Uma combinação de degradação ambiental a perder de vista, de inação dos órgãos públicos diante do aumento das fontes de poluição domésticas e industriais e da falta de respostas a demandas sociais, historicamente ignoradas e invisibilizadas, tem levado ao agravamento das condições de pobreza de pescadores de Duque de Caxias. Nesse trecho da Baía de Guanabara, onde já não existem mais peixes e caranguejos, uma comitiva da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPERJ) ouviu relatos e presenciou cenas na terça-feira (20) que confirmam o cenário de abandono das comunidades pesqueiras, transformadas em catadoras de rios e mangues quase sem vida, de onde retiram materiais recicláveis para tentar manter a sobrevivência familiar.
“O que vimos lá foi um quadro de extrema vulnerabilidade e insegurança alimentar vivenciadas pelos pescadores, causadas pela degradação dos rios da região. Uma verdadeira realidade de racismo ambiental que atinge as minorias étnicas periféricas, diante da ausência de políticas públicas ambientais”, afirma a defensora pública Thaís dos Santos Lima, do 4º Núcleo de Tutela Coletiva da DPERJ.
Ela explica que os defensores participantes da vistoria tiveram notícias “de que as multas ambientais aplicadas por órgãos governamentais não se reverteram em benefício aos pescadores locais que, diante do grande assoreamento dos rios Sarapuí e Iguaçu, se veem impossibilitados de sair com seus veículos na maré baixa”. Ainda segundo esclareceu, “o 4º Núcleo de Tutela Coletiva da Defensoria abriu diálogo com esses pescadores para entender suas principais necessidades e já articula com órgãos governamentais para viabilizar a promoção de direitos dessa população”.
Em função dessa mobilização, a defensora relata que, “na sexta-feira (23) foi realizada reunião entre a Defensoria Pública e a representação da Fiperj [Fundação Instituto de Pesca do Estado do Rio de Janeiro], em Duque de Caxias, para tratar de medidas que possam viabilizar o registro geral dos pescadores, bem como a inclusão destes em programas sociais”.
Gilciney Lopes, presidente da Colônia de Pesca de Duque de Caxias, demonstra esperança na atuação da Defensoria Pública e se diz muito motivado após a passagem dos defensores pela vistoria. “Para mim foi muito mais do que eu poderia imaginar. O negócio aqui tá grave e eles vieram com disposição para mudar essa situação. Fizemos uma excelente visita técnica nos rios Iguaçu e Sarapuí e nas comunidades pesqueiras”, afirma o pescador que tem registrado em vídeos e fotos, diariamente, os estragos que a poluição tem causado, afetando, inevitavelmente, a pesca e inviabilizando condições de sobrevivência digna na área de atuação dessa comunidade pesqueira.
“Estou confiante. Coisa que eu não via acontecer há mais de 40 anos de pesca aqui na região eu estou vendo agora [depois da vistoria]. Aqui as pessoas nunca vieram para perguntar como é que a gente tem vivido”, reitera o líder comunitário que também tem liderado inúmeras denúncias e ações judiciais contra o avanço da degradação ambiental nessa região da Baía de Guanabara, juntamente com o Movimento Baía Viva, várias delas registradas em reportagens que ((o))eco tem acompanhado.
Representando a Defensoria Pública, além da defensora Thaís dos Santos Lima, participaram da vistoria técnica e visita às comunidades de Chacrinha, Sarapuí e Saracuruna, em Duque de Caxias, o ouvidor geral, Guilherme Pimentel; o representante do Núcleo de Defesa Consumidor, Eduardo Chow; e o responsável pelo Grupo de Trabalho (GT) de Segurança Alimentar, Rodrigo Azambuja.
Ações emergenciais e de reparação são destacadas por ambientalista
O ecologista Sérgio Ricardo de Lima, cofundador do Movimento Baía Viva, também demonstra otimismo com a mobilização gerada pela presença dos defensores públicos na vistoria que solicitou, juntamente com a Colônia de Pesca de Duque de Caxias. “Foi um peso pesado institucional”, observa. “Descemos os rios poluídos e fomos ao ponto de lançamento de chorume [se localiza no entorno do antigo aterro sanitário de Jardim Gramacho], alvo de ações do Ministério Público Federal (MPF)”, recorda.
“Depois subimos o rio Iguaçu e fomos naquele ponto onde a Reduc [Refinaria Duque de Caxias] despeja amônia”, denuncia. Ainda segundo o ambientalista, na hora em que a comitiva passou pelo local foi sentido um forte mau cheiro que vem sendo cotidianamente alertado pelos pescadores. Alguns chegam a passar mal pelo odor. Após registro de fotos e vídeos nessa área, a comitiva seguiu para as comunidades pesqueiras.
Como resultado prático da vistoria, o ambientalista destaca que uma primeira providência da defensora Thaís dos Santos Lima foi buscar encaminhamentos para o registro geral de pesca, que assegura a carteira de pescador, documento imprescindível que a maioria dos integrantes da Colônia de Pesca de Duque de Caxias não possui. “Com isso eles não conseguem acessar direitos básicos como seguro-defeso, previdência social, aposentadoria e outros”, ressalta.
O ambientalista afirma que a tentativa da defensora de fazer o cadastro de alguns pescadores esbarrou em inúmeras dificuldades relacionadas ao processo digital. “Esse tal cadastro novo 4.0 [no âmbito do Ministério da Agricultura e Abastecimento – Mapa] é super complicado. Ninguém consegue fazer. Claro que esse tipo de cadastro vai excluir direitos”, opina.
Lima também menciona os esforços para assegurar o reconhecimento jurídico da existência de pescadores artesanais em Duque de Caxias, iniciativa que tem recebido a atenção dos defensores públicos e é alvo de outra ação do MPF que busca anular o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), firmado em 2017, entre o Instituto Estadual do Ambiente e as empresas Gas Verde, J Malucelli Construtora de Obras e Biogas Energia Ambiental, gestoras do passivo ambiental do antigo aterro sanitário que tem intensificado controvérsias com pescadores.
Essa demanda, inicialmente liderada pelo procurador da República Júlio José de Araújo Júnior, à época atuando no MPF de São João de Meriti, foi gerada pela falta de consulta à comunidade pesqueira local, no acordo do TAC, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para casos de negociações que envolvem interesses de comunidades tradicionais.
“Participamos de uma audiência no ano passado porque o Inea e as empresas diziam que não tem pescador tradicional em Duque de Caxias. O MPF, na gestão do procurador Júlio Araújo, apresentou na ação um laudo antropológico muito interessante que reconhece a presença ancestral de pescadores como descendentes de povos indígenas tupinambás [na Baía de Guanabara]. E no caso de Duque de Caxias, há registros históricos da presença de cerca de 20 mil jacutingas, etnia que era dominante na região do rio Iguaçu. Além disso, ali na Baixada Fluminense, houve uma forte presença de africanos escravizados que foram trabalhar nas fazendas locais. Então as origens dos pescadores de lá envolvem povos indígenas e africanos”, afirma o ecologista.
Lima acrescenta que o MPF está recorrendo para tentar derrubar o que considera uma “decisão judicial racista” que não acatou esse reconhecimento dos pescadores. Para tratar sobre essa questão, o ecologista destacou que já foi solicitada pelo defensor Eduardo Chow uma reunião com o presidente do Inea, Felipe Campelo.
Garantir segurança alimentar é urgente
A última questão mais emergencial, tratada como desdobramento da vistoria, diz respeito à necessidade de garantir a segurança alimentar das comunidades pesqueiras visitadas em Duque de Caxias. “Foram muito impressionantes os relatos de fome e de insegurança alimentar dos pescadores. O manguezal não tem mais caranguejo, os rios não têm mais peixes e eles contaram como têm vivido de catar garrafas PET e outros recicláveis. Em Saracuruna foi impressionante. Não tem sequer água potável. Poços estão contaminados”, afirma Sérgio Ricardo.
Para o ambientalista, uma coisa é o processo de recuperação ambiental macro da Baía de Guanabara, tantas vezes postergado, ao longo das últimas décadas. “Mas defendemos ações emergenciais. Nós não podemos esperar a despoluição da Baía de Guanabara para garantir o direito à alimentação e ao trabalho dos pescadores de Duque de Caxias. Eles precisam ser compensados desde agora”, alerta Lima.
Além de mencionar que medidas compensatórias podem incluir a construção de tanques para a produção de pescado, o ambientalista também ressalta a possibilidade de pescadores serem inseridos “em projetos financiados pelo Fecam [Fundo Estadual de Conservação Ambiental e Desenvolvimento Urbano], fundo público gerido pelo Inea e pela Secretaria Estadual do Ambiente, ou por recursos de empresas poluidoras da região para trabalhar em ações de limpeza dos manguezais”. “Eles ainda podem ser contratados para projetos de monitoramento ambiental. Essa é a cobrança que estamos fazendo para que essas iniciativas sejam adotadas”, conclui.
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