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Avis rara

A habilidade de pescar cortando com o bico as águas rasas de rios e de praias é uma das características únicas do talha-mar

Aldem Bourscheit ·
31 de agosto de 2023

Seja chamado de talha-mar, em ambientes litorâneos, ou de corta-água, sobretudo nos interiores do Brasil, essa ave tem um jeito único de pescar, diferente de todos os outros emplumados do globo. 

Em boa velocidade e baixa altitude, vasculha águas rasas buscando pequenos peixes e crustáceos. Ao menor toque de uma presa, inúmeros sensores fazem seu bico, afilado como uma lâmina, se fechar. 

Animais menores são devorados imediatamente. Os maiores são antes despedaçados fora da água, onde também podem alimentar seus esfomeados filhotes. 

“São pássaros fascinantes e belos. É um privilégio ter a oportunidade de entrar em seus mundos e observar suas vidas”, resume Lisa Davenport, pesquisadora da espécie na Universidade da Flórida (Estados Unidos).

A parte inferior (mandíbula) de seus bicos cortantes pode ser de três a quatro centímetros mais longa que a superior. Uma diferença que se destaca a partir dos 3 meses de vida da espécie.

Bandos de talha-mar sobrevoam, descansam e pescam numa praia. Vídeo: YouTube/Norm Grant.

“A ave também nunca mergulha ou pousa na água, mesmo com membranas nas patas. Além disso, não se empoleira em galhos ou árvores”, conta Ariane Gouvêa, doutora em Zoologia pela Universidade de São Paulo (USP).

Mas há outras características únicas da espécie elencadas pela Ciência, como pupilas tal e qual às de alguns répteis e felinos. Fechadas, filtram reflexos da lâmina d’água. Abertas, facilitam pescarias mesmo com pouca luz.

“Isso permite a ela voar com o bico dentro d’água até em noites sem lua e não bater em galhos e outros obstáculos”, conta Paulo Zuquim Antas, pesquisador de aves desde 1976 e doutor em Ecologia pela Universidade de Brasília (UnB).

Outros de seus comportamentos sugerem que a natureza selvagem tem boas doses de romantismo. “Antes de acasalar, os machos do talha-mar presenteiam as fêmeas com peixes”, conta a cientista Ariane Gouvêa.

Ramificações familiares

Estudos e monitoramento de animais anilhados mostram que o corta-água pode viver até 20 anos. “Para uma ave, é bastante tempo. Poucas chegam nesse patamar de vida”, avalia o ornitólogo Paulo Antas.

Isso vale para duas espécies similares na Ásia e na África e para as três subespécies americanas. As últimas não são tão diferentes para serem apartadas em variedades distintas.

Essas estão distribuídas ao longo do continente, do litoral dos Estados Unidos, México, Panamá, da costa colombiana à foz do Rio Amazonas. Ainda no Equador, Bolívia, sul do Chile e noroeste da Argentina.

“A subespécie norte-americana se reproduz predominantemente em áreas costeiras, enquanto a sul-americana sobretudo em praias fluviais [de rios]”, revela Lisa Davenport, da Universidade da Flórida. 

A variedade mais comum no Brasil (Rynchops niger intercedens) é avistada junto a grandes rios, do Maranhão ao Mato Grosso, leste do Paraguai, Uruguai e Argentina. No Inverno, ainda mais nos litorais desses países.

Um par de Rynchops niger intercedens, a subespécie mais comum no Brasil. Foto: Bernard Dupont / Creative Commons

Alguns dos locais mais importantes para reprodução e alimentação dessas aves são regiões nas bacias do rio Cuiabá, do rio Negro e do rio Paraguai, no Pantanal, bem como do rio Araguaia (GO e TO) e Lagoa do Peixe (RS).

“Em regiões como do Pantanal, ocasionalmente diferentes subespécies fazem ninhos nas mesmas praias. Até mesmo alguns pares de diferentes subespécies se reproduzem com sucesso”, revela Lisa Davenport.

As aves também circulam por áreas protegidas, como a Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá e Parque Nacional de Anavilhanas (AM) e Reserva Biológica do Rio Trombetas (PA).

Espécie usa grandes praias fluviais amazônicas, como no Parque Nacional de Anavilhanas (AM). Foto: ICMBio / PNA

Fora do Brasil, as variedades americanas são encontradas em locais como as reservas Nacional de Paracas (Peru) e Natural Provincial Mar Chiquita (Argentina). Nessa, até 12 mil dessas aves foram registradas.

Monitoramento científico tem mostrado que muitos talha-mar circulam entre várias destas regiões no continente americano, percorrendo incríveis distâncias graças à sua capacidade migratória. 

“Aves anilhadas no Rio Tefé, no Amazonas, foram encontradas mortas no Uruguai, a quase 4 mil km de distância”, revela Ariane Gouvêa, doutora em Zoologia pela Universidade de São Paulo (USP).

Poderosa viajante

Ágil, a ave alterna o bater de asas ao pescar. Por vezes, quase plana. Tudo graças à sua grande envergadura, de quase 1,3 metro, e peso reduzido, de até 400 gramas. Isso também favorece suas longas migrações. 

“É uma máquina de voar muito efetiva. Deslocamentos extensos são feitos rapidamente com velocidades impressionantes e grande persistência no ar”, detalha o pesquisador Paulo Zuquim Antas.

Mas, ao contrário de seguir rotas costumeiras como fazem outras aves, a espécie tem “padrões mais explosivos” e pode não usar muitos caminhos já batidos. Mas, há certa ordem nesse aparente caos.

As variações de chuvas e do nível da água dos rios influenciam os deslocamentos da espécie, que usa praias seguras reveladas pela estiagem para procriar. 

“Eles migram quando as águas sobem, pois perdem seus locais de descanso e de reprodução”, explica Ariane Gouvêa, que investigou os deslocamentos da espécie em sua tese de doutorado junto à USP.

A grande envergadura permite ao talha-mar realizar grandes migrações anuais. Foto: Hillebrand Steve / USFWS / Creative Commons

Não bastando, a ave sobrevoa os Andes acima de 5 mil m desde regiões da Amazônia ao litoral do Pacífico, no Peru. “Uma travessia similar à migração de aves cruzando os Himalaias”, descreve o ornitólogo Paulo Antas. 

Estudos liderados por Lisa Davenport, da Universidade da Flórida, mostram que a migração transandina do talha-mar é a primeira documentada para qualquer ave que se reproduza em planícies amazônicas. 

Outras espécies migratórias também cruzam a cordilheira sul-americana, como a andorinha-do-ártico (Sterna paradisaea) e alguns membros da família dos abutres, mas por áreas mais baixas entre as montanhas. 

“É bastante singular a facilidade com que grande parte da população das subespécies de talha-mar atravessa os Andes duas vezes por ano [ida e volta das migrações]”, avalia Lisa Davenport.

A ave também busca a cada migração locais com maior oferta de alimentos. “Nas zonas costeiras, ela tende a passar a maior parte do tempo na foz dos rios, onde predominam as águas rasas que preferem”, conta a cientista.  

Ameaças indiretas

As três subespécies americanas de talha-mar não estão ameaçadas de extinção, mas vários dos ambientes que usam para procriar, comer e descansar podem estar com os dias contatos.

“O mais importante para sua conservação é manter preservados seus habitats. Destruí-los ameaça essa e várias outras espécies de aves e de outros animais”, analisa a doutora em Zoologia Ariane Gouvêa. 

Os ninhos da espécie são pequenas cavidades na terra ou areia margeando rios e praias. Cada postura tem de 2 a 4 ovos amarelados com manchas marrons. A incubação dura até 26 dias. 

Filhotes repousando num ninho de talha-mar. Foto: Sylvia Centrón / Fauna Paraguay

“Elas parecem preferir praias sem vegetação, onde predadores poderiam se esconder e atacar ovos e filhotes”, detalha Lisa Davenport, da Universidade da Flórida. Mesmo assim, muitos ovos são roubados por pessoas.

Além disso, os ninhais podem ser afogados quando o nível da água de rios é alterado à força por barragens de hidrelétricas, desmate, incêndios, queimadas e até pela circulação de grandes barcos. 

“A liberação excessiva da barragem do rio Manso, em Mato Grosso, em setembro de 2002, inundou as praias de reprodução, matando filhotes e carregando os ovos sendo chocados”, recorda Paulo Antas.

Um estudo editado na revista Conservation Science and Practice contou 900 hidrelétricas na Amazônia sul-americana – 434 prontas ou em obras. A maioria dos projetos está no Brasil, como nas bacias dos rios Tapajós, Araguaia e Tocantins.

“Se trechos de rios abaixo das represas forem privados de sedimentos e dinâmicas naturais, você pode ter um tipo de rio muito diferente, sem praias extensas e sem arbustos”, agrega Lisa Davenport.

As hidrelétricas de Jirau (foto) e Santo Antônio, em Rondônia, alagaram uma área 52% maior do que a prevista ao longo do Rio Madeira. Foto: PAC / Divulgação

Além do barramento, a poluição de rios por químicos e agrotóxicos também ameaça rarear as presas do corta-água, pondo em xeque a sobrevivência de adultos e filhotes. 

“Vale o mesmo para áreas costeiras, onde a sobrepesca de alguns peixes menores para uso como isca, para consumo humano ou fabricação de ração pode depauperar o estoque de alimentos da espécie”, ressalta o ornitólogo.

A crise global do clima também assombra o futuro das subespécies americanas. Afinal, rios que descem os Andes e alimentam a Amazônia têm seu nível afetado pelo degelo e pelo regime de chuvas.

“É preciso avaliar efeitos na oferta de praias para reprodução na Bacia do Rio Madeira, por exemplo, que recebe muito desse degelo, ou no próprio Rio Amazonas, chamado de Marañon no Peru”, detalha Paulo Antas.

Apesar das pressões, o talha-mar pode driblar dificuldades graças a sua versatilidade. “Ela pode se reproduzir até em praias onde a nidificação de tartarugas é protegida”, revela Lisa Davenport, da Universidade da Flórida.

“Acredito que a espécie tenha fortalezas e possa se adaptar a anos reprodutivos bons e ruins, como muitas aves marinhas estão adaptadas. Portanto, acho que ela está segura em curto prazo”, avalia a cientista. 

  • Aldem Bourscheit

    Jornalista brasilo-luxemburguês cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Sel...

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Comentários 4

  1. Ariane Gouvea diz:

    É um privilégio poder estudar essas aves fantásticas! Excelentes reportagem, Aldem! O talha-mar merece ter a sua história contada.
    Grande abraço. Ariane Gouvêa:)


    1. Aldem Bourscheit diz:

      Grato a você e aos demais cientistas que vêm nos revelando tantas coisas fantásticas.


  2. RAFAEL MARQUES diz:

    Olá.

    O Talha mar é avistado constantemente no litoral sul de SC, nas praias, rios e lagoas.


    1. Sérgio diz:

      “Avis”??????? Que animal é esse?