Equipados com binóculos, câmeras fotográficas, roupas discretas e sapatos confortáveis, nos preparamos para iniciar a caminhada na Trilha das Dunas ao lado de nosso guia, para uma manhã de observação de aves. Com sorte, conseguiremos avistar um dos pássaros mais queridos por aqui: o papa-piri (Tachuris rubrigastra). Estamos no Parque Nacional da Lagoa do Peixe (PNLP), que se localiza na zona costeira do Rio Grande do Sul e acaba de completar 39 anos.
Criado pelo Decreto nº 93.546 de 6 de novembro de 1986, o parque, apesar de se classificar em uma das categorias mais restritivas de Unidades de Conservação, ainda hoje enfrenta desafios para se firmar e garantir a preservação de seu frágil ecossistema.
Situado nos municípios de Mostardas, Tavares e São José do Norte, na estreita extensão entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico, o Parque Nacional da Lagoa do Peixe é um mosaico de ambientes, com lagunas, dunas, restingas, banhados, praias e mar.

É um local estratégico para 35 aves costeiras migratórias, como o maçarico-de-papo-vermelho (Calidris canutus rufa), o maçarico-branco (Calidris alba) e o flamingo (Phoenicopterus chilensis). A motivação para que a região fosse protegida legalmente, aliás, foi a de assegurar refúgio, alimento e descanso para essas espécies visitantes, que chegam exaustas após longos voos e precisam de uma pausa antes de seguir viagem. O maçarico-de-papo-vermelho, por exemplo, se conseguir dobrar de peso, terá chance de voar com êxito mais de oito mil quilômetros, da Lagoa do Peixe até a Baía de Delaware, nos Estados Unidos, de uma só vez, ao longo de seis dias.
O guia e observador que nos acompanha na trilha é Eloir Silva, ou Eloir das Aves, como é conhecido por aqui. Natural de Mostardas, ele afirma que o parque, seu local de trabalho há 27 anos, foi sua universidade, com suas mais de 270 espécies de aves mapeadas.
“Através das aves, a gente começa a conhecer a vida na Terra”, ele diz.
Eloir, que esculpe réplicas em madeira das aves do parque, se mostra tão apaixonado quanto preocupado com a biodiversidade local. Ele lamenta que esteja ficando mais raro encontrar animais – visitantes ou residentes – que antes ocorriam em abundância.


Tem espécie que antes não era tão difícil de se observar, hoje está ficando bem difícil, porque os ambientes onde elas se criavam estão bem degradados”, ele alerta, e dá um exemplo emblemático: o cisne-de-pescoço-preto (Cygnus melancoryphus).
“A gente via bandos com centenas deles, era a coisa mais comum. Hoje a gente leva um a dois anos para ver meia dúzia”.
Entre as causas da diminuição das populações, estão o pisoteamento de ovos por bois e cavalos de propriedades rurais dentro dos limites do parque; cachorros abandonados que formam matilhas e caçam as aves; e ralis off road disputados com jipes nos campos de dunas, local de reprodução de diversas espécies residentes.
O PNLP é cortado por duas estradas públicas, que dão acesso a moradores e visitantes. Por conta disso, seria difícil pensar em controlar os acessos com barreiras físicas. A movimentação de carros é cotidiana, inclusive na beira da praia, o que assusta as aves e as obriga a levantar voo constantemente para fugir dos veículos. Diante de tamanho estresse, as aves migratórias que pousam na Lagoa do Peixe correm o risco de não conseguirem o descanso e o ganho de peso necessários para continuar viagem.

Eloir não é o único a alertar para problemas críticos que o parque vem enfrentando há bastante tempo. Maria Virgínia Petry, professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação de Biologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), iniciou sua relação com a Lagoa do Peixe em 1983, três anos antes da criação da UC, quando ia a campo em sua iniciação científica. Ela concorda com Eloir que uma série de condutas humanas erradas têm ameaçado o equilíbrio ecológico. E, com a crise climática, a disponibilidade hídrica tende a diminuir, agravando a situação.
“Tem fatores climáticos, mas também fatores de uso. As mudanças climáticas fazem com que os ambientes mudem. Por exemplo, há dois anos a Lagoa do Peixe secou completamente no verão, e a seca ficou mais acentuada na medida em que muita água foi captada antes de chegar na lagoa. Provavelmente, para as lavouras de arroz”, ela explica.
Antonio Brum é um dos orientandos de doutorado da professora Virgínia. Ele monitora o maçarico-de-papo-vermelho, que está ameaçado de extinção, e reforça que a integridade das áreas alagadas do parque é essencial para a sobrevivência da espécie, que se alimenta principalmente de moluscos.
“Por ser uma espécie bandeira das aves limícolas, no momento em que a gente tem bastante informação sobre ela e consegue ter uma aplicação prática disso nas medidas de conservação, a gente acaba conservando também outras espécies”.
Em virtude de sua relevância para as aves costeiras, desde 1991 a Lagoa do Peixe é um Sítio de Importância Internacional pela Rede de Reservas de Aves Costeiras do Hemisfério Ocidental. Em 1993, foi designada como Sítio Ramsar. Já em 2008, foi considerada Área Importante de Aves e Biodiversidade (IBA).

Engajamento da comunidade
Com quase 37 mil hectares, o Parque Nacional da Lagoa do Peixe enfrenta uma limitação comum em unidades de conservação: um efetivo de servidores desproporcional ao seu tamanho. Atualmente, conta com apenas um fiscal em campo. Como assegurar ações de comando e controle, de forma a diminuir o impacto negativo de atividades humanas, se os recursos são insuficientes?
“[O parque] precisa de fiscalização. Faz muito tempo que não se vê um fiscal dentro do parque; no entorno então nem se fala”, aponta Eloir.
Riti Soares dos Santos, chefe do PNLP desde 2023, admite que o déficit de pessoal é grave para um parque tão grande, mas que conta com o apoio de colegas de outras UCs para fiscalização periódica, e que a chegada de uma nova servidora, fruto do concurso público deste ano, ajudará a mitigar isso.
Ações de comando e controle sozinhas, porém, não resolverão os desafios do Parna. Raquel Carvalho, gerente de projetos no programa Aves Limícolas da SAVE Brasil, sabe bem disso. A organização tem aberto diálogo com as comunidades de Mostardas e Tavares para aumentar o senso de pertencimento a esse rico ecossistema e diminuir a resistência a uma política que lhes pareceu imposta na década de 1980 (um período fortemente marcado pela militarização, em que decisões eram tomadas sem ouvir quem mais seria afetado por elas).
“Era uma época em que as UCs em geral caíam na cabeça das pessoas do lugar, não tinha o trabalho de envolvimento com a comunidade. Então, não dá pra ignorar esse histórico ao pensar nas ameaças à Lagoa do Peixe”, afirma a bióloga.



A rejeição ao Parna parece ter aumentado ainda mais durante o governo Bolsonaro: em 2019, os ânimos se exaltaram e a Lagoa do Peixe foi palco de episódios marcantes, como o assédio moral do então ministro de Meio Ambiente Ricardo Salles contra servidores do ICMBio; uma campanha para rebaixamento de categoria; e a dança das cadeiras pela chefia da UC.
Na época, a SAVE conduziu uma pesquisa sobre a percepção dos moradores em relação à Lagoa do Peixe. Raquel conta que a equipe não podia nem mencionar a palavra “parque”, tamanha a aversão. Hoje, há o entendimento de que a relação melhorou.
“Não dá pra trabalhar com conservação sem as pessoas. As pessoas do lugar têm que se apoderar daquilo, têm que entender, têm que fazer sentido para elas a conservação daquele lugar”, diz Raquel.

Pesca artesanal autorizada
Antes contrário à existência de um parque nacional na área em que aprendeu a pescar com seu pai, Jair Joaquim Lucrécio hoje o defende. Ele é presidente da Colônia de Pescadores de Tavares Z11 há sete anos e representou a classe em um termo de compromisso firmado com o ICMBio em 2019.
O acordo autoriza os pescadores artesanais tradicionais a pescarem no interior do parque e estabelece regras que vão desde limitar a pesca para fins de subsistência e comercialização em pequena escala, até respeitar o tamanho mínimo e o período de defeso de peixes e crustáceos.
“Se o pescador que nasceu aqui e sempre viveu do parque nacional puder trabalhar, a gente não tem nada contra. Acho que é até melhor. A gente se sente mais protegido com o parque, entendeu?”, ele diz.
“Se o parque não existisse, talvez a gente que se criou na Lagoa do Peixe nem estivesse pescando mais, porque vinha o pessoal de fora e acabava com tudo. Eles pescavam qualquer tipo de peixe, qualquer tamanho, siri, peixinho miúdo, eles pegavam tudo”, afirma Jair, que, junto a outros pescadores e em parceria com o ICMBio, faz o monitoramento do camarão-rosa (Farfantepenaeus paulensis), para definir a data certa da abertura da temporada.
Ao visitarem o parque, muitos turistas se surpreendem com os pescadores ali dentro e se preocupam com a pesca excessiva. Por se tratar de unidade de conservação de proteção integral, em tese não deveria haver atividade econômica. Mas o decreto que regulamenta o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC) prevê que as condições de permanência das populações tradicionais, enquanto elas não forem reassentadas, serão reguladas por termos de compromisso.
Bem distante da ideia de reassentamento, Jair gostaria que a autorização para os pescadores cadastrados, que hoje somam 202, fosse vitalícia, oferecendo mais segurança para a geração de seus filhos, também pescadores. O termo de compromisso atual perderá validade em dezembro de 2025. Riti Soares adianta que o documento será renovado, mas não se sabe se sofrerá modificações.

Revisão do plano de manejo
O futuro do Parque Nacional da Lagoa do Peixe depende agora da revisão e implementação do plano de manejo, cuja última atualização data de 1999. Segundo Riti Soares, a revisão do plano está em andamento e tem prazo de dois anos, a partir de 2024, para ser finalizada. Um grupo de trabalho formado a partir do conselho consultivo da unidade tem se reunido para discutir as atualizações necessárias, e o próximo passo será o agendamento de reuniões com setores que têm relação direta com a UC, como pescadores, sindicatos rurais e pesquisadores.
Há muito trabalho a fazer. O governo ainda precisa desapropriar 210 imóveis situados dentro dos limites do parque, incluindo aqueles que mantêm atividade pecuária e plantação de pinus, uma espécie exótica. Em 2021, a Justiça Federal do Rio Grande do Sul condenou o ICMBio a realizar a regularização fundiária do parque no prazo de até sete anos, a partir de uma ação civil pública.
O chefe da UC diz que há um plano de trabalho em andamento e que as conversas com os proprietários estão sendo feitas, mas nenhuma área passou para domínio da União ainda.
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