A situação difícil das unidades de conservação brasileiras já foi exposta diversas vezes em reportagens e colunas veiculadas em ((o))eco. Na longa lista de desafios, a maioria deles passa – direta ou indiretamente – por uma causa comum: a falta de recursos. A resposta vaga ganhou uma dimensão mais concreta – e assustadora – com uma pesquisa que levantou quais seriam os custos mínimos para gestão das áreas protegidas e quanto elas de fato recebem. O resultado foi a estimativa de que 76,6% das unidades de conservação federais apresentam déficit de financiamento. Os dados levantados correspondem ao ano de 2016, mas a perspectiva é de que o déficit só tenha se agravado ainda mais desde então.
O artigo foi publicado no final de julho no periódico Elsevier e é assinado por pesquisadores da Universidade de Miami, nos Estados Unidos, da Universidade Federal do Amapá (UFAP) e do Ibama.
O estudo analisou a situação de 282 unidades de conservação (UCs) terrestres que precisariam de US$ 468 milhões para cobrir seus custos recorrentes de gestão em 2016. No entanto, o governo brasileiro investiu US$ 72,8 milhões no período, o equivalente a apenas 15,5% do total necessário. O déficit de financiamento corresponde a porcentagem de custos de gestão anual que não são cobertos pelos fundos disponíveis para unidade de conservação.
Para fins de comparação, o estudo separou as UCs em três regiões – Amazônia, Mata Atlântica e os biomas de savanas e florestas secas (Caatinga, Cerrado, Pantanal e Pampas) – e constatou que apesar das iniciativas dedicadas ao bioma, como o ARPA (Programa Áreas Protegidas da Amazônia), a carência é maior nas UCs da Amazônia, onde a média do déficit é de 89,7%.
“[Os programas] ajudam um pouco, mas são insuficientes. Não sabemos o quão fácil é para os gestores das UCs amazônicas acessarem e usarem os recursos destes programas especiais. Não adianta ter milhões disponíveis na conta se os gestores(as) não possuem capacidade de usarem os recursos porque eles não possuem apoio administrativo suficiente local para cumprirem todos os procedimentos operacionais exigidos pelos doadores Internacionais”, pontua em entrevista ao ((o))eco o coordenador da pesquisa, José Maria Cardoso da Silva, da Universidade de Miami.
As UCs da Mata Atlântica são as que apresentam a melhor situação financeira, com um déficit médio de 24,8%. Nas regiões savânicas e do semiárido, a média do desfalque foi de 53,5%. Das 282 unidades pesquisadas, as únicas (66) que não apresentaram déficit em 2016 estão nestas duas regiões.
Categorias de UC | Nº de UCs | Área Total (km²) | Custos de gestão total (US$/ano) | Investimento público total (US$/ano) | Déficit total (US$/ano) | Média do déficit de investimento (%) |
Amazônia |
||||||
Proteção Integral | 38 | 296.234 | 141.482.798 | 10.717.329 | 130.765.469 | 90.8 |
Uso Sustentável | 79 | 303.492 | 199.448.606 | 10.400.225 | 189.048.380 | 89.2 |
Total | 117 | 599.726 | 340.931.405 | 21.117.554 | 319.813.850 | 89.7 |
Cerrado, Pampa, Pantanal e Caatinga |
||||||
Proteção Integral | 37 | 52.829 | 48.515.492 | 12.188.071 | 36.327.357 | 54.4 |
Uso Sustentável | 30 | 44.509 | 29.002.700 | 5.990.542 | 23.012.157 | 52.4 |
Total | 67 | 97.338 | 77.518.130 | 18.178.614 | 59.339.515 | 53.5 |
Mata Atlântica |
||||||
Proteção Integral | 50 | 10.186 | 15.725.598 | 21.236.426 | – 4.820.249 | 19.3 |
Uso Sustentável | 48 | 34.530 | 33.754.552 | 13.297.222 | 20.457.329 | 30.6 |
Total | 98 | 44.716 | 49.480.151 | 33.533.648 | 15.946.502 | 24.8 |
TOTAL UCs | 282 | 741.782 | 467.929.686 | 72.829.815 | 359.099.869 | 58.6 |
O estudo também identificou que apesar das unidades de conservação maiores custarem menos por km² do que as pequenas, elas tendem a ter os maiores déficits; e que as novas UCs também recebem menos financiamento do que as mais antigas. Além disso, a pesquisa revelou que o aporte de recursos está associado aos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) da região onde está inserida a UC, sendo aquelas localizadas nas áreas mais desenvolvidas as que também recebem maiores investimentos do poder público.
“A lacuna geral de financiamento de UCs no Brasil aumentou na última década. Esse padrão possivelmente se deve a dois fatores. O primeiro é o descompasso entre a rápida expansão da cobertura de UCs do país nas últimas três décadas (o Brasil multiplicou seu patrimônio de UCs em 13 vezes de 1980 a 2019) e o lento crescimento na alocação de recursos públicos para essas UCs. O segundo fator possível é que, na última década, o Brasil sofreu recorrentes crises fiscais e políticas que minou a capacidade do governo federal de aumentar seus gastos em vários setores críticos, incluindo a gestão de suas UCs”, concluem os autores no artigo.
Para levantar os custos, os pesquisadores primeiro calcularam o número mínimo de funcionários que uma unidade de conservação necessita. “Como este número depende da área da UC, então usamos as seguintes regras: com menos de 100 km², uma UC teria que ter pelo menos cinco funcionários e com mais de 10.000 km² , a UC deveria ter pelo menos um funcionário por 100 km². Com estes extremos definidos, criamos uma fórmula para calcular o número de funcionários para as áreas de tamanho intermediário. Depois multiplicamos o número de funcionários por um salário médio de 14 mil dólares anuais”, explica José Maria Cardoso. Esse valor era então multiplicado por dois para estimar os custos de manutenção de uma unidade de conservação, baseado em uma fórmula já desenvolvida pela pesquisadora Teresa Cristina Albuquerque Dias, uma das coautoras do artigo.
“O difícil foi estimar os investimentos anuais do governo para poder calcular o déficit, pois tivemos que extrair estes dados do portal da transparência do governo junto com um estudo detalhado dos relatórios internos do ICMBio”, acrescenta José, que também ressalta que essa estimativa corresponde aos custos mínimos para gestão de cada unidade. “O custo real deve ser maior porque ele deve variar com o tipo e os objetivos de cada unidade”, aponta.
Além disso o cálculo dos pesquisadores não contempla os custos gerais do sistema, como o suporte técnico e operacional de gestão, e os gastos para implementação da UC, que incluem os investimentos em infraestrutura e a regularização fundiária do território – esta que para ser resolvida deve custar cerca de 3 bilhões de dólares aos cofres públicos.
A análise dos pesquisadores foi feita sobre 2016, mas desde então a situação não melhorou para as áreas protegidas. “Eu acredito que a situação agora está muito pior. A pandemia levou o país para uma nova recessão e o governo não foi hábil o suficiente para manter os investimentos internacionais nas unidades de conservação. Entretanto, eu vejo com bons olhos o movimento do governo em tentar atrair o setor privado para ajudar a manter as unidades de conservação do país via concessões. Entretanto, este movimento isoladamente será insuficiente, pois concessões só podem ser feitas em alguns tipos de UCs. O que falta é um movimento que vá muito além das concessões. É preciso criar uma cultura de co-responsabilidade do setor privado com as UCs brasileiras”, indica o pesquisador.
“Independente da estratégia, eu não acredito que o atual ministro tem condições de liderar um diálogo produtivo em prol das unidades de conservação”, opina.
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É uma pena que o artigo ilustre e superestime os pontos negativos das Unidades de Conservação. Na Amazônia temos 132 Unidades de diferentes categorias, muita beleza, bons projetos rodando e servidores sérios, comprometidos dando tudo de si para cumprir os objetivos de criação da unidades, o povo brasileiro é o verdadeiro DONO desses espaços especialmente protegidos que guardam berçários, nascentes e rica biodiversidade da fauna e flora brasileira, tão pouco estudadas ainda… Falta desenvolver na sociedade o sentimento de pertencimento e responsabilidade ambiental com as áreas protegidas. Se os recursos ainda não são suficientes, poderiam ter mostrado quanta beleza cada unidade tratada possui e precisa de atenção da sociedade, governo e parceiros, e não mostrar varal de roupa como prova de falta de investimento.As ilustrações da reportagem denigrem a importância das unidades e narra de forma pejorativa o esforço que vem sendo feito para manter e proteger o patrimônio natural brasileiro.
Esta na hora de rever, MINUCIOSAMENTE, o papel, resultados gerados e custo-beneficio dos tais Centros de Pesquisa do ICMBIO. Não é pra extinguí-los, e sim fazê-los trabalhar PARA o Estado, PARA a gestão e conservação da biota, e não em prol de seus próprios Lattes! Muito verba podia ir diretamente pras UCs, mas tá bancando o coffee-break do milésimo "encontro de especialistas"! E isso não é de hoje, entra governo, sai governo, tudo na mesma. Acho,aliás, que o contribuinte brasileiro nem sabe que esses centros existem, com exceção do TAMAR e seus Centros de Visitação (que nem são mais .gov na maioria)