Ambientalistas brasileiros têm mais um motivo para celebrar o Dia da Restauração de Ecossistemas, nesta terça-feira (13). A data comemorativa foi escolhida pela Organização das Nações Unidas (ONU) para o anúncio do reconhecimento oficial da experiência de restauração florestal da Mata Atlântica, como uma das dez iniciativas internacionais de referência (flagship, na expressão original em inglês) nesse desafio global de regeneração da natureza na Década da ONU para Restauração de Ecossistemas (2021-2030).
O anúncio ocorreu durante a programação da 15ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP-15), realizada em Montreal, no Canadá, desde o último dia 7 e com conclusão prevista para 19 de dezembro. Durante essa Conferência, considerada a mais importante da década para a agenda da biodiversidade global, lideranças político-diplomáticas estão buscando negociar um pacto robusto e factível para desdobramentos do Plano Estratégico para a Biodiversidade 2011-2020, ao qual se vinculam as 20 Metas de Aichi, acordadas em 2010, durante a COP-10, realizada em Nagóia (capital da província japonesa de Aichi), que envolve, entre outros compromissos, o de restaurar florestas degradadas.
Com base em mais de 20 critérios de avaliação (incluindo formação de coalizões, participação social nas tomadas de decisão, contribuição para os acordos internacionais e replicabilidade) foram analisadas 156 propostas concorrentes ao título de Referência da Restauração Mundial, das quais dez foram reconhecidas pela ONU.
Pacto e Rede Trinacional de Restauração da Mata Atlântica reconhecidos pela ONU
Duas redes multissetoriais sul-americanas de grande impacto socioambiental e econômico foram reconhecidas pela ONU no anúncio de hoje. Uma delas é o Pacto pela Restauração da Mata Atlântica, coalizão formada por mais de 300 organizações da sociedade brasileira que assumiu o desafio de restaurar 15 milhões de hectares do bioma, até 2050, dos quais, um milhão de hectares devem ser regenerados até 2030. Com objetivos convergentes, para além das nossas fronteiras, o outro movimento é representado pela Rede Trinacional de Restauração da Mata Atlântica, integrada por mais de 60 organizações da Argentina, do Brasil e do Paraguai).
Ambientalistas entrevistados por ((o))eco afirmaram ter expectativas positivas sobre os desdobramentos desse reconhecimento pela ONU. Da mesma forma, ressaltaram que o anúncio contribui para os esforços de recuperação da imagem do país, abalada internacionalmente devido ao desmonte de políticas públicas socioambientais nos últimos anos. Além disso, abre novas perspectivas para o aporte de recursos financeiros e alianças tecnológicas essenciais aos esforços de recuperação da Mata Atlântica.
Como já discutido em reportagem da série Mata Atlântica, novas histórias, de ((o))eco, o bioma é o mais degradado do Brasil, como reflexo dos processos de colonização, crescimento urbano acelerado e do modelo de desenvolvimento socioeconômico pautado no uso insustentável da natureza.
“Os dois movimentos se juntaram em prol do bioma trinacional que é a Mata Atlântica”, afirma Taruhim Quadros, representante da Rede Trinacional de Restauração da Mata Atlântica. Segundo a ambientalista, a conservação e a restauração dessa região de importância central para os três países “precisam cada vez mais de vozes unidas, ampliando a sua proteção”. Ela também ressalta, que para além de conservar as florestas remanescentes de um bioma extremamente degradado, é preciso avançar na sua restauração.
“Por isso, essas mais de 360 instituições, com mais de 30 anos de experiência em restauração se unem, trazem diversas lições aprendidas e mostram esse caminho para um resultado de grande escala”, observa. “Aí, o respaldo da ONU e o reconhecimento [da Mata Atlântica] como uma paisagem modelo de restauração mostram que nós realmente estamos nesse caminho bem-sucedido para chegar em paisagens mais sustentáveis que geram benefícios para a natureza e as pessoas”.
Esse destaque das Nações Unidas, segundo a ambientalista, também vem reforçar que a trajetória adotada pelos movimentos, com base na junção de conhecimentos científicos e saberes tradicionais, é a mais adequada para o enfrentamento desse desafio de recuperação da Mata Atlântica, um bioma de importância local, regional e global, com passivos históricos, mas com amplas possibilidades de regeneração.
Mas a meta trinacional de recuperar um milhão de hectares, até 2030, “não será um caminho fácil”, como reconhece Taruhim Quadros, embora existam grandes exemplos e resultados de sucesso. “Como próximos passos, esperamos que esse reconhecimento da ONU traga visibilidade, abra novas possibilidades de financiamento para execução no campo, fortalecimento das instituições, trocas de experiências, além de oportunidades de conexões para a população como um todo”.
Ela reitera que cada 100 hectares restaurados tem o potencial de gerar 42 empregos, segundo estudo já publicado pelos membros do Pacto e outros parceiros dedicados às pesquisas sobre o tema, indicando uma importância fundamental desses esforços também do ponto de vista socioeconômico. Para isso, segundo a ambientalista, dentre outros atores estratégicos, os governos têm importância central no que se refere à implementação de políticas públicas dirigidas a essa agenda.
Benefícios para a natureza e a sociedade
Michel Santos, gerente de Políticas Públicas e Advocacy do WWF-Brasil, destacou que a proposta de restauração da Mata Atlântica reconhecida pela ONU como referência juntamente com outras nove iniciativas internacionais contribui amplamente para o cumprimento de compromissos brasileiros, tanto em relação à CDB, como no âmbito do Acordo de Paris, vinculado à Convenção do Clima.
Confiante nos desdobramentos a partir do reconhecimento da ONU, Santos enfatiza que o projeto, desenvolvido pelas organizações parceiras, tem repercussão positiva direta na proteção da biodiversidade, uma vez que as espécies começam a voltar quando se consegue ampliar os ambientes restaurados. Ele ressalta que a onça-pintada, por exemplo, está presente na área de influência das ações conjuntas pela recuperação da Mata Atlântica.
A proteção da biodiversidade e das fontes de água, a geração de trabalho e renda para toda uma cadeia (envolve desde coletores de sementes ao monitoramento de áreas plantadas) e a fixação de carbono são alguns dos resultados positivos das ações de restauração florestal destacados por Santos. “Nós ambientalistas consideramos que a forma de restauração mais importante é aquela realizada com espécies nativas”, afirma.
O ambientalista também considera que o reconhecimento da ONU, durante a COP-15, abre perspectivas positivas em termos de visibilidade e fontes de financiamento internacionais em um momento de transição política em que o Brasil tenta recuperar o protagonismo perdido na agenda da biodiversidade, dentre outras pautas socioambientais estratégicas.
Mas, embora reconheça que o Brasil conta com uma delegação formada por excelentes negociadores na COP-15, Michel Santos ressalta que existem resistências por parte de setores de reconhecida força política e econômica da sociedade brasileira que buscam influenciar a tomada de decisão nas negociações.
Impasses nas negociações se referem, por exemplo, à pegada ecológica do setor agrícola [parte da Meta 7 de Aichi que envolve sustentabilidade na agricultura, na aquicultura e na exploração florestal]. Segundo o ambientalista, a discussão sobre a necessidade de avanços em agroecologia representa uma agenda fundamental para o Brasil, “mas o agronegócio tem uma certa rejeição ao tema”, analisa. Além desse enfoque mobilizar um setor influente no país, Santos ressalta que “temos no Congresso Nacional projeto que busca flexibilizar ainda mais a legislação sobre o uso de agrotóxicos [o chamado Pacote do Veneno, ainda em tramitação]”.
Mas, diante de medidas cada vez mais restritivas do mercado internacional para produtos causadores de altos impactos socioambientais, como por exemplo, a recente decisão do Parlamento Europeu de frear as importações que tenham vínculo com desmatamento, o ambientalista ressalta que o Brasil precisará retomar o rumo de implementação de políticas públicas de proteção da natureza. Caso contrário, “perderá mercados e ainda enfrentará problemas para integrar o clube dos ricos”, referência à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), da qual o país pleiteia fazer parte. Nesse contexto, “o Brasil terá que repensar sobre o uso de agrotóxicos e outros contrassensos”, reitera Santos.
Ainda segundo o ambientalista, o “mundo enfrenta um momento geopolítico difícil”, o que tem servido como argumento para enfraquecer o debate sobre a necessidade de financiamento robusto para a proteção da biodiversidade, no chamado pós-2020 das Metas de Aichi. Apesar disso, ainda paira na COP-15, a expectativa de que a criação de um Fundo de Financiamento, nos moldes do assegurando no âmbito da Convenção do Clima, seja um dos grandes resultados dessa conferência histórica. Nesse sentido, ele afirma perceber o forte posicionamento em defesa de aportes capazes de financiar a agenda da biodiversidade por parte “de um Brasil construtivo, talvez inspirado pelos novos ventos”, conclui.
O que se espera da COP-15
Nesse contexto político-diplomático, se espera definir uma nova estrutura de ação para que os signatários da CDB, possam conter, até 2030, o avançado e preocupante processo de extinção de espécies, considerado um dos grandes desafios da humanidade, sobretudo, em cenário de agravamento de crise climática. Essas duas agendas globais, ainda que tratadas em pactos diferentes, no âmbito da ONU, têm ampla relação de interdependência.
Para o enfrentamento da perda de diversidade biológica global, as grandes expectativas sobre a COP-15 giram em torno da possibilidade de acordo entre os signatários da CDB visando à ampliação do sistema global de áreas protegidas (marinhas e terrestres) para 30% dos ecossistemas (estratégia já denominada como 30X30). Também vem sendo esperada a construção de um pacto capaz de assegurar recursos financeiros que possibilitem custear as ações de proteção da natureza, dentre as quais, a restauração de florestas degradadas.
Para isso, o First Draft (primeiro rascunho, na tradução livre) da estrutura do chamado “pós-2020” desse acordo já vem sendo discutido na cidade-sede da CDB, principal tratado internacional envolvendo essa agenda de importância fundamental para a garantia não somente do equilíbrio ecológico, mas, também, para a sobrevivência e o bem-estar humano em suas múltiplas dimensões.
A COP-15 deveria ter ocorrido em 2020, na China, mas foi postergada para 2021, devido à pandemia da Covid-19. No ano passado, no entanto, ainda existiam riscos provocados pela crise sanitária e ficou decidido que a Conferência seria realizada somente de forma virtual no mês de outubro e que a segunda e última parte das negociações ocorreria presencialmente, em 2022. Este ano, porém, devido à nova onda do coronavírus, o governo chinês preferiu transferir a realização do evento para Montreal, cidade-sede do Secretariado da CDB, no Canadá, ainda que permaneça na presidência da COP-15.
Fique por dentro
Informações sobre todo o processo relacionado ao pacto que deverá ser adotado para o chamado Pós-2020 do Plano Estratégico para a Biodiversidade podem ser conferidas aqui.
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