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Cyríaco, o Rondon que desvendou o Pantanal do Rio Negro

Autora de livro recém-publicado, jornalista fala da formação da região pantaneira que já pertenceu quase que pela metade a tio de marechal Rondon, e onde hoje se configura polo de preservação

Michael Esquer ·
23 de fevereiro de 2023 · 1 anos atrás

Era final do século XIX e começo do século XX. A Cyríaco da Costa Rondon pertenciam quase metade das terras da atual “Nhecolândia” – entre elas a própria Fazenda Rio Negro, onde mais tarde seriam filmadas cenas tanto da primeira quanto da segunda versão da novela Pantanal, que foi ao ar no ano passado. Essas posses fizeram com que essa sub-região pantaneira em Mato Grosso do Sul fosse até mesmo chamada de “Cyriacolândia” por Marechal Cândido Rondon, de quem Cyríaco era tio. 

Em meio à natureza imperiosa que ditava as regras no bioma, foi a criação do gado solto (pecuária extensiva) a prática adaptada e difundida por fazendeiros como Cyríaco na região. 

Meio século depois, parte do território do pioneiro, que um dia alcançou mais de 350 mil hectares, começa a ser adquirido por novos proprietários. Vindos de outras partes do País, esses novos donos encontram ali um ecossistema ainda preservado, onde passa-se a configurar um grande corredor de preservação, com a implementação de uma série de iniciativas – turismo ambiental, serviços ambientais, venda de crédito de carbono, projetos de conservação de espécies ameaçadas, entre outras. 

É neste cenário que o livro da jornalista Teté Martinho “Memórias de um Pantanal: Histórias de homens e mulheres que desvendaram a região do rio Negro” busca documentar e perpetuar a história particular dessa sub-região do Pantanal – um dia composta por propriedades gigantes que pertenceram a pioneiros como Cyríaco Rondon e Joaquim Eugênio Gomes da Silva, o Nheco, de quem mais tarde essa região iria herdar o nome: “Nhecolândia”.

Fruto de dois anos de pesquisa que reúne desde fatos históricos documentados a novas entrevistas com testemunhos vivos — fazendeiros, empresários, historiadores e conservacionistas —, a obra foi lançada neste mês pela Documenta Pantanal, e mostra os movimentos que contribuíram para a formação cultural dessa que é uma das nove sub-regiões que formam a maior área úmida do mundo. 

“A gente foi buscar na história um pouco o começo dessa vocação [de preservação], que tem a ver com o fato dessa região ter sido uma grande propriedade que ficou coesa durante boa parte do século 20. Uma grande propriedade que se dedicou à pecuária extensiva, uma atividade que, segundo os ambientalistas, não agride o meio ambiente, pois se adapta a ele”, conta a jornalista ao ((o))eco. Segundo o livro, o bioma como um todo teria tido 5 milhões de cabeças de gado nos anos 70. 

Em um sobrevoo por mais de cinco séculos de história da região, o livro também mostra que esse pedaço do Brasil foi, durante a colonização, um “território em disputa”. 

“O Pantanal sul foi usurpado e depois reusurpado. Primeiro, dos povos originários, quando o Tratado de Tordesilhas deu à Espanha esse pedaço da América. Depois pelos portugueses e paulistas, que empurraram a fronteira do Brasil e se apossaram dessas terras”, comenta Martinho. “As disputas entre Portugal e Espanha se estenderam até a Guerra do Paraguai, no século 19, e envolveram a escravização e o genocídio de boa parte dos povos originários”, acrescenta.

“No projeto de país que se desenhou a partir da chegada dos europeus, o Pantanal foi um território inóspito a ser explorado e, sobretudo, arrebatado. Dos espanhóis, que se achavam seus donos; e dos guaranis, guaicurus, paiaguás, guanás, guatós, bororos e outras etnias, que o eram de fato. Difícil imaginar que, no processo de anexação do atual Mato Grosso do Sul a um Brasil que nascia, a sub-região do rio Negro inteira tenha pertencido a apenas dois homens.”

Teté Martinho, na abertura do primeiro capítulo do livro.
Jornalista Teté Martinho. Foto: Arquivo pessoal

((o))eco: Me fala um pouco de você. Quem é Teté Martinho? 

Teté Martinho: Eu comecei no jornalismo cultural, passei por jornais como Jornal da Tarde e Folha de São Paulo, depois trabalhei 10 anos em revistas de decoração, femininas e culturais. Em 2001, eu saí de redação e comecei a trabalhar como autônoma. Editei catálogos e textos em campos como arte e design. Mais recentemente, me aproximei do terceiro setor, de organizações de ação socioeducativa e socioambiental. O trabalho com a Documenta Pantanal se insere dentro disso, do qual esse livro faz parte. É uma carreira bem diversa, sempre nesse âmbito mais das humanas, digamos. 

Como surge a ideia do livro? 

Era um livro que já estava no nosso horizonte faz tempo. A Documenta Pantanal, como o nome diz, é uma organização dedicada a documentar essa região e a difundir informação sobre ela. A ideia é tornar o Pantanal mais conhecido dos brasileiros, porque na verdade sabe-se pouco sobre ele. A gente acha, por exemplo, que o Pantanal é uma coisa só, e não é. Ele é composto por pelo menos nove sub-regiões, cada uma com a sua particularidade. 

Foto: Divulgação

A ideia de falar do Pantanal sul nasce do fato de que essa região começa a se configurar, agora, no começo do século 21, como um polo de preservação. Entre muitos dos novos proprietários dessas antigas fazendas locais, há o desejo de formar ali um corredor de preservação e um polo de experiências na área de serviços ambientais, de reintrodução de espécies animais, de conservação e de proteção. 

E a gente vai buscar na história um pouco o começo dessa vocação, que tem a ver com o fato da região ter sido uma grande propriedade que ficou coesa durante boa parte do século 20 e se dedicou à pecuária extensiva, uma atividade que se adapta ao ambiente. Então há uma herança que vem dessa forma de ocupar e de explorar economicamente a região.

Quem é o Cyríaco e como a história dele se relaciona com o Pantanal?

Na verdade, sabe-se muito pouco sobre o Cyríaco. A família conta duas versões da história dele. A mais plausível é que ele nasceu em Mimoso (MT) e mudou-se, ainda jovem, para Poconé (MT), onde herdou uma fazenda e algumas cabeças de gado. Ele teria perdido o rebanho todo numa enchente, e partido para Corumbá (MS) em busca de outros rumos. Lá ele conhece a primeira mulher dele, herdeira da fazenda Jacadigo, uma fazenda bem conhecida lá. 

Ele tem seis filhos com essa primeira mulher. Então ela morre e ele volta a se casar, no finzinho do século XIX, com uma parenta do Nheco, que já se afazendara no Rio Negro. Talvez por conta disso, o Cyríaco começa a explorar essa região e descobre ali umas terras devolutas. Então ele acaba requerendo uma gleba grande de terra, a Fazenda Rio Negro, e se estabelece lá com os filhos do primeiro casamento, a segunda mulher, Thomázia, e os filhos que tem com ela (ao todo, seriam 13). A Fazenda Firme, do Nheco, e a Fazenda Rio Negro, do Cyríaco, são a origem da Nhecolândia.

A fachada do sobrado da Fazenda Rio Negro, que serviu de locação principal à novela Pantanal, nos anos 1990, e voltou a ser usada em seu remake de 2022. Fogo: Everton Ballardin/Divulgação

Relação de Cyríaco com Marechal Rondon

Marechal Rondon. Foto: Reprodução / Everton Ballardin / Divulgação
Cyríaco da Costa Rondon em seu único retrato conhecido. Foto: Reprodução / Everton Ballardin / Divulgação

O curioso é que o marechal Cândido Mariano Rondon é o Rondon mais conhecido da história do Brasil, e ele não é Rondon. Foi criado por um tio que era filho de uma mulher chamada Rosa Rondon, e adotou esse sobrenome quando já estava no Exército. A família Rondon é espanhola, veio para São Paulo e depois chegou ao Mato Grosso na época das bandeirantes. 

O marechal Rondon chama o Cyríaco de tio nas memórias dele, mas a verdade é que, apesar de virem do mesmo lugar, Mimoso (MT), eles só se conheceram em 1902, quando o Cândido, como comandante da Comissão de Construção de Linhas Telegráficas Estratégicas Cuiabá – Corumbá, chega ao Pantanal sul, onde o Cyríaco já está estabelecido. 

O telégrafo é estratégico no projeto de integração do território da República, e o futuro marechal Rondon é o grande pivô disso. Em suas memórias, ele conta: “Fui conhecer o Cyríaco que dizem ser meu parente e de fato ele deve ser porque ele vem de Mimoso como a minha avó Rosa Rondon”. Enfim, os dois convivem um pouco, o Cyríaco o ajuda a achar um lugar para construir a estação telegráfica de Aquidauana (MS). 

O curioso é que o Cândido, em sua passagem por lá, faz um primeiro mapa dessa região e a batiza de Cyriacolândia, mas, por algum motivo, ela ficaria conhecida como Nhecolândia. A convivência deles é muito curta, até porque o Cyríaco morre muito cedo, e o Rondon segue para virar esse ícone da nossa história.

Construção da linha de telégrafo que ligou Cuiabá a Corumbá, a cargo de Rondon: postes eram feitos de aroeira ou angico. Foto: Museu do Índio/Funai

A partir de suas pesquisas, o livro faz uma “viagem” por mais de cinco séculos de história pela história do Pantanal sul. O que você viu nesse processo? 

Na verdade, o que a gente faz é um sobrevoo pela história dessa região para mostrar o que era esse pedaço de Brasil durante os séculos de colonização. O Pantanal sul foi usurpado e depois reusurpado. Primeiro, dos povos originários, quando o Tratado de Tordesilhas deu à Espanha esse pedaço da América. Depois, pelos portugueses e paulistas, que empurraram a fronteira do Brasil e se apossaram dessas terras. 

Uma das coisas que eu aprendi escrevendo esse livro é que os povos originários desta região impuseram uma resistência feroz ao colonizador, muito mais do que outras etnias. Você tem exemplos diferentes: os Guarani foram aliciados pelos espanhóis logo de início, mas os Guaicuru, que eram guerreiros hábeis, se apropriaram do cavalo, que foi trazido para América pelo colonizador espanhol, e fizeram dele uma arma de guerra. 

Os Paiaguás, que são conhecidos como canoeiros, também resistiram bravamente à ocupação do território e às tentativas de aldeamento e de escravização de portugueses e espanhóis. Mas mais tarde, no século 18, os portugueses foram se fortificando e começaram a fazer expedições cruéis (punitivas) que dizimaram boa parte desses povos. 

Dentro disso tudo, como que a história do Cyríaco se insere?

Em uma região em disputa, era estratégia do Império e depois da República conceder terras a quem se mostrasse interessado em explorá-las, porque isso era uma forma de garantir o território. A história do Cyríaco, como a do Nheco, tem a ver com isso. 

Eles ganharam muitas terras, o Cyríaco já da República, o pai do Nheco ainda no Império, antes da guerra do Paraguai, nesse contexto de um Estado brasileiro nascente que precisava sacramentar a ocupação do território, que era espanhol, pelo Tratado de Tordesilhas, e foi sendo ocupado e renegociado. 

O Cyríaco torna-se um desses grandes senhores de terra aproveitando-se dessa estratégia. E, como outros fazendeiros pioneiros, começa a criar gado.

E como era a relação de Cyríaco com essas terras que ele passa a ter?

A planície pantaneira é uma região de natureza muito imperiosa, não tem muito como lutar contra ela. O que esses pioneiros introduziram ali foi essa pecuária extensiva, em terras que iam crescendo com a compra e a anexação de outras glebas. No caso dos Rondon, depois da morte do Cyríaco, a família seguiu ampliando o rebanho. A pecuária extensiva se adaptou bem a esse ambiente, e foi uma atividade muito importante nessa região durante todo o século 20, até os anos 1970, quando o Pantanal chegou a ter 5 milhões de cabeças de gado. 

Toda a cultura dessa região se desenvolveu em torno dela, uma atividade que tem um impacto baixo na natureza, já que se submete ao seu regime de cheias e desmata pouco, porque já há campos suficientes. A pecuária da planície pantaneira decai no fim do século 20, quando começa a enfrentar a concorrência da pecuária do planalto, que oferece um produto mais barato, já que é uma região mais acessível, o que torna a logística da produção e do transporte menos complexa. 

A partir daí, essas grandes fazendas começam a ser vendidas. Elas já vinham se dividindo por herança, mas mantinham-se mais ou menos coesas, praticando a mesma atividade e observando uma relação em geral muito respeitosa e amorosa com a natureza. No livro vários familiares falam sobre isso. Esse amor pela natureza, esse ver-se como parte dela, essa ideia de não agredir, de não tentar subjugar, são todos elementos da cultura que se desenvolve ali, que remete às origens indígenas e que, de certa forma, se preserva mesmo depois que as fazendas começam a ser vendidas.

Vida na Fazenda Rio Negro. Foto: Reprodução/Everton Ballardin/Divulgação

A relação estabelecida por ele e sua família com essas terras na Nhecolândia influencia a forma como esses novos proprietários estão manejando essas terras agora? 

Certamente o fato dessas terras terem se mantido preservadas acabou por atrair para elas pessoas e organizações que acreditam na necessidade de proteger essa natureza de características únicas, além de outras que trabalham para isso. O primeiro exemplo foi a Conservação Internacional, que comprou a fazenda Rio Negro no fim dos anos 1990. 

No último capítulo do livro, a gente mostra que o que está se formando ali é um corredor de preservação, que envolve, por exemplo, o Parque Estadual do Pantanal do Rio Negro, e a fazenda Santa Sofia, que era uma das fazendas do Cyríaco, foi comprada por um grupo de organizações de São Paulo e está sendo administrada pela Onçafari, uma ONG voltada para preservação de espécies animais em extinção, como a onça-pintada. Enfim, essa região passa a abrigar essas e outras iniciativas de turismo ambiental, educação ambiental, serviços ambientais e venda de crédito de carbono. Nem todas as terras que integram essas iniciativas pertenceram ao Cyríaco, mas estão ali contíguas.

  • Michael Esquer

    Jornalista pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), com passagem pela Universidade Distrital Francisco José de Caldas, na Colômbia, tem interesse na temática socioambiental e direitos humanos

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