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Contratação de termelétricas coloca em xeque compromisso climático Brasileiro

Política energética pode aumentar em 27% as emissões de gases de efeito estufa além de causar problemas locais. Expectativa é que governo Lula mude a direção para matrizes renováveis

Bibiana Maia ·
11 de novembro de 2022 · 1 anos atrás

Na contramão dos compromissos climáticos assumidos na Conferência das Partes (COP26), o Brasil está investindo na criação de termelétricas, especialmente a gás natural. Especialistas criticam a política energética do governo Jair Bolsonaro de aumentar a matriz de combustíveis fósseis, que emitem gases do efeito estufa e encarece a tarifa de energia para o consumidor final. Além disso, os empreendimentos causam impactos socioambientais locais, como desmatamento. Com a vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva contra Bolsonaro, há uma expectativa de rever este direcionamento.

Segundo informações antecipadas do Mapa da Expansão Fóssil no Brasil, produzido pelo Instituto Arayara, que será divulgado na COP 27, no ano passado o governo aprovou 72 projetos de termelétricas a gás natural e três a carvão para serem operados por até 40 anos. Sete começaram a produzir em 2022. Segundo a ONG, o custo energético deve subir em até 156% com a operação de todas elas, com uma ampliação de 27% nas emissões de gases do efeito estufa. As contratações aconteceram em uma série de leilões. Só em 2021, foram realizado nove.

Apenas no 1º Procedimento Competitivo Simplificado (PCS), de 2021, também chamado de leilão de emergência, foram contratadas 17 usinas em 7 estados que deveriam operar até o dia 1º de maio de 2022. Duas delas de energia solar e uma termelétrica a biomassa. As outras 14 são termelétricas a gás. O PCS contratou 778,2 megawatts (MW) por R$ 11,71 bilhões anuais, para serem produzidos no período entre 1º de maio de 2022 e 31 de dezembro de 2025. As usinas solar e a biomassa foram contratadas com preço médio de R$ 343,22 por megawatt-hora (MWh) e as termelétricas a gás por R$ 1.599,47. No total, seriam repassados anualmente às tarifas de distribuição R$ 8,99 bilhões, o que poderia significar um aumento médio de 4,49% nas tarifas de energia elétrica em todo o país. 

A estratégia coloca em risco o cumprimento da Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) brasileira, pois as três maiores causas de emissão do Brasil são: mudança do uso da terra e floresta, agropecuária e energia, segundo dados do SEEG. Enquanto isso, o Plano de Expansão de Energia 2030 aponta para uma matriz energética ainda dependente de combustíveis fósseis, com 31% de petróleos e derivados, 14% de gás natural e 4% de carvão e derivados até 2030.

“O modelo que essas termelétricas foram contratadas é o que elas têm que ficar disponíveis 24 horas por dia, ou seja, nós não estamos falando de térmicas que chamamos de emergência. Foi escolhido o modelo de queima permanente. Com isso, a partir de 2027 a 2035, o Brasil deixaria de cumprir as NDCs por causa dessa expansão de combustíveis fósseis”, explicou Juliano Bueno de Araújo, diretor técnico do Instituto Arayara, que mapeou que 54 milhões de brasileiros serão impactados diretamente em seus territórios.

No retorno à presidência para o seu terceiro mandato, Lula traz esperança de uma política voltada para a transição energética. Em seu plano de governo, os itens 10, 48 e 63 apontam para um desenvolvimento sustentável e a necessidade de mudar a produção e consumo de energia para enfrentar as mudanças climáticas. Especialmente no item 75 é destacada a necessidade de soberania energética e a diversificação da matriz com a expansão das renováveis. No entanto, o mesmo parágrado fala sobre aumentar a capacidade de produção de derivados no Brasil, aproveitando-se da grande riqueza do pré-sal, mantendo assim a produção de energia a partir de combustíveis fósseis. 

A Petrobrás é apontada como uma empresa de energia que deve atuar nos segmentos de transição energética, mas a importância de seguir investindo na autossuficiência nacional em petróleo e derivados e na garantia do abastecimento de combustíveis no país. O programa ainda destaca, no item 77, que ela deve ser uma empresa integrada de energia, investindo em exploração, produção, refino e distribuição.  

Com este direcionamento, especialistas apontam que o gás natural está sendo colocado de forma errônea como um combustível para a transição energética. Enquanto isso, o desmatamento tem metas mais claras. O plano de governo pretende acabar com o desmatamento ilegal e atingir o desmatamento líquido zero com recomposição de áreas degradadas e reflorestamento dos biomas.

Crescimento de termelétricas é justificado pelas crises hídricas

Já havia termelétricas no Sistema Interligado Nacional, mas até o apagão elétrico de 2001 existiam poucas e elas entravam em operação para complementar o fornecimento em períodos de seca. Na época, os reservatórios das hidrelétricas ficaram abaixo do necessário para o fornecimento de energia e o governo teve que fazer um racionamento com blecautes programados e regras rígidas para a redução de consumo, como a proibição de shows e jogos de futebol. Era o terceiro ano do segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, que não conseguiu eleger um sucessor. Quem venceu a disputa foi Luis Inácio Lula da Silva.

Segundo os especialistas, o investimento teve um crescimento em 2010, no governo da presidente Dilma Rousseff, mas aumentou a partir do governo do presidente Michel Temer, que assumiu o cargo após o processo de impeachment de 2016. Com a eleição do atual presidente Jair Bolsonaro, esta política se intensificou.

O Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), aponta que a geração das usinas termelétricas fóssil aumentou 177% em 20 anos. O crescimento foi de 30,6 TWh em 2000 para 84,8 TWh em 2020. O total de emissões de GEE no setor elétrico brasileiro aumentou 90% no mesmo período. Só em 2020, foram produzidos 41,3 TWh a partir do gás natural (36 plantas), o que corresponde a 76% do total. Os dados são do estudo “Inventário de emissões atmosféricas em usinas termelétricas: geração de eletricidade, emissões e lista de empresas proprietárias das termelétricas a combustíveis fósseis e de serviço público do Sistema Interligado Nacional (ano-base 2020)”.

No caso dos leilões emergenciais de energia contratados pelo governo Bolsonaro, a justificativa se baseia em duas crises hídricas recentes, em 2014 e 2021. A principal matriz energética ainda é a hidrelétrica e as tarifas subiram. O temor é que houvesse uma nova crise hídrica em 2022, ano de eleições para presidente. Isto não ocorreu e apenas quatro das usinas termelétricas entraram em operação dentro do prazo determinado. 

A capacidade total de geração seria de 1.241 MW, mas atualmente é de 207,39. Segundo o Ministério de Minas e Energia, o total já apurado em multas pela não entrega de energia é de R$ 1,7 bilhão de reais. Entre as usinas, quatro delas da Karpowership Brasil, que foram suspensas judicialmente, mas a empresa conseguiu reverter a decisão em 30 de agosto. O empreendimento turco de térmicas flutuantes é o primeiro do tipo no Brasil e está situado no Rio de Janeiro.

Foto: Sara Ribeiro / Arayara.org

Meta de zerar emissões até 2050 será prejudicada

Um dos problemas de autorizar novos projetos de termelétricas é que, se o país pretende zerar suas emissões a partir de 2040, não poderia instalar novas termelétricas a partir de 2025. Os contratos normalmente vão de 15 a 40 anos e a multa para encerrá-los criaria uma alta para o consumidor final. No caso do leilão de emergência, o Ministério de Minas e Energia (MME) abriu uma consulta pública até o fim do mês de novembro para reavaliar os contratos. Segundo nota técnica, o cenário hidrológico melhorou e o Sistema Interligado Nacional superou em abril os 70% de seu volume armazenado.

O MME avalia rescindir, reduzir a inflexibilidade (uma geração mínima obrigatória), ou fazer uma rescisão amigável. Considerando o caso das usinas que não entraram em operação, o custo total do PCS de R$ 39 bilhões hoje seria de cerca de R$ 8,2 bilhões. Além disso, as usinas devem pagar multa de R$ 9,2 bilhões. A redução da inflexibilidade para zero reduziria os custos de R$ 8,2 bilhões para cerca de R$ 4,5 bilhões, enquanto a rescisão unilateral por interesse público levaria esses valores para R$ 2,5 bilhões. 

Este recuo do órgão reafirma as críticas de que as termelétricas não seriam necessárias se houvesse investimento em outras fontes de energia. Em outubro, o Leilão de Energia Nova A-5 de 2022, negociou R$ 6,6 bilhões em contratos de venda de energia e investimentos estimados em R$ 2,95 bilhões. O início de suprimento será em janeiro de 2027, com prazos entre 15 e 20 anos. O leilão contratou fonte eólica, solar, hidrelétrica e termelétrica a biomassa e a partir de resíduos sólidos urbanos. O preço médio da contratação das fontes eólica e solar foi de cerca de R$ 173,00 por MWh, enquanto a energia contratada de termelétricas a gás no leilão PCS foi de R$ 1.599,47.

A nova Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC), divulgada em março deste ano, prevê uma redução das emissões de gases do efeito estufa (GEE) em 37% em 2025, em 50% em 2030 e zerar até 2050, com base nas estimativas do ano de 2005. O documento ainda destaca que 84% da energia elétrica é renovável, demonstra intenção em diversificar as fontes, e aponta as hidrelétricas como solução para complementar a eólica e solar. A NDC também destaca que, ciente dos efeitos das mudanças climáticas, como a crise hídrica, estão sendo consideradas planos de mitigação. 

“Se você incentiva termelétricas, que queimam combustíveis fósseis, como petróleo e gás, que emitem gases do efeito estufa, vai ser cada vez mais difícil cumprir esses compromissos. Com isso, o Brasil vai na contramão dos esforços de todos os países de reduzir as emissões e mitigar as mudanças climáticas. Ninguém constrói usina para operar cinco anos. É um tiro no pé do nosso país”, explica  Paulo Artaxo, pesquisador e membro do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC).

Lobby estaria por trás dos investimentos

O tiro no pé seria para atender à indústria do petróleo e gás da indústria. Segundo André Ferreira, diretor do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), existe um potencial enorme de crescimento para energia eólica e solar, mas não optar por elas está relacionado com um lobby. A alegação do mercado de combustíveis fósseis é que o investimento em termelétricas garante a estabilidade na geração de energia enquanto há variabilidade nas matrizes renováveis, já que elas dependem de sol e vento. 

“Esse é o grande debate no país sobre o sistema elétrico. Desenvolver a indústria do gás no Brasil depende da criação de um mercado com uma demanda firme e em grandes volumes. E a indústria do gás viu no setor elétrico essa possibilidade, que as usinas termelétricas pudessem absorver esse gás. Então, o que está em curso no país, é usar o setor elétrico para expandir a indústria do gás”

O resultado da política pode ainda intensificar o “racismo energético”, que é a falta de acesso de parte da população ao recurso, neste caso por causa dos altos valores das tarifas. De acordo com a ONG Arayara, há 9 milhões de pessoas que não conseguem pagar a conta de luz e, a longo prazo, a energia gerada pelas termelétricas deve encarecer em até 2,5 vezes mais o metro cúbico no mercado futuro. 

O Brasil ainda precisa investir em geração de energia por ser um país em desenvolvimento, diferente de países da Europa que já atingiram uma estabilidade. Porém, não há mais espaço para novos investimentos em hidrelétricas. A região de maior potencial para este tipo de projeto fica na Amazônia, o que cria riscos de impactos ambientais e sociais significativos, como aconteceu em Belo Monte, na bacia hidrográfica do Xingu, no Pará. O empreendimento causou desmatamento, alteração do curso do rio, impactou sete povos indígenas e todo ano fica parado durante meses por causa da oscilação do volume de água.

Segundo os especialistas ouvidos, as hidrelétricas deveriam mudar seu papel deixando de ser a principal fonte de produção de energia para complementar o fornecimento. Isto resolveria o problema da variabilidade das matrizes eólica e solar. Elas atuariam como uma “bateria”, complementando as outras duas fontes que seriam as principais, solução que já aparece na NDC brasileira. 

Termelétricas também causam impactos locais

Karpowership no Rio de Janeiro. Foto: Sara Ribeiro / Arayara.org

Além da emissão de GEE e o aumento no custo da tarifa, existem impactos socioambientais na instalação de termelétricas. Um caso que ganhou grande repercussão foi o da empresa Karpowership Brasil (KPS), uma das contratadas no leilão emergencial. As usinas flutuantes estão localizadas na Baía de Sepetiba, em Itaguaí, estado do Rio de Janeiro, e não entraram em operação dentro do prazo, 1º de maio. A empresa não apresentou Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) para obter a Licença Ambiental Integrada e virou alvo do Ministério Público Federal

O empreendimento tem quatro usinas flutuantes: Karkey 013, Karkey 019, Porsud I e Porsud II, movidas a gás natural, com capacidade total contratada de 560 MW; uma unidade Flutuante de Armazenamento e Regaseificação de Gás Natural Liquefeito (GNL), abastecida por navio; e linha de transmissão aérea de cada usina até a primeira torre de transmissão. 

Em um trajeto de 14,7 km, foram instaladas 36 torres que percorrem um trecho sobre a água, sobre estruturas estaqueadas no leito marinho, até chegar em torres em terra que levarão a energia até uma subestação. O traçado passa pelos municípios de Itaguaí e Rio de Janeiro. Para instalar as torres, é necessária a  supressão de vegetação de mata atlântica, em área com 7,33 hectares, incluindo Área de Preservação Permanente e vegetação de mangue.

A instalação do empreendimento causou revolta aos pescadores artesanais. Sergio Hiroshi Okasaki, presidente da Associação de Pescadores e Lavradores da Ilha da Madeira, contou que eles não foram consultados sobre a instalação da KPS. A empresa prejudica o acesso ao mar por estar instalada bem na entrada do manguezal e seus funcionários impedem o tráfego com lanchas em alta velocidade e ameaçam pescadores. 

Okazaki lembrou que estamos na Década dos Oceanos e que o Brasil é signatário da Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, o que obrigaria a consultar os pescadores artesanais. Ele também diz que após a movimentação das associações, a empresa forneceu uma pesquisa com dados sobre a África do Sul, mas não havia dados sobre risco à fauna e à flora local. “Um pescador não pode tirar um pé de manguezal que é crime ambiental, mas uma empresa pode destruir como quiser. Aí é progresso. Assim a gente vê dois pesos e duas medidas”.

Segundo Okasaki, a região é uma área de estuário, onde os peixes vão para fazer a desova e a engorda. Com o empreendimento eles temem que ocorra uma cascata trófica que impacte todo o ecossistema. Além disso, ele chama atenção para o fato de ser mais uma indústria poluente na já impactada Baía de Sepetiba, que convive com um complexo portuário e industrial. 

O Instituto Estadual do Ambiente (Inea) informou que foi emitida Licença de Operação em julho, mas a KPS não está operando por necessidade prévia de testes. O projeto, segundo o órgão, foi analisado por uma equipe técnica multidisciplinar, que determinou 66 condicionantes que deverão ser atendidas na íntegra durante a sua vigência. 

O Inea justifica a falta de EIA-RIMA dizendo que “apesar do enquadramento legal classificar o empreendimento como de ‘significativo impacto’, os estudos técnicos apresentados pela empresa e analisados pelo Inea, demonstraram a inexistência de efetivo ou potencial significativo impacto ambiental”. Além disso, “não necessita da etapa de instalação, pois já chegam prontas para operar e sua atividade será temporária”.

Foto: Sara Ribeiro / Arayara.org

Em março deste ano, o Ministério Público Federal ingressou com a primeira Ação Civil Pública (ACP) contra o empreendimento e pediu a anulação da licença, que liberou parte do projeto para a construção das torres de transmissão, mesmo sem o EIA/RIMA e realização de audiência pública. Em junho, entrou com uma nova ACP. A decisão mais recente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em agosto, manteve a dispensa de EIA-RIMA para obter a licença e alega que a suspensão do projeto “gera grave ameaça a ordem pública, econômica e social, em razão da paralisação de projeto crucial no auge da maior crise do Estado do Rio de Janeiro, deficitário em obras de infraestrutura”.

Em nota, a Karpowership Brasil informou que “reforça que seu projeto de geração de energia, localizado no Porto de Itaguaí (RJ), tem todas as licenças e autorizações para operação comercial. A empresa segue os procedimentos administrativos, cumpre todas as normas e regulamentos das autoridades, respeitando toda a legislação brasileira e elevados padrões internacionais de sustentabilidade”.

Este texto foi produzido com o apoio de Climate Tracker América Latina

  • Bibiana Maia

    É jornalista ambiental graduada pela PUC-Rio, pós-graduada em Negócios Sustentáveis pela UFF e mestre em Práticas em Desenvolvimento Sustentável pela UFRRJ.

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