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Como a privatização da Eletrobras irá afetar o meio ambiente?

((o))eco consultou especialistas sobre os principais problemas decorrentes da aprovação da Medida Provisória 1.031/2021, que trata da privatização da Eletrobras

Carolina Lisboa ·
29 de junho de 2021 · 3 anos atrás

A Medida Provisória (MP) 1.031/2021, aprovada pelo Congresso Nacional em 21 de junho, abre caminho para a privatização da Eletrobras, estatal que responde por aproximadamente 30% da energia gerada no Brasil. O texto foi encaminhado para a presidência da República, que poderá aprovar integralmente ou vetar determinado trecho da proposta até 13 de julho. 

((o))eco consultou especialistas para saber quais seriam as consequências dos “jabutis” aprovados pela Câmara Federal, que inserem 8 GW de termoelétricas a gás natural sem que passem pelo processo de leilões –  competindo com as demais fontes renováveis, mais sustentáveis e econômicas –, garantem reserva de mercado para a contratação de 2 GW de Pequenas Centrais Hidroelétricas (PCHs) em potenciais regiões ambientalmente sensíveis e incluem as obras do Linhão de Tucuruí, que passam por terras indígenas dos Waimiri-Atroari sem o devido licenciamento ambiental.

Termoelétricas e gasodutos

A MP prevê a contratação de energia de reserva de termoelétricas movidas a gás natural, mesmo em regiões ainda não abastecidas por gasodutos. De acordo com Ricardo Baitelo, coordenador de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), a inserção das termoelétricas apresenta diferentes impactos ambientais. “O investimento em gasodutos, além de representar custos adicionais em relação a outras opções energéticas menos custosas para o atendimento dos maiores centros de carga do país, será comprometido em uma fonte energética que tornará mais distante a necessária descarbonização da matriz elétrica brasileira. A meta de zerar emissões líquidas em 2050 passa pela redução das emissões permitidas de combustíveis fósseis na década atual e pelo descomissionamento de térmicas previsto a partir de 2030-35, fechando a janela para a ampliação de infraestrutura de gás natural que perdure após esse período, justamente o que foi aprovado na MP 1.031/2021”.

Baitelo alerta que as emissões diretas decorrentes da operação dessas usinas provocariam um aumento anual entre 17,5 e 20 milhões de toneladas de CO₂eq durante os 15 anos de operação previstos pela MP. “Este montante, ao longo de 15 anos totalizaria mais de 260 milhões de toneladas de CO₂eq, mais do que as emissões de todo o setor de transportes brasileiro em 2019”. 

Por fim, Baitelo afirma que a inserção das térmicas operando em tempo integral e não apenas em período emergencial, como de costume, traria a consequência da redução do escoamento de fontes renováveis na matriz elétrica. “O Plano Nacional de Energia (PDE) 2030 simulou um cenário de inclusão de 8.000 MW de termelétricas (2.000 MW/ano de 2027 a 2030), coincidentemente o cenário consolidado no texto final da MP 1.031/2020, que resulta na diminuição de cerca de 18.000 MW de capacidade instalada de renováveis (sendo 12.000 MW de usinas eólicas e 3.500 MW de usinas fotovoltaicas)”.

Para Célio Bermann, professor associado do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da Universidade de São Paulo (USP), tornar obrigatória a construção de térmicas a gás natural é um contrassenso. “Por se tratar de um combustível fóssil, e muito embora a combustão de metano (CH4) nas usinas emita menos dióxido de carbono (CO2) do que o carvão mineral ou os derivados de petróleo (óleo diesel ou óleo combustível), as emissões serão extremamente significativas considerando a escala de 8 GW proposta”.

Bermann calcula que, considerando que todas as usinas serão a ciclo simples (sem recuperação de calor, o que as tornariam menos eficientes, mas com custos de investimento menor), e considerando um fator de capacidade de 80% (7.000 horas em operação por ano), teríamos uma produção total de 40.000 GWh, ou 40 bilhões de kWh. Considerando ainda um coeficiente de emissão de 453 g de CO2/kWh, teremos ao ano um incremento de emissão da ordem de 25,4 milhões de toneladas de CO2. “Muito embora isso não seja real, pois os equipamentos de geração sempre precisam entrar em manutenção, o que define um tempo menor de operação, se considerarmos que todas as usinas térmicas a gás natural fossem acionadas em tempo integral (8.760 horas do ano), o acréscimo de emissão alcançaria 31,8 milhões de toneladas anuais de CO2”.

O pesquisador acrescenta que é “um grande despropósito” definir a construção de usinas térmicas a gás natural em regiões onde não há disponibilidade, seja por inexistir reservas de gás natural, ou por não existirem gasodutos ou outras formas de transporte. “Os investimentos em infraestrutura e logística requeridos vão tornar essas usinas térmicas inviáveis financeiramente”, avalia.

Câmara aprovou a MP que autoriza a privatização da Eletrobras na semana passada. Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Para Luciano Losekann, professor associado do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), as termoelétricas são o ponto mais polêmico e incoerente da MP. “Tem uma reserva de mercado bastante significativa para termoelétricas a gás natural que irá alterar de forma 70% inflexível, e no Norte-Nordeste tem zonas que não tem gasoduto. Em termos ambientais, certamente é muito ruim. O gás natural emite menos que outras fósseis, mas ainda assim é uma fonte de elevadas emissões e que irá operar durante um prazo longo”. 

Para o pesquisador, haveria um grande impacto ambiental em construir infraestruturas e levar gasodutos para lugares remotos. “O problema é que serão construídos no Norte-Nordeste  ̶  principalmente no Norte, onde é mais crítico  ̶  para chegar o gás, produzir eletricidade, e ela voltar para o Sudeste. Então não faz nenhum sentido econômico nem ambiental, seria na verdade um desperdício de recursos. Qualquer que seja o olhar, a construção dessas termoelétricas não é uma iniciativa interessante para a sociedade brasileira. É um objetivo de grupos de interesse, que terá um impacto muito grande na forma de organização do setor elétrico brasileiro”.

O Boletim Leilão de Energia Elétrica do IEMA informou que, para o próximo leilão de empreendimentos termoelétricos, 84 unidades geradoras estão cadastradas, totalizando 43,2 GW de potência disponível para contratação. Destes, 36 projetos de usinas termelétricas propõem a utilização de água em seus sistemas de resfriamento. “De 70% a 80% da água captada pelas termelétricas não volta para a bacia hidrográfica em questão, pois evapora após o resfriamento do sistema. Por exemplo, uma usina termelétrica a gás natural pode demandar, aproximadamente, 1.000 litros de água por MWh. Uma usina desse porte funcionando o dia todo corresponde ao abastecimento público diário de uma cidade de aproximadamente 156 mil habitantes, consumindo 24 milhões de litros de água”.

De acordo com o Boletim, das 23 usinas cadastradas que utilizam água doce em seu sistema de resfriamento, nove encontram-se em bacias com balanço hídrico quantitativo preocupante, crítico ou muito crítico. “De todas as usinas concorrentes nos leilões, apenas cinco propõem a utilização de condensadores a ar. Essa tecnologia reduz consideravelmente o uso de água e, por isso, seu emprego está em expansão em todo o mundo”.

A Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) lamentou a contratação compulsória de 8 mil MW de térmicas a gás sem considerar a dinâmica do mercado, o que reduziria a competitividade da geração termelétrica. “Serão empreendimentos fixados, na maioria, em regiões com pouca ou nenhuma infraestrutura e sem disponibilidade do energético. A decisão obrigada por lei retira competitividade do gás natural e afasta diversificação de consumo em projetos industriais com potencial transformador”. Segundo a Firjan, a contratação das termoelétricas está associada à construção de gasodutos com recursos da CDE, encargo cobrado na conta de energia, onerando ainda mais o consumidor final de energia elétrica.

A Federação também criticou na MP a não criação de um programa de revitalização para a Bacia Hidrográfica do Paraíba do Sul prevista anteriormente. “A não destinação de recursos para a revitalização da bacia de Paraíba do Sul prejudica cerca de 14 milhões de pessoas localizadas em 185 municípios nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, que utilizam os recursos naturais da bacia para geração de renda e empregos”.

Pequenas Centrais Hidroelétricas – PCHs

A MP incluiu 2 GW de PCHs nos próximos leilões e mudou a definição das PCHs do limite de 30 MW para 50 MW. Luciano Losekann acredita que as PCHs têm um lado positivo para o meio ambiente quando comparadas com fontes fósseis, mas não é favorável à reserva de mercado. “Temos hoje outras fontes mais competitivas pelo lado econômico, e que têm impactos ambientais mais favoráveis, como a solar e a eólica. Então, na minha visão, seria mais interessante para o país e também em termos ambientais se não ocorresse reserva de mercado e se todas as fontes concorressem entre si. Mesmo pensando que as PCHs são renováveis, elas poderiam deslocar fontes que poderiam ser mais atrativas para o país”.

Já Célio Bermann acredita que é ilusório caracterizar PCHs como empreendimentos de baixo impacto ambiental. “Sejam elas de até 10 MW, como já foram anteriormente caracterizadas, ou de 5 a 30 MW como o são atualmente, conforme a Resolução Normativa da ANEEL no. 673 de 04/08/2015, desde que sua área de reservatório não ultrapasse 13 km2, as PCHs quando construídas em sequência num rio, o transformam numa sucessão de escadas, dificultando ou impedindo o transporte fluvial, inviabilizando práticas de lazer como o rafting, criando obstáculos para a piracema, e com isso, comprometendo a reprodução de peixes”.

Para o pesquisador, essas são as mesmas consequências que se verificam em hidrelétricas de maior porte. “A questão central é que as PCHs acabam sendo submetidas a processos de licenciamento simplificados, e ao se estender o limite para 50 MW, os processos de licenciamento também serão simplificados. Poderemos dizer que simplificar o licenciamento é positivo, pois para usinas maiores eles são muito exigentes, lentos e burocráticos. Essa tem sido a justificativa utilizada para seduzir os incautos ‘tomadores de decisão’ no sentido de facilitar os licenciamentos. Mas o que torna ainda mais abusivo é tornar obrigatório os 2.000 MW de PCHs, como também os 8.000 MW de usinas térmicas a gás natural nos próximos leilões. Não é assim que se administra a gestão energética de um país”.

Linhão de Tucuruí

A MP define a extensão do Linhão de Tucuruí até Boa Vista, em Roraima, com a justificativa de permitir que o Estado faça parte do SIN (Sistema Interligado Nacional). A emenda “jabuti” foi de autoria do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR). De acordo com Célio Bermann, essa obra já havia sido contratada por meio de leilão em 2011, com conclusão prevista em 2015, o que não ocorreu. “A questão é que o linhão passa por terras do povo indígena Waimiri-Atroari, e por essa razão a obra prevista não foi nem iniciada. Agora, com a MP a obra do linhão será realizada sem passar por um licenciamento ambiental. Tal despropósito se ajusta à recente aprovação do PL 490 pela CCJ da Câmara Federal”.

O linhão deve se estender por 721 quilômetros – desses, 123 quilômetros estão dentro da reserva Waimiri Atroari, localizada entre o Amazonas e Roraima. O relator da MP, deputado Elmar Nascimento (DEM-BA), apontou no texto final que faltaria apenas traduzir para a língua indígena o Projeto Básico Ambiental-Componente Indígena (PBA-CI), elaborado pelo empreendedor TNE (Transnorte Energia e o consórcio formado pela Alupar e Eletronorte), e apresentá-lo aos Waimiri Atroari. O documento já foi entregue e está sendo analisado pelos conselhos indígenas. Com isso, a União estaria autorizada a iniciar imediatamente o Linhão de Tucuruí.

Trecho do Linhão Tucuruí-Manaus entre Jurupari e Oriximiná. Foto: PAC/Divulgação.

A MP permite, assim, a construção do Linhão sem seguir os trâmites para a emissão do Licenciamento Ambiental pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A garantia a uma consulta prévia e esclarecida à Comunidade Waimiri Atroari tem respaldo nos artigos 231 e 232 da Constituição e também nas disposições da Convenção 169 da OIT, tratado internacional que versa sobre direitos humanos indígenas e do qual o Brasil é signatário.

Bermann avalia que a Eletrobrás e suas empresas coligadas – Furnas, Chesf, Eletronorte – “nunca foram exemplo de empresas de geração e transmissão de energia elétrica que se pautaram na defesa do meio ambiente e das populações compulsoriamente deslocadas para dar lugar a seus empreendimentos hidrelétricos”, e avalia que a privatização não vai favorecer positivamente estas questões: “Pelo contrário, verifica-se que o descaso, e muitas vezes a desconsideração com a questão ambiental que marcaram a ação da Eletrobrás no passado recente, é também a forma com que as empresas privadas de geração e transmissão tratam ecossistemas e populações”.

Já para Luciano Losekann, a Eletrobras tinha um apelo sustentável por ser uma empresa que historicamente vinha explorando hidroelétricas no Brasil. “Claro que nem todas as hidrelétricas tinham um impacto ambiental negligenciável – algumas agrediram muito o meio ambiente, na verdade – mas, sendo renovável, podemos pensar numa empresa de menores emissões”. O pesquisador avalia que a Eletrobrás tem um papel importante para a transição energética nos próximos anos, e recorda que a empresa tem muitos reservatórios no Brasil, e a maioria continuaria sob seu domínio. “Os reservatórios são importantes porque, se pensarmos nas novas fontes intermitentes, terão um papel central na integração das energias solar e eólica no setor elétrico brasileiro”. 

Por fim, ele avalia que a privatização poderá, ainda assim, manter o interesse coletivo: “A saída do Estado tem um impacto, pois é mais fácil atingir objetivos coletivos com uma empresa estatal, se pensarmos a Eletrobrás nesse papel de coordenadora do setor. Nesse modelo de capitalização adotado, de não ter um controle de uma outra empresa ou grupo e de o Estado deixar de ser o controlador mas continuando como o maior acionista, teríamos a possibilidade de preservar o interesse coletivo, lembrando que haveria o “golden share”, ou poder de veto do Estado, sobre assuntos estruturantes”.

  • Carolina Lisboa

    Jornalista, bióloga e doutora em Ecologia pela UFRN. Repórter com interesse na cobertura e divulgação científica sobre meio ambiente.

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