Reportagens

ONGs acusam setor produtivo de obstruir debate sobre crimes ambientais em MG

Servidores da Fiemg e Faemg tumultuam e inviabilizam debate de ONGs que renunciaram a conselhos ambientais. Mineração na Serra do Cipó e desmatamentos recordes estavam na pauta

Fernanda Couzemenco ·
8 de dezembro de 2022 · 1 anos atrás

Grupos do terceiro setor acusam membros da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), do setor produtivo e mineral de desvirtuam Audiência Pública na Comissão de Participação Popular, realizada a pedido do terceiro setor em 01 de dezembro, para não debaterem questões ambientais como o licenciamento da mineração na Serra do Curral e o aumento do desmatamento no estado.

A audiência foi convocada pelas ONGs mineiras que em novembro renunciaram em bloco a seus assentos nos conselhos estaduais de Política Ambiental (Copam) e Recursos Hídricos (CERH) de Minas Gerais, em protesto a possíveis crimes ambientais cometidos pela gestão do governador Romeu Zema (Novo). 

Requerida pela deputada estadual Ana Paula Siqueira (Rede), a audiência tinha a finalidade de debater os obstáculos enfrentados pela sociedade civil para exercer o direito de participação e deliberação nos citados conselhos ambientais, bem como para esclarecer as denúncias que motivaram os conselheiros de sete entidades de proteção ao meio ambiente a renunciarem a seus mandatos.

O deputado Raul Belém (Cidadania), no entanto, ao presidir a audiência, inesperadamente, convidou para compor a mesa a presidenta do Conselho de Relações do Trabalho da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg), Érika Morreale. A atitude de Belém repercutiu imediatamente no protesto das entidades ambientalistas, que iniciaram sua retirada da audiência. 

“Fomos surpreendidos com o deputado colocando na mesa um representante da Fiemg. A audiência não cumpria mais, então, o seu papel. A participação da sociedade não é respeitada nos conselhos nem na Assembleia Legislativa. Foi esse o motivo da nossa saída. O governo do estado não respeita a participação da sociedade civil organizada que defende o meio ambiente”, declarou Maria Teresa Viana de Freitas Corujo, do Instituto Guaicuy. 

“A nossa saída não foi irresponsável nem leviana. Ela está baseada em fatos. Não há diálogo, isso não é democracia”, reforçou Maria Dalce Ricas, da Associação Mineira de Defesa do Ambiente (Amda).  

Segundo os representantes das ONGs, o ato do deputado foi de boicote  à dinâmica organizada coletivamente pela Comissão e ONGs solicitantes, ferindo também o regimento interno, conforme ressaltou a deputada Ana Paula, a requerente da audiência interrompida. 

Tumulto, vaias e silenciamento

Dentro do auditório José Alencar, as deputadas Ana Paula Siqueira e Beatriz Cerqueira (PT) tentaram reverter a manobra da mesa, mas foram praticamente impedidas de falar, sob condescendência de Belém, durante a maior parte do tempo, por conta do tumulto provocado por vaias e hostilização da plateia, formada basicamente por servidores e alguns gestores da Fiemg e da Federação da Agricultura e Pecuária de Minas Gerais (Faemg).

Quando finalmente conseguiu fazer suas considerações sobre o episódio, com menos interrupções, Beatriz Cerqueira reforçou as denúncias já levantadas pelas ONGs contra o governo Zema, e se retirou da mesa. 

“As entidades que fizeram a renúncia coletiva explicitaram esse grande esquema em Minas Gerais, essa aliança estratégica, entre Fiemg, mineradoras, governo Zema, que vai avançando a mineração, não importa sobre quais regras ou circunstâncias. O importante, na palavra de alguns colegas, é ‘que o setor produtivo comande’. Esse setor produtivo que está destruindo serras, acabando com territórios”. 

A petista ressaltou que não é a primeira vez que a Fiemg atropela a sociedade civil dentro da Assembleia, citando o polêmico caso das autorizações para mineração na Serra do Curral. “É lamentável que toda vez que a gente quer discutir na perspectiva da sociedade civil, há uma ingerência para que a Fiemg esteja plena na composição de mesa, mesmo quando ela não deveria estar, como é o caso desta audiência e da que foi realizada logo após a mineração na Serra do Curral, aquela absurda aprovação do licenciamento da Tamisa, de madrugada”.

Beatriz também denunciou uma possível conivência entre a Fiemg e o legislativo mineiro. “A situação é tão bem-sucedida para a Fiemg, que hoje a Fiemg, de dentro da Semad [Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável], está reorganizando a legislação ambiental. as denúncias que estão sendo veiculadas de corrupção na Semad do governo Zema, até agora o que tem sido dito é um início, é uma ponta”. 

Para a deputada requerente, o episódio reflete a guerra de poder que ocorre nas instâncias que deveriam ser participativas, conforme preconiza a Constituição Federal. “Acho que ao final, ter explicitado o poder político e econômico da Fiemg dentro da casa legislativa, essa sempre proteção que a Fiemg tem, foi importante, sabe deputada Ana Paula, porque isso dá à sociedade a real dimensão do poder político e econômico que nós enfrentamos, de quem faz a defesa dos patrimônios, das serras, da real participação popular e social nos conselhos de controle e participação”, disse.

A deputada da Rede, Ana Paula, reforçou as denúncias de que forças políticas e econômicas estariam unidas em detrimento do meio ambiente. “Diante dessa estratégia montada aqui, não tem realmente condições de fazer o debate. Sabemos que muitos só vêm aqui quando convidados pela empresa, tanto que não sabem nem se comportar numa audiência. Está posto aqui como anda funcionando a política ambiental no estado de Minas Gerais. É desse jeito mesmo, é essa força econômica que desrespeita as perspectivas de sustentabilidade, de proteção das nossas águas, de pensamento sustentável. É essa dinâmica que vem inclusive impedindo o bom andamento dos conselhos de políticas públicas, onde deveria ser garantido o direito de controle social”. 

Dentro do auditório José Alencar, as deputadas Ana Paula Siqueira e Beatriz Cerqueira (PT) tentaram reverter a manobra da mesa, mas foram praticamente impedidas de falar e se retiraram da Audiência Pública. Foto: Divulgação

Com o esvaziamento do sentido original da audiência, a reunião prosseguiu numa sequência de depoimentos que procuraram desmoralizar as entidades ambientalistas e justificar os desmandos da primeira gestão de Romeu Zema, reeleito em outubro. Somaram-se às críticas os deputados Celise Laviola (Cidadania) e Bruno Engler e Bartô, ambos do PL. 

A única voz dissonante restou ao diretor de Meio Ambiente e Saúde da União das Associações Comunitárias de Congonhas, Sandoval de Souza Pinto Filho. “A cada dia que passa as comunidades estão perdendo seu direito de falar e de discutir os processos. Na Constituição, artigo 225, inciso 4, que a participação popular tem que ser garantida. E não é participar depois que as coisas são decididas”, disse em seus minutos de fala no púlpito do auditório. 

“O Copam tem sido uma vergonha. Quem quiser vaiar, pode vaiar”, ironizou, ao perceber um reinício de tumulto por parte da plateia da Fiemg. 

“O Copam tem sido uma vergonha, me desculpem os servidores aqui. A gente pega as filmagens todas no Youtube. Na Serra do Curral, mais de duzentas pessoas falaram no licenciamento da Tamisa e no final nada do que foi falado foi respondido e votou a favor, de madrugada, aquela coisa toda. Então participação popular para encher linguiça, para validar”, prosseguiu. 

Sandoval também comentou a atitude das sete ONGs que abandonaram os conselhos e a audiência. “Quando os colegas renunciaram, parece que o sentido foi esse, eu não estava no movimento que foi decidido pelas renúncias, mas esse sistema há muito tempo que foram abandonadas as suas funções sociais e democráticas”. 

A exemplo das deputadas Beatriz e Ana Paula, o ambientalista relacionou o lamentável episódio da pseudo-audiência como reflexo do que ocorre em todo o estado. “O licenciamento ambiental não é preventivo, diga-se Mariana, diga-se Brumadinho, diga-se Congonhas que está comendo poeira. É só parar de chover que Congonhas come poeira 24 horas por dia. Por quê? Porque a mineradora vai lá, licencia tudo fragmentado no Copam, e quando vai lá frente faz a tal revalidação da licença de operação. Estou falando aqui da Companhia Siderúrgica Nacional, que ela explora hoje 33 milhões de toneladas de minério de ferro em Congonhas e já foi na Bolsa de Valores e falou que vai passar para 108 [milhões]. E chega lá no Copam e tudo o que chega é aprovado, tudo o que chega é aprovado. Dou exemplo de Congonhas, mas isso está acontecendo em Minas Gerais inteirinha”, arrematou.

Diretor de Sustentabilidade da Angá, uma das entidades do grupo que renunciou aos conselhos, o biólogo Gustavo Malacco declarou, nas redes sociais da entidade, que o ocorrido na ALMG na quinta-feira (1) mostra que as denúncias feitas pelo terceiro setor estão de fato preocupando o governo Zema e as federações. 

“O governo está acuado pelas denúncias, essa turma está tão desesperada, que protagonizaram uma das maiores vergonhas que acompanhei na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Como mineiro, estou envergonhado”, afirmou. “Colocaram o bode na sala. Eles entraram para colocar o bode na sala, diminuir o nosso tempo e para que a audiência não ocorresse. É uma vergonha ter uma parte de um empresariado como esse que estava lá hoje, retrógrado, que não se preocupa com direito difuso e coletivo”. 

Para além do Executivo e Legislativo, sublinhou, o trabalho continuará sendo feito. “As organizações vão continuar fazendo o trabalho que sempre fizeram na defesa do direito difuso e coletivo e atrair mais coletivos para dentro do processo. Apesar de todo o cenário complicado de enfraquecimento da governança participativa e intimidação do setor produtivo, vamos continuar na luta, nesse trabalho árduo”. 

O “passar a boiada” de Zema

O desmantelamento do licenciamento ambiental e do controle social no sistema ambiental mineiro ocorre desde 2015, explica Jeanine Oliveira, integrante do Projeto Manuelzão, entidade que participa do Conselho Consultivo do Parque da Baleia e que também se retirou do Copam e do CERH. 

Citando o PL 2946 e a retirada do Ministério Público como integrante obrigatório do Copam, ela conta que os grandes projetos predatórios têm conseguido facilmente “passar a boiada” em Minas Gerais. “Todos os processos de licenciamento ambiental que passaram pelo Copam, com exceção de dois, foram aprovados. Ele não faz mais avaliação, mas sim aprovação de projetos”. 

Para ela, a saída aparentemente tardia das ONGs se deu após o entendimento de que não havia mais qualquer sentido em continuar legitimando os desmandos. “A gente já sabia disso tudo, mas decidiu permanecer porque conseguimos reunir documentos e gerar provas dos crimes e corrupção. Por mais que perdêssemos nas votações, a gente produzia documentos. Mas com a reeleição do Zema, vai piorar muito. Com esse governo não tem conversa, então há uma ruptura. É um período escandaloso que estamos vivendo. O governo Zema é todo cheio de corrupção. Qualquer pessoa que fizer uma investigação simples encontra muitas irregularidades”. 

Como exemplos, Jeanine cita licenciamentos que atropelam comunidades quilombolas do Serro e desmatamentos crescentes. “Uma empresa está pedindo autorização para tirar mais de vinte mil hectares de Cerrado. É a quantidade de vegetação que é desmatada por todo o estado de Minas Gerais em um ano. Desmatamentos que só aumentaram nos últimos anos, tanto no Cerrado, quanto na Mata Atlântica”. 

O crime da Vale em Brumadinho é outro exemplo emblemático. O pedido de ampliação da mina do Córrego do Feijão, no Complexo de Brumadinho, conta, passou pelo Copam em dezembro e, em janeiro de 2019, a barragem rompeu. “Os conselheiros da sociedade civil disseram que não podia ampliar, mas os outros conselheiros, do setor privado e do governo, votaram favoráveis. Foi 13 x 2 ou 11 x 2. Já estava ruim, mas concederam licença para ampliação”, denuncia. 

Projeto Manuelzão, em Minas Gerais. Foto: Divulgação

“Zema ainda disse que a mineração é o futuro do estado. Que vai passar de 3% do PIB para 6%. A custo de quê? Sem falar que um supermercado emprega mais gente do que um complexo minerário com 1 km de cava”, compara. 

Dez ações arquivadas contra um licenciamento

Especificamente sobre a mineração na Serra do Curral, conseguida pela Taquaril Mineração S.A. (Tamisa) – atropelando processos de tombamento estadual e projeto de criação de parque natural – Jeanine aponta algumas das últimas irregularidades que puderam ser identificadas pelas ONGs. “Só conseguiram aprovar o licenciamento porque alegaram que vão fazer empilhamento a seco, mas querem fazer pilhas dez vezes maiores do que a média do que se pratica hoje no mundo. Sendo que aqui, o solo tem muito ferro, é facilmente carregável, não poderia ser desse tamanho!”, alerta. 

O empreendimento, lembra, tem “alto potencial de impacto destruidor e poluidor”. É a classificação que ela mesmo informa. E vão colocar isso a 500 metros, um quilômetro da casa das pessoas?”, questiona. “Temos uma lei razoável em termos de barragens de rejeitos, mas o Executivo não respeita e o Judiciário diz que está tudo bem. O Ministério Público faz ação civil, mas a Justiça não acata. Já são dez ações contra mineração na Serra do Curral, todas arquivadas”.

O local licenciado fica acima do ponto onde está sendo feita a ampliação do sistema de abastecimento de água de Belo Horizonte. “A Copasa [Companhia de Saneamento de Minas Gerais] se negou a dar o parecer de viabilidade, então contrataram uma empresa privada para isso. Já não tem água suficiente em Belo Horizonte. Os bairros das periferias já vivem de racionamento”. 

A ambientalista salienta, ainda, a contradição de todo esse cenário com o que é considerado mais prudente em relação às mudanças climáticas, inclusive nas Conferências da ONU sobre Clima (COP), das quais Zema e sua equipe participam. “Os grandes aglomerados urbanos precisam fazer os colares metropolitanos, que são cordões verdes ao redor das cidades”, exemplifica. No caso de Belo Horizonte, seria necessário ampliar a proteção da Serra do Curral. “Mais da metade do nosso cordão verde é a Serra do Curral. Se tudo o que eles quiserem de mineração for aprovado, vamos ser exilados, porque não tem como viver sem água”. 

A reportagem de ((o))eco procurou representantes da ALMG, FIEMG, FAEMG e do governo estadual, mas não houve resposta até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto. 

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