Bonito (MS) – Na segunda-feira passada (6), ocorreu em Bonito uma audiência pública, promovida pelo Ministério Público Estadual, com o objetivo de debater a proteção dos banhados do Rio da Prata e do Rio Formoso. De um lado, a Prefeitura de Bonito e a Fundação Neotrópica do Brasil, proponentes à criação de três novas unidades de conservação (UCs) no município. Do outro lado, o Sindicato Rural de Bonito e a recém-criada Associação Amigos do Formoso, que criticam a condução do processo e reclamam do risco de terem suas terras desapropriadas.
Os banhados, conhecidos também por várzeas ou brejões, são áreas úmidas delicadas, essenciais para a manutenção da vida nos rios da região, por servirem para recarga de aquíferos, retenção de nutrientes para a biodiversidade, controle de turbidez dos rios, e refúgio de espécies silvestres e migratórias, inclusive algumas em risco de extinção. A integridade dos banhados é essencial para o turismo de Bonito, uma cidade que atrai 200 mil turistas por ano que a visitam para admirarem e mergulharem nos seus rios cristalinos.
Em especial, o banhado do rio da Prata sofreu com drenagens ilegais, que, em meados de maio, renderam uma multa de R$13 milhões a um dos fazendeiros envolvidos.
O movimento que levou a proposta das UCs dos banhados é um desdobramento do projeto Formoso Vivo, que nasceu, em 2003, pela mão de Luciano Loubet, então promotor de Bonito. À época, o projeto gerou dezenas de Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) assinados por proprietários rurais da região que só escaparam de pesadas multas aceitando a obrigação de recuperar áreas degradadas, em especial matas ciliares do rio Formoso, o qual abriga boa parte dos atrativos turísticos do município.
Loubet relembra que “a necessidade de criação de unidades de conservação [para os banhados] foi apresentada no Conselho Municipal de Meio Ambiente de Bonito em 2008, após vários estudos”.
Em 2014, a Fundação Neotrópica do Brasil – ONG criada em 1993 para fomentar a criação do Parque Nacional da Serra da Bodoquena – apresentou ao atual prefeito Leonel Brito, o Leleco, a proposta de criação do Refúgio de Vida Silvestre do Banhado do Rio Formoso. Leleco, que é produtor rural, topou a ideia, que espera ser um dos legados do seu mandato. A Neotrópica, por sua vez, produziu os estudos necessários, financiados por meio de um convênio com a prefeitura. “Para realização dos estudos das UCs”, disse o biólogo e doutor em Engenharia Florestal Nicholas Kaminski, representante da Fundação Neotrópica, “nos baseamos em trabalhos realizados na região desde 2008 e apoiados por instituições de renome como o próprio Ministério Público, IUCN, FUNBIO, UFMS e MMA”.
Chegou-se então à proposta de criação de três novas UCs: as duas que se tornaram controversas, o Refúgio da Vida Silvestre (RVS) do Banhado do Rio da Prata, com área de 3.273 hectares, e o Refúgio da Vida Silvestre do Banhado do Rio Formoso, com 2.275 hectares, ambas dentro de terras privadas; e uma terceira, o Parque Natural Municipal da Guavira, uma área de cerrado de propriedade do Município de Bonito, adjacente ao aeroporto.
Conflito
Em fevereiro, a prefeitura publicou no Diário Oficial do Estado o convite para uma audiência pública no dia 25 daquele mês, para apresentação da proposta à comunidade. Na antevéspera, o Sindicato Rural entrou com um mandado de segurança que, acatado pela Justiça, cancelou a audiência. Foi o início de uma batalha legal e de informações contra e a favor das UCs dos banhados.
A prefeitura apresentou sua defesa do processo de criação das UCs dos banhados por meio de seus procuradores, mas Matheus Cartapatti, atual promotor de Bonito, deu um parecer contra o esforço.
No documento, Cartapatti questiona a metodologia da prefeitura e as fontes dos estudos apresentados na defesa, afirmando que “tal inventário biológico, conforme apresentado, pode ter sido extraído facilmente de enciclopédias eletrônicas, inclusive a ‘Wikipédia’, demonstrando a total falta de planejamento para implementação das Unidades de Conservação em questão”. A afirmação municiou o Sindicato Rural e a Associação Amigos do Formoso, que atuam em parceria.
Os dois grupos divulgaram suas posições e se acusaram, através de redes sociais, folhetos e placas. Os ânimos se exaltaram e o Ministério Público estadual interviu para promover uma audiência na última segunda-feira (6 de junho), cujo objetivo foi debater e reunir informações sobre o processo de criação das UCs, e sobre os direitos e deveres do Poder Público e dos proprietários atingidos. O resultado deve auxiliar o promotor Cartapatti a avaliar e firmar sua posição. Entretanto, Cartapatti não pôde participar do evento, cuja mediação ficou a cargo de Luciano Loubet.
A audiência
Loubet abriu o evento mostrando que a proposta das UCs dos banhados é antiga e surgiu no Conselho Municipal de Meio Ambiente de Bonito. O Sindicato Rural, oposto às novas UCs, tem cadeira no conselho e, logo, não só estava informado como participou dos debates que levaram à proposta.
Em seguida, Alex Fernandes Santiago, promotor de Justiça de Defesa do Meio Ambiente em Juiz de Fora, MG, mestre em Direito Penal e especialista em Direito Ambiental, explicou detalhes sobre as categorias de UCs propostas e considerou que a prefeitura deveria realizar audiências públicas específicas para cada unidade de conservação proposta. Santiago criticou a Associação Amigos do Formoso por ter divulgado um panfleto com informações, segundo ele, distorcidas, referentes ao SNUC, a lei que rege as UCs brasileiras.
O prefeito Leleco reconheceu que correu com o processo de criação das UCs dos banhados para evitar perder repasses de ICMS Ecológico, uma receita atrelada à boa gestão ambiental dos municípios. O número de UCs locais conta pontos para obter os repasses. Para ele, Bonito teria índices mais favoráveis e, logo, um valor de ICMS Ecológico maior, se criasse as novas UCs em até 45 dias.
Mas Leleco defende que a receita extra para o município não é o único motivo em prol das novas UCs: “precisamos de um projeto para o futuro. Quem planta soja e cria gado em Bonito vai ter que conviver com o turismo”.
Nicholas Kaminski, da Fundação Neotrópica, afirmou que todas as formalidades exigidas pela legislação para a criação de UCs foram satisfeitas, incluindo a realização e divulgação dos estudos técnicos preliminares.
Oposição ruralista
Do lado que se opõe às UCs dos banhados, Alexandre Ferro, engenheiro agrônomo e membro da Associação Amigos do Formoso, criticou ferozmente as novas UCs sem julgá-las diretamente, mas fazendo um paralelo com o histórico do Parque Nacional da Serra da Bodoquena. “Tenho absoluta certeza de que a criação de novas UCS não vai amenizar os problemas que já existem em Bonito. O Parque da Bodoquena, depois de 15 anos de criação, só tem 18% de desapropriação regulamentada, além de que após as desapropriações teve um histórico de invasão e roubo de madeira. Seu plano de manejo demorou 13 anos para ser elaborado”.
O presidente do Sindicato Rural, Marcelo Bertoni, defendeu que o Sindicato Rural é uma entidade que busca equilibrar o interesse dos produtores rurais com os da comunidade. Ele questionou a criação das UCs dos banhados como forma de aumentar o repasse do ICMS Ecológico a Bonito. “Nós queremos a proteção dos rios, a parceria do produtor rural ou ICMS Ecológico?”
Roberto Roca, advogado que acompanhava Bertoni, argumentou que a prefeitura se arriscava a ser condenada por crime de responsabilidade, pois a criação das UCs não consta no Plano Plurianual de Investimentos do município, além de haver risco de desapropriação das terras caso os proprietários rurais afetados não aceitem a proposta.
Também pelo lado do Sindicato Rural, Edmundo Dineli, biólogo e ex-secretário de Meio Ambiente do município, fez uma proposta alternativa à criação de UCs, que é do agrado dos ruralistas. Ele concorda que o Código Florestal Federal falha na proteção das áreas úmidas, mas sugeriu que “o prefeito pode decretar Área de Interesse Social, conforme o artigo sexto do Código Florestal, conferindo aos banhados dos rios Formoso e da Prata o status de APP [Área de Proteção Permanente]“. Segundo ele, “isso aumenta o empoderamento da Polícia Militar Ambiental, do Imasul e traz um modelo de convivência que todo mundo entende, porque, afinal de contas, todos têm APP em sua propriedade”.
Desdobramentos
Após o evento, em entrevista a ((o))eco, Kaminski, da Fundação Neotrópica, rebateu acusações de que os estudos técnicos são inconsistentes: “nossos trabalhos sempre tiveram um cunho técnico-científico sólido. Há uma variedade de estudos e instituições sérias que concluem pela importância de proteção das áreas úmidas de Bonito”.
Angela Kuczach, é diretora da ONG Rede Pró UC, e foi um dos autores de uma coluna crítica à posição inicial do promotor Matheus Cartapatti. Ela participou da audiência e disse a ((o))eco que a presença dos promotores resultou em um compromisso público de diálogo de ambas as partes, que, espera, seja cumprido. Ela apóia que as UCs dos banhados sejam criadas dentro da categoria Refúgio de Vida Silvestre, que é mais benéfica para os proprietários das terras onde serão criadas as UCs. No entanto, afirma que “descumprido tal acordo de cavalheiros e se houver boicote do processo de diálogo e construção, apoiaremos a criação de Reserva Biológica ou Estação Ecológica, algo extremo, sem dúvida, mas o único caminho restante caso os conflitos não cessem”. A opção pela categoria Reserva Biológica é mais extrema porque permitiria ao prefeito decretá-las unilateralmente, sem consulta pública.
Procurada após o evento pela reportagem de ((o))eco, a Associação Amigos do Formoso não se manifestou.
O Sindicato Rural falou através do biólogo Edmundo Dineli. Ele disse que o mandado que paralisou a 1a audiência pública e interrompeu o processo de criação das UCs dos banhados foi dentro da lei, porque a prefeitura estava propondo uma audiência única para discutir três unidades de conservação. “Existem rancores, mas não é isso. A conversa é: se fizer direito, ninguém será contra. A proponente não está focando em conservação, mas em dinheiro. Como equacionar sem ferir o direito de propriedade? Esse é o desafio. Por que começar, de cara, com unidades de proteção integral, se há unidades de conservação de uso sustentável que podem conferir o mesmo título de proteção?”
O resultado da disputa pode redefinir o futuro de Bonito, onde 3 de cada 4 empregos são gerados pelo turismo de natureza. Para preservá-los é preciso preservar também os rios e seus banhados.
Depois desta audiência, o próximo passo cabe ao promotor de justiça de Bonito, Matheus Cartapatti. Ele analisará as informações coletadas para então decidir se permite que o processo de criação das UCs seja retomado ou se se opõe a ele e o protela.
Leia também
Bonito: a batalha para proteger os banhados do Prata e Formoso
A guerra dos banhados de Bonito: Ministério Público do lado errado?
Leia também
Para quem ama o feio, o Bonito desaparece
Os recursos naturais da cidade mantêm tanto a agropecuária quanto a pujante indústria de turismo. Só falta isso virar um consenso. →
A guerra dos banhados de Bonito: Ministério Público do lado errado?
O processo de criação de unidades de conservação tem sido negligenciado no país. “Nunca antes na história desse país” fez-se tão pouco. →
Bonito: a batalha para proteger os banhados do Prata e Formoso
Mandado de segurança do Sindicato Rural cancela consulta pública e abre conflito sobre duas novas UCs que resguardariam rios considerados joias naturais da cidade →
Esse bate-boca é a cara do brazíu. Se nem em Bonito, que é a capital nacional do Ecoturismo, se consegue fazer com que os empresários se mobilizem pela conservação do SEU patrimônio natural, que dirá do resto do Brasil… mas PARABÉNS ao corajoso Prefeito por ter essa consciência que falta aos demais e encarar a bronca de ser um gestor do século XXI num país do século XVIII.