Há pouco mais de 16 anos, a Petrobras recebeu uma licença prévia (LP) para prosseguir em seu plano de implantar o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj) numa localização com elevada sensibilidade ambiental. Duas condicionantes foram incluídas na licença por determinação do Ibama, obrigando a empresa a reflorestar aproximadamente 4.300 hectares para atenuar os impactos previsíveis em mananciais que abastecem 2 milhões de pessoas no leste fluminense e em duas unidades de conservação federais que protegem quase metade dos manguezais do estado do Rio de Janeiro. Desde então, dezenas de licenças de instalação para diversas obras e equipamentos do Comperj têm sido aprovadas pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea-RJ) sem que as duas obrigações impostas à petroleira tenham sido atendidas.
No mais recente capítulo dessa novela, a diretoria de licenciamento ambiental do Inea emitiu parecer técnico favorável à concessão de uma licença de operação e recuperação (LOR) imprescindível para a Petrobras obter aval da Comissão Estadual de Controle Ambiental (Ceca) ao funcionamento da unidade de processamento de gás natural (UPGN) do Polo Gaslub de Itaboraí (ex-Comperj), no leste fluminense.
O parecer ignorou o descumprimento das condicionantes 30.1 e 30.2 da LP FE013990/2008, emitida em 26 de março de 2008, que obrigaram a Petrobras a: restaurar 2.014 hectares de matas ciliares nas sub-bacias dos rios Caceribu e Macacu, que margeiam o Gaslub, até suas nascentes (30.1); e comprar, reflorestar e promover a manutenção de uma zona tampão de 2.308 hectares no município de Guapimirim, entre o Gaslub e a Área de Proteção Ambiental (APA) Guapi-Mirim (30.2). Ambas as obrigações também foram incluídas na Autorização Ibama nº 001/2008, emitida em 25 de março de 2008, que permitiu ao Inea conceder a LP ao Comperj.
Condicionante 30.1
No caso da condicionante 30.1, a Petrobras entende que já fez sua parte ao depositar R$ 396 milhões no Fundo da Mata Atlântica (FMA-RJ) entre 2019 e 2020, destinados à restauração florestal de 5.005,8 hectares, prioritariamente nas sub-bacias dos rios Caceribu e Macacu e afluentes e na zona de amortecimento da Estação Ecológica (Esec) Guanabara. Administradas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a APA Guapi-Mirim e a Esec Guanabara abrigam quase metade dos manguezais do estado do Rio de Janeiro.
Os recursos transferidos ao FMA-RJ atendem a obrigações assumidas pela companhia no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) do Comperj assinado em agosto de 2019 com o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), a Secretaria de Estado do Ambiente e Sustentabilidade (Seas-RJ) e o Inea. Em 2020, a Seas-RJ criou o programa Florestas do Amanhã (FDA) para empregar o dinheiro repassado pela petroleira no cumprimento da meta de restaurar 5.005,8 hectares de vegetação nativa.
Este reflorestamento é vital para atenuar os impactos adversos do Comperj sobre as duas UCs federais, posicionadas junto à Baía de Guanabara. Por sua vez, a sobrevivência dos manguezais será cada vez mais importante para proteger a linha costeira e populações litorâneas de eventos climáticos extremos, como ressacas mais intensas e frequentes, à medida que a temperatura da Terra continua aumentando em decorrência das emissões de gases de efeito estufa causadas pelo desmatamento e pela queima de derivados do petróleo e gás natural.
Porém, o FDA havia executado até maio de 2023 (últimos dados disponíveis) apenas cerca de R$ 8 milhões no plantio de 314 hectares em lotes espalhados em dez cidades da Região Hidrográfica V (Baía de Guanabara), fora das áreas prioritárias indicadas pelas condicionantes 30.1 e 30.2 da LP do Comperj.
Condicionante 35
O parecer técnico do Inea é omisso ao não informar que a condicionante 35, averbada em 2012 na licença de instalação (LI) IN01540/2009, foi igualmente não atendida pela Petrobras e o Inea. Ela reduz a obrigação da Petrobras à de apoio técnico e financeiro ao poder público na implantação e manutenção do Parque Natural Municipal Águas de Guapimirim (zona tampão prevista na condicionante 30.2 da LP do Comperj). O Inea definiu em R$ 4 milhões o apoio financeiro da empresa, que completou o depósito da quantia em 2015.
Até hoje, contudo, o Termo de Compromisso (TC) do Parque Águas, assinado em dezembro de 2013 entre Petrobras e Inea, não foi quitado pelo órgão ambiental estadual, como relata o próprio parecer técnico que recomendou a aprovação da LOR para a unidade de utilidades da UPGN do Gaslub. Uma UC de proteção integral, o Parque Águas permanece no papel, aguardando regularização fundiária, como mostrou reportagem anterior de ((o))eco, publicada em 25 de março passado no site ((o))eco.
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Imagens produzidas com drones pelo ICMBio no fim de maio passado e cedidas a ((o))eco confirmam o descumprimento das obrigação da Petrobras referente ao Parque Águas (zona tampão). Áreas desmatadas e degradadas destacam-se numa região que já deveria ter sido reflorestada pela Petrobras e o Inea.
Ibama barrou aprovação de LOR
Embora não esteja disponível no portal do Inea na internet, a reportagem teve acesso ao parecer do Inea, emitido em 14 de março passado. O documento orientaria o voto a favor da LOR de ao menos nove dos 15 membros do plenário da Ceca, vinculados diretamente ao governo estadual, na reunião do colegiado realizada em 30 de abril passado. A LOR autorizaria a Petrobras a operar a unidade que fornecerá à planta de refino de gás natural do Gaslub água, energia e vapor, entre outras utilidades, pré-condição para a petroleira obter a concessão da LO para a UPGN.
A tentativa da gestão do governador Cláudio Castro (PL) de aprovar a LOR foi abortada pelo pedido de vistas no processo feito pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Após pedir vistas do processo para analisá-lo com maior profundidade, o superintendente do Ibama no Rio de Janeiro, Rogério Rocco, enviou à Seas-RJ, ao Inea e à Ceca duas notas técnicas com uma bateria de argumentos contrários à aprovação da LOR sem o atendimento das condicionantes, inclusive contendo citações de documentos da própria área ambiental do governo fluminense.
A Nota Técnica nº 1/2024, emitida em 19 de abril passado pela superintendência do Ibama no Rio de Janeiro (Supes-RJ/Ibama), conclui que Petrobras e governo fluminense descumpriram medidas mitigadoras de restauração florestal estabelecidas pelo órgão ambiental federal na Autorização 01/2008, expedida em 25 de março de 2008, e reproduzidas na licença prévia do Comperj (LP FE13990), aprovada no dia seguinte (26 de março) pela então Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema), antecessora do Inea. Já a Nota Técnica nº 2/2024 utiliza basicamente os argumentos da nota anterior para contestar o parecer técnico do Inea favorável à concessão da LOR à Petrobras.
Além do Ibama, o descumprimento das duas condicionantes da LP também é objeto de investigação do Ministério Público Federal (MPF) em São Gonçalo (RJ). Por meio de ofício remetido aos dois órgãos em 6 de maio, o procurador da República Marco Mazzoni pediu esclarecimentos sobre o cumprimento das duas condicionantes e a respeito da contaminação do terreno onde o Comperj foi implantado por metais pesados e substâncias químicas acima dos padrões previstos pela legislação. Mazzoni termina o ofício recomendando ao presidente da Ceca que mantenha suspensa deliberação sobre a concessão da LOR à estatal enquanto as dúvidas do MPF não forem dirimidas.
“No mínimo, a situação parece indicar a pertinência da dúvida original, de não haver base suficiente para o licenciamento. No entanto, qualquer manifestação ministerial seria precipitada. Precisamos aguardar o devido processo e evitar valorações prematuras”, informou Mazzoni a ((o))eco por meio da assessoria de imprensa do MPF.
Ante as notas técnicas e um ofício enviado à Ceca pelo superintendente do Ibama no Rio e o ofício do MPF, não restou outra opção ao presidente da Ceca, Mauricio Couto Cesar Júnior, que não a de retirar o processo da LOR da pauta da reunião do colegiado ocorrida em 7 de maio para que o Inea pudesse analisar e responder as questões. O MPF havia concedido 72 horas para o Inea responder os questionamentos, mas aceitou o pedido do órgão para que o prazo fosse postergado até 20 de julho.
Com custo estimado pelo mercado entre R$ 2,5 bilhões e R$ 3 bilhões, a planta de processamento de gás natural do Gaslub iniciaria operação em agosto próximo, mas as intervenções do Ibama e do MPF no processo e as negociações mediadas pelo MP estadual para o cumprimento da condicionante 30.2 poderão retardá-la. A UPGN receberá gás natural da bacia de Santos por meio do gasoduto Rota 3, que possui 355 km de extensão, sendo 307 km no trecho marítimo e 48 km no terrestre, entre Maricá e o Gaslub.
A UPGN do Gaslub é um dos investimentos prioritários da gestão da nova presidente da petroleira, Magda Chambriard, que assumiu o cargo no final de maio. Podendo refinar diariamente 21 milhões de metros cúbicos de gás, a UPGN do Gaslub ampliará para 46 milhões de metros cúbicos por dia a capacidade total de processamento de gás natural proveniente da bacia de Santos pela Petrobras.
Reações
A Seas-RJ não respondeu às questões enviadas pela reportagem a respeito das notas técnicas do Ibama, apesar dos diversos contatos feitos com a assessoria de imprensa do órgão por email, telefone e WhatsApp desde o dia 23 de maio passado.
A reportagem solicitou à gerência de imprensa da Petrobras posicionamento sobre as notas técnicas do Ibama e cópia de eventual certidão concedida pelo Inea comprovando o cumprimento das condicionantes 30.1 e 30.2 da LP FE013990/2008. A estatal respondeu que não conseguiria enviar o documento, nem esclareceu se tal certidão foi de fato emitida.
Quanto às notas técnicas do Ibama, a Petrobras declarou que “todas as condicionantes do licenciamento e obrigações do TAC foram cumpridas e que os monitoramentos e medidas de proteção ambiental permanecem sendo realizados a fim de prevenir e mitigar os impactos ao meio ambiente da região”.
A secretária municipal de Ambiente e Sustentabilidade de Guapimirim, Mayara Barroso, preferiu não comentar as notas do Ibama. Por meio de sua assessoria, comunicou que ainda não há “previsão de novas informações para atender ao solicitado” porque ocorrem no momento tratativas referentes ao assunto com os órgãos competentes. O Parque Águas foi criado em janeiro de 2013 por decreto do então prefeito de Guapimirim.
A reportagem também solicitou posicionamento sobre as notas técnicas do Ibama ao promotor Tiago Veras, do MPRJ, responsável pelo acompanhamento do cumprimento dos dois TACs do Comperj assinados com Seas, Inea e Petrobras em agosto de 2019 (TAC 1) e fevereiro de 2020 (TAC 2). Por meio da assessoria de imprensa do MPRJ, Veras informou que “as perguntas feitas ainda estão em fase de análise pela promotoria, no bojo dos processos administrativos que acompanham e fiscalizam o cumprimento das obrigações constantes nos dois TACs do Comperj”.
Descumprimento de condicionantes pode agravar crise hídrica
Na Nota nº 1/2024, o Ibama afirma que “o cumprimento da Condicionante 30.1 [da LP] (…) é essencial para garantir a sustentabilidade do COMPERJ [Gaslub], atenuando os impactos negativos diretos e indiretos de sua operação. Considerando que a região de inserção do empreendimento já vem enfrentando diversos problemas como ocupação desordenada, degradação de ecossistemas naturais, alterações do regime hidrológico e usos inapropriados do solo, o funcionamento do COMPERJ sem o adequado atendimento às condicionantes ambientais poderá levar ao agravamento desses problemas e a um rápido agravamento da crise hídrica nos municípios abastecidos pelo Sistema Imunana-Laranjal”.
A nota prossegue lembrando que as matas ciliares “atuam como filtros de sedimentos e poluentes, reduzindo o assoreamento e a poluição dos rios, contribuindo também para a estabilidade geológica e do ciclo hidrológico, ao reduzir as oscilações extremas na vazão, prevenindo secas e enchentes. Ademais, as matas ciliares também atuam como corredores ecológicos, contribuindo para a conservação da biodiversidade de fauna e flora, além de garantirem a existência de ecossistemas úmidos que abrigam diversas espécies endêmicas, sejam elas aquáticas ou terrestres”.
Para o Ibama, há “falta de comprometimento da Petrobras, do Estado do Rio de Janeiro e de seu órgão ambiental – o INEA com essa e outras condicionantes ambientais do COMPERJ”, considerando os 16 anos transcorridos desde que a LP foi emitida, em 2008. “A instalação e a operação de um empreendimento de tamanha magnitude exigem todos os cuidados possíveis, visando à salvaguarda do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado das populações que vivem na região, sobretudo no que se refere à segurança hídrica”.
Os efeitos ambientais da impermeabilização de uma área de 5.000 hectares onde se localiza o Gaslub/Comperj também preocupam o Ibama, uma vez que ela “isola o solo da atmosfera, impedindo a infiltração das águas pluviais e trocas de gases, importantes para a recarga das águas subterrâneas, ocasionando o desequilíbrio da composição entre água doce oriunda dos rios e salgada, proveniente do mar, o que implica negativamente na dinâmica dos manguezais”.
A nota recorda que os ecossistemas de manguezal dependem para o seu funcionamento do equilíbrio entre a água salgada marinha e a água dos rios que neles desembocam. “Eventuais reduções no aporte de água doce podem gerar o avanço da cunha salina marinha”, podendo inviabilizar a sobrevivência do mangue.
A remoção da vegetação do terreno onde o Comperj foi construído descaracterizou a paisagem natural, promovendo a fragmentação e o isolamento de remanescentes, “exatamente na região que abriga os mananciais de captação de água para o abastecimento de mais de 2 milhões de pessoas pelo Sistema Imunana-Laranjal”.
Recomendações do Ibama
A Nota Técnica nº 01/2024 da superintendência do Ibama no estado do Rio de Janeiro (Supes-RJ) faz cinco recomendações às partes envolvidas no imbróglio do licenciamento ambiental do Gaslub (ex-Comperj):
- O governo estadual do Rio de Janeiro e a Petrobras devem tomar providências imediatas visando à regularização fundiária da área onde foi criado o Parque Natural Municipal Águas de Guapimirim;
- Reservar recursos do TAC 1 do Comperj para a restauração florestal de 2.308 hectares da zona tampão entre Gaslub (ex-Comperj) e APA Guapi-Mirim, conforme determinação da licença prévia (LP) do Comperj, emitida em março de 2008. A zona tampão ocupa o polígono onde foi criado o Parque Águas;
- Liberação de recursos para a restauração florestal das matas ciliares dos rios Guapi-Macacu, Caceribu e afluentes por meio da metodologia definida pelo grupo de trabalho instituído pela Portaria INEA nº 43/2009;
- Aplicação de obrigação acessória de igual valor ao que se destinará à restauração dos 4.322 hectares em investimentos na região de influência da APA Guapi-Mirim e Esec Guanabara e sua zona de amortecimento. A obrigação acessória é justificada como reparação das perdas e danos ambientais difusos resultantes do extenso lapso temporal de mais de 15 anos de descumprimento das obrigações de restauração florestal da região.
- Acionamento do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania Ambiental do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) para a pactuação das medidas recomendadas na nota técnica entre todas as partes envolvidas, tendo em vista a complexidade que envolve a matéria.
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