Avenida Presidente Vargas, um dos locais mais movimentados da cidade do Rio de Janeiro. Um cenário improvável para uma operação em prol da conservação da natureza. É lá que está o Campo de Santana, um polígono verde de cerca de 15 hectares – um dos maiores parques urbanos da cidade – inaugurado em 1880 nos moldes do paisagismo europeu: lagos com cisnes, gramados, árvores exóticas como o baobá e estátuas de militares. Circulam pelo parque trabalhadores, corredores, gatos e… cutias, muitas cutias. Sua presença inusitada no meio do centro comercial de uma metrópole é o motivo por trás de uma cena que chamava atenção dos passantes na última sexta-feira (6). Dois rapazes, um deles com uma rede de pulsar em riste, corriam atrás destes pequenos mamíferos roedores.
Os dois, Mateus, estagiário da ONG Refauna, e Marcus, veterinário voluntário da Arca do Noah, parque de educação ambiental, tentavam encurralar as cutias para capturá-las. Ariscas e ligeiras, as cutias driblavam os pesquisadores. Vez ou outra, entretanto, eles davam sorte e conseguiam realizar a captura. Armadilhas com comida espalhadas pelo parque urbano também ajudavam na trabalhosa missão de capturar 16 cutias-vermelhas (Dasyprocta leporina), oito fêmeas e oito machos.
Os animais são parte de um novo ciclo de reintrodução das cutias no Parque Nacional da Tijuca realizado pelo Refauna. Desta vez, elas serão levadas para recolonizar o setor Paineiras, onde está o Parque Lage, no sopé do Morro do Corcovado.
Depois de capturadas, as cutias seguiram para os cuidados do veterinário Jefferson Pires, onde eram sedadas para passar por coletas de sangue, urina e material biológico. As amostras serão analisadas em laboratório para detecção de eventuais doenças – a maior preocupação dos pesquisadores é a leptospirose, já que as cutias vivem num ambiente urbano, onde pode haver circulação da doença. Cada cutia foi pesada e recebeu três marcas de identificação: uma tatuagem e um brinco, ambos numéricos para identificação individual; e através da descoloração de parte do pelo, para permitir que o animal seja reconhecido pelas armadilhas fotográficas como um dos indivíduos do projeto.
As cutias capturadas passarão ainda por um processo de quarentena em recintos no próprio Campo de Santana, enquanto esperam o resultado dos exames, que devem levar cerca de 10 dias. Se apresentarem alguma doença mais grave, podem ser barrados no baile da reintrodução. “Nós não podemos levar pro parque animais que estejam contaminados com leptospirose e transmitindo a doença, por exemplo”, explica Marcelo Rheingantz, diretor-executivo da ONG Refauna e biólogo da UFRJ.
Depois, as cutias serão enfim levadas para o Parque Lage. Oito casais passarão por um período de aclimatação de 15 dias. A outra metade dos bichos capturados será solta diretamente no parque. Além disso, uma área de soltura receberá suplementação e outra não. A ideia é comparar os métodos para desenvolver um protocolo de soltura para a espécie.
A previsão é de que todas as 16 cutias capturadas sejam soltas ainda no primeiro semestre.
A ação do Refauna contou com a participação e apoio da Fundação Parques e Jardins da Prefeitura do Rio, responsável pela gestão do Campo de Santana, da Fiocruz, do Bioparque, da Universidade Federal Fluminense (UFF), da Universidade Estácio de Sá, da Arca do Noah, do Instituto Conhecer para Conservar e do Parque Nacional da Tijuca/ICMBio, onde será feita a reintrodução das cutias.
Além disso, o Refauna contou com o apoio voluntário da veterinária Mariana Giendruczak, que fez exames de ultrassonografia nas cutias. Coube a Mariana, inclusive, descobrir que na verdade, foram 18 animais capturados no total, já que duas das fêmeas estão grávidas. Caso seja necessário, as gestantes poderão ficar mais tempo em quarentena.
Não se sabe ao certo a origem das cutias no Campo de Santana. Há duas teorias correntes. A primeira é de que o paisagista responsável pelo parque, o francês Auguste François Marie Glaziou, teria decidido incluir as cutias no projeto junto com outros animais trazidos pro local, como o ganso. A outra é a de que as cutias teriam sido “despejadas” no Campo no final da década de 40, após o fechamento do antigo zoológico do Rio, que ficava no bairro de Vila Isabel.
Em pleno centro da cidade, longe de predadores e de caçadores, as cutias multiplicaram-se como se fossem animais urbanos. Sua abundância no local – estima-se que há mais de 500 indivíduos vivendo no Campo – transformou a população em uma fonte perfeita para a iniciativa do Refauna.
Não é a primeira vez que as cutias do Campo de Santana servem de população-fonte para reintrodução da espécie na natureza. Em 2009, nascia a iniciativa de devolver as cutias para as florestas do Parque Nacional da Tijuca – que culminou na criação do projeto do Refauna, em 2011.
A espécie, um dispersor de sementes fundamental para Mata Atlântica, desapareceu do parque no início dos anos 2000. Na época, o objetivo era repovoar o Setor Floresta. Ao todo, 31 cutias foram reintroduzidas pelo projeto – todas oriundas de Campo de Santana – e hoje a população já está na sua quarta geração, com todos os indivíduos nascidos na natureza. E segue crescendo por conta própria.
Agora, o objetivo é repetir o sucesso no Parque Lage, no Setor Paineiras.
“A formação deste novo núcleo populacional é importante para entendermos o que explica a dispersão pela floresta, para aumentar a população no parque e também diminuir a probabilidade de extinção local da espécie no parque”, destaca o diretor-executivo do Refauna.
Marcelo reforça ainda que as cutias reintroduzidas inicialmente no setor Floresta se espalharam menos pelo parque do que o esperado. “Existem duas possibilidades: elas terem ficado mais próximas aos pontos de soltura para aumentar as chances de encontro ou porque fornecíamos suplementação alimentar”, explica.
Além das cutias, o Refauna também conduz e monitora a reintrodução de outras duas espécies no Parque Nacional da Tijuca, o bugio e o jabuti-tinga; e da anta, na Reserva Ecológica de Guapiaçu (REGUA); assim como o reforço populacional dos trinca-ferros, no parque carioca.
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