Em fevereiro foi aberta a consulta pública para o edital da Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (Codemig), que visa consolidar uma parceria público-privada para a comercialização das águas minerais de Caxambu e Cambuquira, municípios integrantes do Circuito das Águas do Sul de Minas Gerais, reconhecidos internacionalmente pelo valor terapêutico de suas fontes.
O edital foi recebido com insegurança pela população local e colocou em evidência um assunto ainda mal resolvido no país: o gerenciamento de um recurso essencial à vida e cada vez mais vulnerável à superexploração.
Título de “Comunidade Azul” em risco
Segundo relatou Ana Paula Lemes de Souza, atual tesoureira e ex-presidente da ONG Nova Cambuquira, organização que luta a favor da preservação das águas minerais, a notícia sobre o edital foi comunicada no mesmo período em que Cambuquira e a Universidade Federal de Lavras recebiam dois seminários sobre a gestão da água como bem público, tendo como principais palestrantes, pesquisadores suíços da Universidade de Berna e da organização Movement of Citizenship Waters.
O anúncio teve muita repercussão não apenas pela coincidência com os seminários, mas também por Cambuquira ter recebido em 2014 o certificado de “Comunidade Azul”, título concedido pelo órgão canadense “Conselho dos Canadenses”, a municípios que seguem diretrizes humanitárias na gestão pública de suas águas.
A pedido da ONG Nova Cambuquira, a presidente do Conselho dos Canadenses, Maude Barlow — que também é ex-conselheira da Assembleia Geral da ONU — enviou no dia 2 de março uma carta ao governador Fernando Pimentel (PT-MG) questionando o edital e defendendo a manutenção das águas locais como um ”bem público sob controle público”.
Na carta, ela também cita o dado divulgado em um relatório da ONU que revela que, em menos de uma década, a demanda global por água vai superar a oferta em 40%.
Segundo a tesoureira Ana Paula, outra carta foi redigida nesse período, mas pela equipe da ONG, e enviada à Codemig. O objetivo foi comunicar a insatisfação da comunidade quanto à iminente perda do título de “Comunidade Azul” e os riscos que uma gestão não-participativa poderiam trazer para o meio ambiente e a cultura da região.
“Colocar as fontes sob gestão de parceria público-privada fará com que Cambuquira perca o reconhecimento internacional e o controle de sua água, que passa a ser um bem gerido pelas empresas que querem somente o lucro e não se preocupam com a preservação”.
Ela também conta que a organização é a favor da reclassificação legal da água, de bem mineral (conforme ainda consta hoje na legislação) para recurso hídrico, e da revitalização do turismo nas estâncias hidrominerais por meio de soluções como a disseminação do uso terapêutico ou “crenoterápico”(tratamentos feitos com base no uso de águas minerais) das águas: “Se assim for estabelecido, haverá limitações exploratórias, justamente pelo entendimento de que a água é um bem social, necessário à sobrevivência do homem. Uma outra ideia seria a retomada de uma Comissão das Águas, voltando a valorizá-las enquanto um bem medicinal, com tratamento pelo SUS.”
Proposta sob impasse
No dia 4 de março, houve uma manifestação nas ruas de Caxambu, organizada pela Associação Amigos do Parque (Ampara) e a ONG RenovaMata, com a participação da ONG Nova Cambuquira, parceiros locais, ativistas e moradores da região. “Temos força popular e união. Até a Câmara de Vereadores, por meio de todos os vereadores, se posicionou contra, oficialmente, perante a Codemig”, disse Ana Paula. Além da Câmara de Cambuquira, os vereadores de Caxambu também são contra a forma como o edital foi feito.
Como reflexo dos protestos, no dia 9 de março, a Promotoria de Justiça de Cambuquira lançou uma medida cautelar onde foi requerida a suspensão imediata da consulta pública, e o caso atualmente aguarda a resposta do Juiz Federal.
Perguntados sobre o movimento contrário ao edital, a Codemig, através de sua assessoria de comunicação, afirmou que a empresa ainda não foi questionada judicialmente sobre o assunto e reforça que não houve abertura de edital para licitação, mas apenas uma consulta pública prévia.
“A futura licitação procura estabelecer uma parceria produtiva com sócio apto a assegurar a execução do serviço com qualidade, em benefício de Minas Gerais e dos mineiros”, afirmou. A assessoria também esclareceu que as fontes nas quais o acesso ao público já é liberado, permanecerão sem alterações.
O prefeito de Caxambu, Diogo Curi (PSDB), afirmou que o poder executivo municipal não é contrário à exploração das águas minerais, “porém desde que seja feita com responsabilidade, respeitando a vazão natural das águas e sem bombeamento, para não afetar a nascente”, afirmou. Ainda segundo o prefeito, a exploração deveria se limitar a parte da “vazão da fonte, com muita cautela, para que nosso patrimônio seja preservado para as futuras gerações.”
O caso de São Lourenço
Até 2015, a exploração nas fontes de Cambuquira e Caxambu eram feitas por uma subsidiária da empresa estatal Copasa, e agora a ideia é implementar um sistema que remete ao aplicado no município de São Lourenço, onde o parque de águas é explorado em regime de concessão privada desde 1994, pelo grupo Perrier/Nestlé.
“São Lourenço é o triste exemplo do que não pretendemos seguir”, completa Ana Paula, em referência às denúncias de superexploração e falta de transparência que a Nestlé sofreu no final da década de 90.
Na época, ativistas da associação de São Lourenço, Amar’Água, e integrantes do Ministério Público de Minas, como o promotor de justiça Bergson Cardoso Guimarães, da Coordenadoria Regional, em Lavras – também envolvido no processo atual com a Codemig – trabalharam juntos para levar à frente acusações como a do incremento da capacidade de engarrafamento da fonte Primavera.
Segundo consta no registro histórico feito pela Amar’Água, desde que a Nestlé iniciou a exploração na fonte Primavera, a vazão subiu de uma média de 8 mil litros/ hora para 24.910 litros/hora, e houve a desmineralização artificial das águas para a padronização de seu sabor – o que resultou na diminuição da quantidade dos minerais em fontes vizinhas e o rebaixamento do terreno próximo à lavra.
A exploração da fonte Primavera foi proibida em 2002 e seu subproduto, a água Pure Life, foi retirada do mercado. Atualmente, temas como a falta de um estudo hidrogeológico aprofundado para determinar a capacidade de reposição dos aquíferos (feito pela última vez em 1997), a confidencialidade nos números de exploração pela Nestlé e a ocupação urbana desordenada em São Lourenço, resultando na impermeabilização de áreas de recarga dos lençóis freáticos e a captação em poços ilegais; preocupam os envolvidos no conflito.
Soluções paliativas para um problema sistêmico
O promotor Bergson coordena atualmente 79 promotorias de Justiça do Meio Ambiente no estado de Minas e explica que uma solução prática adotada em São Lourenço foi o pedido de tombamento do parque, para que este se torne um patrimônio sociocultural e a prestação de contas também seja feita ao Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha).
O pedido foi aberto em 2013, e apenas recentemente começou a ser estudado. Segundo Bergson, é importante que a medida seja efetivada mesmo tendo caráter paliativo, já que o Iepha não possui ingerência direta sobre as questões de vazão e controle da exploração. “As fontes e parques gravados como patrimônio cultural ganham proteção também como bens de interesse sociocultural. Nesse caso, para se fazer uma alteração em alguma fonte, haverá que se ter o posicionamento de mais forças. ”
O promotor comenta ainda que os órgãos responsáveis pelas fontes do estado não conseguem efetuar um controle eficaz da exploração: “O DNPM só tem três técnicos para fiscalização em Minas Gerais. O problema da Supram – Sul de Minas [órgão ambiental do Estado que realiza o EIA/RIMA para as concessões de lavra], assim como o de outras regiões, é que o sistema se apresenta ainda muito refém do poder econômico e das entidades industriais que, direta ou indiretamente, dominam os conselhos. Os servidores ganham mal e trabalham com pouca estrutura. Dessa forma é impossível a análise devida de cada empreendimento”.
O promotor também é autor do livro “Direitos coletivos ambientais e a exploração (in)sustentável das águas minerais”, lançado em 2009. Oito anos após a produção do livro, ele confirma a relevância e urgência da maioria das informações contidas no livro e chama a atenção:
“Os problemas de exploração das águas subterrâneas, rebaixamento dos aquíferos, e suas consequências socioambientais se alastram não apenas no Circuito das Águas e municípios vizinhos, mas também em regiões com as mesmas características hidrominerais, como Ibirá, Campos do Jordão, Poá, Itapecerica da Serra, Serra Negra, Águas de Lindóia e Águas de Santa Bárbara, em São Paulo; e Caldas Novas, em Goiás”.
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