Rute Lourença, 54 anos, não consegue imaginar uma vida fora do Pantanal. A ribeirinha e pescadora mora em uma casa de madeira à beira do Rio Paraguai, em Cáceres, no Mato Grosso. Ela afirma que a única forma que se vê indo embora dali é morta. Ao menos, esta é a prece que ela faz a Deus todos os dias antes de sair para buscar as iscas que vende aos pescadores da região. Ali é o lugar onde ela encontra paz. Contudo, nos últimos anos, a paz de Rute tem sido cortada pelos riscos que assombram o bioma. Primeiro foram os incêndios que rodearam a sua casa em 2020, depois a pior seca dos últimos 50 anos que assolou a maior planície alagável do mundo, em 2021. Agora a apreensão está em uma licença prévia concedida pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONSEMA) em janeiro, para a construção do Porto Barranco Vermelho, no tramo norte do Rio Paraguai, umas das áreas consideradas mais sensíveis do bioma.
Rute reconhece os riscos de todo esse processo. Busca se informar com organizações locais. E a previsão de que dentre as principais consequências de um empreendimento como este é a seca extrema e a escassez de peixes a atormenta. “Por isso que eu falo pra todo mundo que este projeto vai encher o bolso de quem é de fora, pra gente não vai restar nada! Eu peço ao meu pai que tá no céu que me leve embora daqui somente num caixão. Não quero mais nada na vida. Sou pantaneira, remo, toco qualquer motor que me der. Não tenho medo de entrar nesse pântano para pegar isca com água até no pescoço. Essa é a minha vida. É doído ver que tudo pode se acabar”, afirma a pescadora.
Pesquisadores apontam que o licenciamento de portos – estão previstos três para a região – visa um projeto ainda maior que é o estabelecimento da Hidrovia Paraguai-Paraná neste trecho do rio, sem que haja estudos suficientes sobre os impactos disso. O objetivo é realizar operações portuárias e transporte de grãos, fertilizantes e combustíveis, em um trecho de 680 km, até Corumbá (MS). A situação permitiria a navegação de barcaças com toneladas de soja no tramo norte do Rio Paraguai, onde estão localizados a Reserva Ecológica do Taiamã, reconhecida como sítio Ramsar, e o Parque Nacional do Pantanal Mato-Grossense. Ambos locais culminam em uma área de diversidade ambiental ímpar no bioma.
“Há uma ausência de estudos consistentes sobre os impactos destes projetos na Bacia do Alto Paraguai. Em todas as reuniões entre a Sema (Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso) e os empreendedores, eles não consideram que estes portos estando lá licenciados, construídos e funcionando, irão possibilitar a navegação industrial no tramo norte do Rio Paraguai”, explica Mariana Lacerda, advogada e coordenadora executiva do coletivo PesquisAção – grupo formado por analistas de diversas áreas que tem como objetivo atender as demandas das comunidades pantaneiras. “Se eles não consideram as passagens destas barcaças para fins de estudos ambientais, muito menos consideram isso em contexto de bacia hidrográfica. Esta é uma das principais irregularidades deste processo de licenciamento”, conclui a advogada.
Ameaças ignoradas
O Barranco Vermelho foi o primeiro porto, até então, a conseguir a licença prévia para se estabelecer no tramo norte do Rio Paraguai. Contudo, todo processo ocorreu se abstendo dos inúmeros danos ambientais e irregularidades apontadas por especialistas. Técnicos da própria SEMA indicaram 111 pendências no Relatório de Impacto Ambiental, o EIA/RIMA. Mesmo assim, o órgão emitiu parecer técnico favorável à licença prévia em dezembro de 2021. Que, consequentemente, culminou na sua aprovação no Consema, em janeiro deste ano. Conforme apontado pelo site Olhar Direto, a construção do Porto Barranco Vermelho será feita pela multinacional paraguaia Líneas Panchita G (LPG), uma das maiores empresas do Paraguai e responsável pelo maior número de barcaças que trafegam pelo rio Paraguai.
Para Alcides Faria, biólogo e diretor executivo da ONG Ecoa, a tática usada para o implemento da Hidrovia Paraguai-Paraná tem sido a aprovação de projetos isolados, como as propostas destes portos. Ele explica que para ocorrer a viabilidade de navegação na região, seria necessário alterar um dos pontos mais selvagens do Pantanal. “O grande problema do Barranco Vermelho é que por si só ele não se viabiliza. E o que é preciso para isso? Muita dragagem. E onde? Na parte mais selvagem do Pantanal. Me atrevo a dizer que a alma do Pantanal, em termos de diversidade e de regiões ainda intocadas pelo homem, é ali. Que são a Reserva Ecológica do Taiamã e o Parque Nacional do Mato Grosso”, afirma Faria.
Outra situação que preocupa especialistas é a ideia de retilinização do Rio Paraguai. O tramo norte do rio é cheio de curvas que não comportam a navegação de barcaças com toneladas de grãos. Seria necessário alterar o leito do rio. Situação que trará danos jamais vistos no bioma. “O Rio Paraguai na região de Cáceres e Serra do Amolar é muito sinuoso, para deixar o tráfego de embarcações maiores viável economicamente vai ter que linearizar parte do rio. Isso vai acabar com a dinâmica de cheia do Pantanal norte como um todo. Ou seja, para viabilizar a hidrovia, eles irão inviabilizar o Pantanal como ele é hoje”, afirma Gustavo Figueiroa, biólogo e diretor de comunicação da SOS Pantanal.
Ao dragar e alterar o leito do Rio Paraguai, toda dinâmica de inundação do bioma será afetada, fazendo com que a água escoe mais rápido do que o comum. Consequentemente, as lagoas que se formam na cheia e que suprem toda diversidade de animais da região secariam, afetando drasticamente o modo de vida de inúmeras espécies. “Vou te dar um exemplo claro. Uma das áreas que serão dragadas é Taiamã. Lá tem uma população de onças pintadas especializadas em pesca. Elas se aproveitam das baías que são formadas pela cheia, para pescar o seu alimento. Se você afeta a dinâmica da cheia, você atinge diretamente o modo de vida desses animais”, esclarece Figueiroa.
População silenciada
Para Isidoro Salomão, coordenador do Comitê Popular do Rio Paraguai e representante da Associação Sócio Cultural Ambiental Fé e Vida, que vive à beira do Rio Paraguai, um projeto como este não deveria existir uma vez que não há hidrovia para as barcaças passarem. “Por que fazer um Porto se não tem hidrovia? Porque licenciar um porto se a hidrovia não é licenciada? É como fazer uma rodoviária sem ter uma rodovia para o ônibus percorrer”, pontua Salomão. Para ele, um projeto como este determina o fim do bioma. “Eu costumo dizer que a água é o sangue do Pantanal. A hidrovia mudaria a sua estrutura e impediria que ele alagasse. É como se ele [o bioma] sangrasse até à morte”, afirma.
A Fé e Vida tem cadeira no Consema. Em janeiro, em defesa de seu voto contra a instalação do porto, uma das questões apontadas pela associação foi que o projeto apresentado ignorou a existência de comunidades tradicionais nas proximidades do empreendimento, assim como quilombolas e indígenas. E que também não levou em consideração os pescadores profissionais, simplesmente informando que a região do empreendimento não é polo para pesca profissional.
“Ninguém procurou a gente. Fizemos um protocolo de consulta prévia para eles terem um acesso a nós. Nós não temos conhecimento nenhum do projeto deles. E eles já querem colocar o porto deles para funcionar. Ninguém nos consultou. Ninguém veio aqui para saber como a gente vive, onde a gente pesca”, disse o pescador Silvano Ramos da Silva, de 34 anos.
A poucos quilômetros de Silvano, vive a pescadora Nilza da Silva. A mulher, de 50 anos, afirma que nesta situação o pescador é invisível e que nunca visitaram a sua casa para falar sobre o Porto Barranco Vermelho. “Eu nunca recebi esse povo no meu rancho, eu nunca vi eles no rio. Eu moro aqui o ano todo. Só saio daqui na época da piracema, mas eu vou e volto. Nunca vieram me fazer uma visita. E aí eles falaram que vieram, andaram no rio e não acharam pescador. Tudo deles é maracutaia, o que mais tem rio abaixo é acampamento de pesca”, afirma a pescadora.
Nilza ainda pontua: “eles não ouvem o pescador, entendeu? E é a gente que tá ali no dia a dia. Na reserva Taiamã dentro dela o rio é estreito, cheio de curva. A gente já tem que tomar cuidado com nossos barcos que tem 7 metros. Navegar ali na região durante a seca é perigoso. Quando você vê já tá em cima de outra embarcação. Agora você imagina essas barcaças e gente tendo que fugir delas”.
Para Cláudia Sala de Pinho, coordenadora regional da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras, o que está ocorrendo no Rio Paraguai é uma tentativa de esvaziar o Pantanal. “O processo como um todo, sempre foi um processo de exclusão. Existe uma tentativa de esvaziar o Pantanal, de negar que lá tem gente, cultura e tradicionalidade. Esse esvaziamento é proposital com o intuito de tratar o bioma como um grande vazio demográfico. Não considerando as pessoas, é mais fácil instalar empreendimentos”, diz Cláudia.
Cláudia chama atenção para um ponto que considera importante refletir: “quando a gente tá falando do pantaneiro, estamos nos referindo aos descendentes de indígenas e negros que formaram aglomerações em meio ao bioma. O Pantanal nunca foi um vazio. São essas pessoas que manejam o território. Contudo, o Pantanal é sempre visto como esse bioma que tem grandes mamíferos e muita água. Esquecem dos grupos que estão no Pantanal há séculos e que ajudam a fazer dele este grande santuário”.
Outro lado
A Sema afirmou que o EIA apresentado não apontou impactos que justificassem a inviabilidade do empreendimento. E que o licenciamento para o empreendimento da Unidade Portuária Barranco Vermelho, terminal às margens do Rio Paraguai, começou em outubro de 2016 e passou por todas as análises técnicas necessárias para essa etapa do licenciamento. Quanto aos 111 apontamentos feitos no EIA, a secretaria disse que “todos os apontamentos feitos pelo órgão ambiental foram sanados. E isso possibilitou a conclusão da análise do licenciamento prévio, e não haveria a conclusão desta primeira etapa se a empresa não cumprisse as exigências legais”.
Quanto à consulta prévia, a secretaria informou que “foi realizada uma audiência pública híbrida com mais de mil presentes, de modo online e presencial, além da Consulta Pública, que durou 30 dias, para ouvir a população e incorporar melhorias ao projeto. As informações coletadas são levadas em consideração durante a análise”.
A audiência pública foi realizada em 30 de outubro de 2020, ocasião em que o Pantanal enfrentava o pior incêndio de sua história. Situação que, segundo organizações da sociedade civil, impediram que grande parte da população que será impactada pelo projeto não estivesse presente, além da dificuldade de acesso a internet .
Quantos aos danos que podem vir a ocorrer pelo fluxo de barcaças e as indagações quanto isso ser um plano para a formalizar a hidrovia, o órgão afirmou que isso “é competência da União, que regulamenta a navegação fluvial compartilhada no curso da hidrovia Paraguai-Paraná como parte de um tratado de cooperação internacional entre a Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai. Quem cuida da questão ambiental relacionada à navegabilidade é o Ibama, que tem a competência de licenciar eventuais obras necessárias no curso da hidrovia, como obras de engenharia e dragagens”.
Os repórteres viajaram ao Pantanal com o apoio da iniciativa Observa-MT
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