, todo mundo é bonzinho, todo mundo tá falando de povos originários, todo mundo tá falando de comunidade tradicional, todo mundo tá falando de conservação de Meio Ambiente de ODS, de educação, mas o povo tá sem comida, sem escola.
Que desafios você enxerga para a cobertura de meio ambiente no Brasil, ao mesmo tempo que surge também uma nova geração de jornalistas ambientais. Você poderia comentar sobre isso?
O grande desafio primeiro é sair do óbvio e do fácil. O jornalista ambiental tem que estudar, pesquisar, ter fontes, buscar os artigos científicos, ler esses artigos, questionar os cientistas, não um só, vários. Aí tem que olhar e ouvir as comunidades tradicionais, os povos originários daquela região, porque ali tem muita informação. A partir daí você também vai olhar a classe produtora, ouvir o lado deles, porque você não tem que apontar culpados, você tem que buscar a história e você escreve essa história. A gente não tem esse direito de apontar o dedo porque tem coisas que evoluíram dentro de um sistema que levaram ao que a gente está vivendo hoje.
O que a gente tem que fazer é cobrar fiscalização, cobrar cumprimento da lei, isso é papel do jornalista. E aí você tem que buscar essa conexão, e outra, o jornalista ambiental não pode ser um jornalista de release nem de factual. Pode até começar uma bela matéria com um release que chegou, com factual que caiu no colo dele, mas ele tem que acompanhar a evolução daquilo. Eu tenho histórias da minha vida de trabalho como jornalista que eu acompanho há 20 anos, 24 anos. Acompanho mesmo, de ligar mensalmente, de a cada três, quatro meses está conversando com as pessoas da comunidade, ou então com cientistas, ou então com o fazendeiro. Por que isso? Porque só quando você tem continuidade na sua apuração e vai ampliando a sua rede de fontes, você tem a possibilidade de entender mais profundamente aquele assunto. Aí, você faz uma reportagem que vai trazer para as pessoas informações aprofundadas.
Toda reportagem que eu faço, eu busco dentro daquele tema, dentro daquela pauta, algum exemplo positivo. Pode ser muito pequeno, mas tem. Tem muita gente boa fazendo coisas muito importantes para o meio ambiente, para sustentabilidade, para conservação e para a produção. Mesmo nas denúncias mais graves, mesmo nos momentos mais sérios, eu busco esse conhecimento, eu busco esse exemplo porque não adianta a gente simplesmente falar. A gente tem também que ajudar a apontar caminhos, porque a gente tem acesso a informações, a pessoas, que muitos brasileiros às vezes não tem.
A partir do momento que você mostra que existem pessoas tentando fazer o certo, e que está dando certo, você dá às outras a possibilidade da escolha. “Eu posso trilhar esse caminho também”.
Eu acredito muito nessa nova geração de jornalistas ambientais e de jovens consumidores de conteúdo sobre a sustentabilidade, a produção sustentável, a conservação e a preservação. Eu acho assim que é muito legal ver essa nova geração chegando, e o que eu posso oferecer é a minha estrada, é a minha experiência de estar com pé na terra. É isso, não tenham medo de se lançar. “Aí, é difícil, o custo é difícil”. Não é tão difícil. É possível. Mas a gente tem que quebrar ovos e quebrar ovos é romper com alguns padrões de consumo, instituir algumas regras na indústria, algumas regras na produção e isso depende da população cobrar e nós jornalistas noticiarmos.
Quanto ao livro que está sendo lançado, quais as expectativas em torno dele? Poderia comentar sobre esse assunto?
Apesar do nome do meu livro ser Diário de Uma Repórter no Pantanal, eu conto histórias na Amazônia, Caatinga, na Mata Atlântica. O nome é porque o Pantanal é o lugar que eu escolhi pra viver, mas eu tenho paixão por esses outros biomas. Tem muita história que não tá no livro, porque ele foi crescendo, crescendo, ia ficar muito grande. Aí eu falei “meu Deus do céu, deixa”. Tem mais um monte de história aqui escrita, quem sabe eu lanço em um segundo volume.
Mas essa ideia da produção do livro partiu de amigos, do Documenta Pantanal, que é um projeto de incentivo a divulgação da informação sobre o bioma Pantanal, e não só sobre o Pantanal. A Mônica Guimarães do Documenta Pantanal que me sugeriu e falou “a gente precisa botar isso no papel para todo mundo”. Eu sempre gostei de escrever. Toda vez que eu fazia uma produção de alguma pauta que eu levantei, que eu ia para campo, eu fazia reportagem, mas a minha cabeça ficava cheia de histórias que não cabiam naquele espaço de três minutos de VT do JN (Jornal Nacional), ou até mesmo de 30 minutos de um Globo Repórter. Então eu sempre coloquei isso no papel. Eu acabei compilando e atualizando. São histórias de uma brasileira que veio lá da Mata Atlântica, parar no Cerrado, no Pantanal, foi descobrir a Amazônia e ali descobriu muita história.
Eu sou apaixonada por geologia, por arqueologia, por biologia, por botânica. No livro, as pautas acabam sendo o mote de cada capítulo, mas ele tem as explicações científicas daqueles assuntos, as coisas que eu descobri, com os pesquisadores que eu conversei, os artigos que eles publicaram. É um recheado que eu espero ajudar os meus colegas jornalistas como um todo. Mas também tem belas histórias, e algumas bem divertidas, assim, engraçadíssimas de bastidores, que eu passei por esse tempo todo, para as pessoas que nem são jornalistas, mas que tem vontade de conhecer um pouco mais desse pedaço de Brasil e a história do nosso Brasil Central.
O que eu espero com esse livro é o que eu sempre espero com tudo que eu faço. Eu acho que a gente só chega a conquistar qualquer apoio, qualquer adesão a qualquer história quando a gente chega no coração. A gente precisa encantar. O ser humano é movido pela emoção. Então quando você desperta uma emoção, seja ela de estranhamento, de paixão, de raiva, de dúvida ou então de empatia, você chegou ao coração das pessoas. Eu busco encantar […] para que as pessoas que estão lendo parem e pensem “o que isso tem a ver com a minha vida” e ela se encaixar, porque todos nós estamos juntos. Com certeza, em alguma ou outra história, as pessoas vão dar muita risada, vão chorar um pouco, vão ficar surpresos e vão se divertir.
Histórias que marcaram, por Cláudia Gaigher
“Em 2004, eu acompanhei o início de um projeto em Mato Grosso, que era um projeto que se chama Tanguro, fui fazer uma reportagem para o Globo Rural. Isso foi no município de Querência (MT), e estavam ali pesquisadores do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e de outras instituições começando um estudo científico sobre a capacidade de resiliência da floresta amazônica depois de um incêndio. Eu me lembro como se fosse hoje. A gente chegou de avião, sobrevoando a floresta em Querência (MT), ali na divisa com o Pará, tudo verde, e de repente no meio da floresta um quadradão gigante com silos construídos, áreas abertas para o plantio de soja.
Um dos pesquisadores, o Daniel Nepstad, até hoje uma das grandes referências em Ecologia da Amazônia no mundo inteiro, estava conosco. Já naquela época, eu caminhava na estradinha e de um lado era a floresta amazônica, e do outro tinha uma área descampada, sem absolutamente nada, já com solo preparado para o plantio de soja. E aí o Daniel virou para mim e falou assim: “olha, a gente ainda não tem dados científicos, mas tudo indica que quando você derruba tudo isso aqui”, ele estava apontando para a Floresta Amazônica, “a água que isso aqui”, apontando para lavoura de soja “precisa não vai existir e vai alterar o microclima da região”. Isso foi em 2004 […] e eu tive a honra de estar ali no início.
Na época conheci também o John Carter, que é um americano casado com uma brasileira, que estava começando a ONG Aliança da Terra, que hoje é bem eficiente na formação de brigadas na Amazônia, no Mato Grosso, aqui em Mato Grosso do Sul, Goiás e nos territórios indígenas. O John Carter naquele tempo se preocupava e me falou, “logo as lavouras vão se expandir e vão botar fogo em tudo”. Parecia alarmismo. Imagine eu, novinha, início de carreira e aqueles pesquisadores já consagrados falando. Isso foi em 2004, mas tudo o que eles falaram é o que eu estou vendo acontecer”.
Ato de desespero
“Eu tinha um grande amigo que se chamava Francelmo. O Francelmo era um ativista ambiental e foi, assim, absurdo o que aconteceu. Existia uma possibilidade de autorização do plantio de cana no entorno do Pantanal, não necessariamente na planície de inundação. Só que o Pantanal é um bioma que tem 11 fitofisionomias, são 11 Pantanais dentro de um bioma só. Então você tem uma área que alaga, você tem uma outra área que não alaga sempre, você tem uma outra área que é um pouco mais alta que não alaga nunca, e todos os rios pantaneiros nascem no Cerrado.
O dia do Pantanal foi criado no dia 12 de novembro pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente, porque nesse dia, num ato desesperado, em 2005, na Rua Barão do Rio Branco, a principal rua aqui no centro de Campo Grande (MS), ele se imolou, jogou combustível no próprio corpo, ateou fogo e morreu. Ali na praça, no meio da calçada, na frente de todo mundo. Foi um ato desesperado. A partir disso, logo em seguida, foi instituído como Dia do Pantanal o dia 12 de novembro. Na época a Marina Silva era ministra, veio para cá, pra casa da esposa do Francelmo, eu fiz um apelo para a Ministra: “Mas Marina, a gente não pode tratar os biomas brasileiros separadamente, você é fruto da Amazônia, eu sou fruto da Mata Atlântica. Estou descobrindo o Cerrado. Estou descobrindo o Pantanal. Uma coisa não vive sem a outra””.
Fim das carvoarias
Eu peguei um Pantanal aqui em 2006, se não me engano, que tinha carvoarias de cima embaixo, porque era permitido você abrir pastagem dentro da planície pantaneira e você tinha que dar destinação aquela madeira, você transformava em carvão. Só que entre o que a lei autorizava e o que era feito tinha uma distância enorme. A gente sobrevoava o Pantanal aqui na região de Aquidauana, lá em Bonito que não é Pantanal, é Serra da Bodoquena, é Mata Atlântica de interior com uma mistura de Cerrado. Eu cheguei a gravar em uma carvoaria que tinha cem fornos dentro da planície pantaneira. E quem comprava esse carvão? Siderúrgicas do Estado de Minas. A gente denunciou e o que que aconteceu? O próprio estado de Minas Gerais, na época, mudou a legislação, proibindo a compra de carvão de origem vegetal ou nativa. Tinha que ser de reflorestamento. Aí Mato Grosso do Sul também fez uma legislação Estadual proibindo. Então aí você teve o fim das carvoarias praticamente, foi muito legal.
Parque criado
“Eu também denunciei em reportagens aqui o corte seletivo de árvores nobres da Mata Atlântica de interior, lá na Serra da Bodoquena, e muitas dessas denúncias embasaram o então ministro José Sarney Filho. A gente denunciava, mostrava, me lembro das imagens da Polícia Ambiental tirando as toras de aroeira que tinham sido enterradas lá na região de Bonito, que os fazendeiros cortavam pra vender ilegalmente. Havia uma grande discussão para você criar uma unidade de conservação federal ali na Serra da Bodoquena, e eu me lembro até hoje. O José um dia até me falou “eu vi todas as reportagens e olha, criei o Parque Nacional da Serra da Bodoquena””.
Ciência
“Eu tive muitas coisas muito lindas. Eu vi a ciência entrar no Pantanal. Os fazendeiros do bem abriram as porteiras para os pesquisadores e pesquisadoras. Acompanho há mais de 20 anos a evolução das pesquisas da equipe do Instituto Arara Azul, coordenado pela bióloga Neiva Guedes, na produção de conhecimento científico aliado à busca de uma convivência sustentável entre as araras e as outras espécies, inclusive os homens, no Pantanal. As pesquisas das antas no Pantanal e no Cerrado, coordenada pela engenheira florestal e cientista Patrícia Medici, do Instituto IPÊ. Gravei muito sobre os trabalhos com o tamanduá-bandeira com a médica veterinária Flávia Miranda, do Instituto Tamanduá.
Quando iniciou o projeto Tatu-Canastra no Pantanal, pouco mais de uma década atrás, eu estava lá acompanhando os pesquisadores Arnaud Desbiez e Danilo Kruyber do Icas, Instituto de Conservação de Animais Silvestres. Tem muitos momentos ambientais aqui no Centro-Oeste que eu estava lá quando começou e isso me trouxe não só uma proximidade com esses cientistas e aí você vai vendo a evolução das descobertas, as medidas mitigatórias, a mudança de comportamento com educação ambiental. Então você vai vendo coisas muito boas acontecendo. Então isso foi muito interessante, eu pude presenciar.
Se eu for botar na balança tem muita coisa boa, mas tem muita coisa que é preocupante. Estamos chegando no limite de não retorno. Sabe aquele limite que não dá? Que a natureza não tem mais capacidade de resiliência para voltar a ser o que era? É isso que me preocupa”.
Incêndios no Pantanal
Para terminar, os incêndios de 2020 foram devastadores. Por mais que eu já tenha feito várias coberturas de incêndios, os de 2020 foram catastróficos. Eu nunca tinha visto o Pantanal pegar fogo de janeiro a novembro. Existem épocas aqui que são épocas mais secas e tem um incêndio aqui, outro incêndio ali. Mas 2020 foi uma progressão de devastação que eu nunca tinha presenciado. Aquilo me impactou muito, eu chorei muito no campo. Eu fiquei desesperada vendo a dificuldade para viajar porque a gente estava na pandemia e nem sempre os meus gestores me autorizavam a ir aos locais. Ainda hoje você percorre algumas regiões pantaneiras que foram queimadas e a gente vê claramente que a natureza ali não tem força para se regenerar sozinha.
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