Sem planejamento, Brasil segue no escuro sobre futuro energético
Ausência de plano de descarbonização e de avaliação ambiental estratégica deixam Brasil à deriva sobre cumprimento das metas de redução de emissões
O Brasil se comprometeu em 2015, na esteira do Acordo de Paris, em reduzir suas emissões totais dos chamados gases do efeito estufa, responsáveis globalmente pela crise climática que já assola o nosso país com mudanças radicais nos regimes hídricos e frequentes eventos climáticos extremos. Com o compromisso de reduzir 48% das emissões brasileiras em 2025 e 53% em 2030, tendo 2005 como ano base. Em 2050, espera-se atingir a neutralidade, o que não significa zero emissões, mas compensação de um setor pelo outro ou por plantio de áreas verdes, por exemplo.
No entanto, as metas chamadas NDC (Nationally Determined Contributions) ainda não foram setorizadas, ou seja, a redução pode vir de qualquer setor emissor, como desmatamento, uso do solo ou energia. De acordo com a secretária de Mudança do Clima do Ministério do Meio Ambiente (MMA), Ana Toni, estabelecer as metas por setor é um plano do atual governo brasileiro, que já tem equipes analisando cenários em oito quesitos.
“O caso da energia no Brasil pode vir a aumentar [as emissões], a gente não sabe, porque 53% [Percentual de redução de emissões que precisamos alcançar] até 2030 é no geral, da economia como um todo. Então alguns setores talvez vão ter que aumentar, enquanto que outros terão que diminuir. Todos vão ter que contribuir, não resta dúvida, então depende muito de quais serão os cenários que o Brasil venha a escolher das metas dos diversos setores e aí a gente olhar o todo, então a gente realmente não tem dados até agora”, diz a especialista, em entrevista a ((o))eco.
Segundo Tori, o setor elétrico é muito importante “não só pelo quanto ele emite, mas por alavancar a descarbonização de outros setores”.
A professora Joana Portugal Pereira, do Programa de Planejamento Energético (PPE) do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE/UFRJ), uma das autoras do relatório Emissions Gap Report, elaborado anualmente pelo programa de meio ambiente das Nações Unidas, é dura na avaliação da ambição do país em relação às suas emissões.”O Brasil não está nada bem posicionado [em relação às suas metas] como, na verdade, nenhum país está. Todos os anos eu participo de uma publicação do Pnuma [Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente] e eu faço exatamente essa avaliação de ver que países estão entregando metas climáticas adequadas ao Acordo de Paris e nenhum está”.
O Brasil é o sexto maior emissor de gases de efeito estufa do mundo, atrás apenas da China, EUA, Índia, Rússia e Indonésia.
O futuro pode ser renovável
Em cenários de médio e longo prazo (2030 e 2050, respectivamente), não existem certezas sobre os caminhos que seguiremos. Saber exatamente quanta energia vamos precisar daqui a alguns anos e de onde ela virá é um desafio tão grande quanto prever a inflação ou a taxa de juros de um país. Depende do quanto a economia vai crescer e de onde vamos investir dinheiro e esforços. Ainda assim, é quase certo que as renováveis devem ocupar uma importante liderança, especialmente eólicas, solares e biocombustíveis, os quais reduzem as emissões dos combustíveis fósseis como, por exemplo, o diesel veicular.
O novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), anunciado em agosto de 2023, mostra essa tendência. De um total de 75,7 bilhões de reais em investimentos na transição energética, 29% deve ser destinado a 120 usinas eólicas espalhadas pelos estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Bahia. Outros 41,5 bilhões são estimados para custear 196 usinas fotovoltaicas a serem dispostas nos mesmos estados, além de Minas Gerais e Goiás.
A expansão da rede de usinas hidrelétricas não é prioridade no PAC, que prevê investimentos em apenas uma grande usina e em 20 pequenas centrais hidrelétricas, menos de 2% do orçamento previsto. No mapa, o grande celeiro da geração pelas águas está no sul e no sudeste, o que praticamente descarta o potencial inventariado pela Empresa Brasileira de Energia (EPE) na região amazônica. O Plano Nacional de Energia (PNE) 2050 mostra que há um potencial de 68 GW em novas hidrelétricas, incluindo as UHEs e os projetos hidrelétricos menores de 30 MW com estudos de inventário concluídos e aprovados pela Aneel. No entanto, 77% do potencial hidrelétrico inventariado apresenta algum tipo de sobreposição a áreas legalmente protegidas do território nacional, como terras indígenas e quilombolas ou unidades de conservação.
O Operador Nacional do Sistema (ONS) também faz projeções futuras, mas neste caso apenas de curto prazo, até 2027. O ONS sugere que as hidrelétricas perderão, de fato, espaço – mesma projeção da EPE para longo prazo – enquanto eólicas e fotovoltaicas devem crescer cerca de 15% e 61%, respectivamente. Neste mesmo cenário, as termelétricas também aumentariam sua participação, de 8,1% para 9,5% nos próximos quatro anos. Já no horizonte decenal, a EPE estima também uma redução na participação das hidrelétricas e um aumento ainda maior nas térmicas não renováveis: elas podem vir a representar mais de 12% do sistema elétrico brasileiro em 2031. Entretanto, os cenários podem mudar conforme mudam as políticas de governo, a depender das decisões tomadas no caso das “térmicas jabuti”, impostas pela Lei nº 14.182/2021, de privatização da Eletrobrás, e ainda em fase embrionária de implementação.
“Haverá leilões para novas usinas termelétricas a gás, nas regiões definidas na lei de privatização da Eletrobras, e está na lei que estas usinas vão operar o tempo todo”, explica o diretor-executivo do IEMA, André Luis Ferreira, em referência ao argumento frequente de que tais fontes servem para suprir a intermitência das renováveis. “Se isso se verificar, o risco de esta tendência [de aumento dos fósseis na matriz] se concretizar é grande. A questão é se as térmicas jabutis serão mantidas”, diz.
Ele comenta que esta tendência está bastante associada ao lobby da indústria do gás, que viu no setor elétrico uma boa fonte de receita rápida, segura e contínua para seguir investindo em infraestrutura, que é deficitária no Brasil. “Houve uma interferência enorme da indústria do gás natural no setor elétrico e essa é uma posição de governos, não só o último, mas o penúltimo, enfim, é uma pressão que se instalou dentro dos governos há muito tempo”, explica.
Ferreira acrescenta que a tendência da política do atual governo é investir no gás natural para a indústria petroquímica e de fertilizantes, com o programa Gás para Empregar, mas que nada está suficientemente nítido até o momento. “A primeira impressão é que esse programa dá muita importância para o uso industrial do gás natural. É preciso entender essa equação. Para nós, do IEMA, aumentar o uso de gás natural no setor elétrico é um retrocesso”.
Em 2050, a EPE estima um cenário de expansão da demanda e o crescimento expressivo das fontes eólica e solar: o potencial instalado de geração dos ventos, que inclui as eólicas offshore, pode ser maior que 200 GW, um aumento de mais de seis vezes sobre a capacidade que temos atualmente, e que pode até mesmo suplantar a produção hidrelétrica. Já o potencial da energia solar pode superar os 100 GW de capacidade instalada, um incremento de 10 vezes em relação aos valores atuais. As energias fósseis e nucleares variam em cenários de aumento, no caso de as emissões não serem levadas em consideração, até redução (de 46 GW para 30 GW) no caso da restrição das emissões para mitigação das mudanças climáticas ser implementada.
Na transição energética anunciada pelo governo e por empresas, ganha destaque ainda o hidrogênio verde, que já conta com o recém-lançado Plano de Trabalho Trienal 2023-2025, o qual prevê uma participação desta fonte como “uma das soluções tecnológicas consideradas nos cenários de neutralidade de carbono até 2050 propostos para o Brasil”. O hidrogênio é produzido a partir da eletrólise da água e hoje o processo é alimentado fundamentalmente por combustíveis fósseis. O uso da energia de baixa emissão, especialmente a eólica offshore, é considerada um caminho para alimentar a necessidade de indústrias como a do aço e de fertilizantes.
Segundo o plano de trabalho do governo, o Brasil tem capacidade de produzir 1,8 gigatonelada de hidrogênio verde por ano, e há 30 bilhões de dólares anunciados em projetos futuros (a maioria dessa produção deve depender das eólicas offshore, que ainda aguardam regulamentação). Outras oportunidades exploradas pelo governo brasileiro são os programas de captura e conversão de dióxido de carbono, parte do Projeto de Lei do Combustível do Futuro, e o mercado de carbono, atualmente em regulamentação pelos poderes executivo e legislativo.
Nenhuma energia é limpa
Especialistas são unânimes em dizer que nenhuma fonte de energia é totalmente limpa, considerados seus impactos para além das emissões. O analista de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), Felipe Barcellos e Silva, lembra que muitas vezes existe uma imagem construída em torno das renováveis que não se verifica na prática. Tanto pessoas como a natureza podem sair perdendo, como é o caso de eólicas onshore na qual as comunidades até concordam com a instalação, mas depois passam a sofrer com ruídos muito acima do permitido pelas autoridades de saúde, ou das offshore, que podem trazer impactos ainda não totalmente mapeados para os ecossistemas marinhos.
“A gente vê propagandas, sempre que é uma coisa verde, renovável, tem uma turbina eólica. Então [é preciso] tirar um pouco dessa imagem, porque qualquer energia vai ter o seu impacto, não existe uma energia completamente limpa. Por mais que não emita gases do efeito estufa diretamente, há outros impactos que têm que ser com certeza pensados e evitados”, afirma.
A professora e pesquisadora Joana Portugal Pereira compartilha a mesma opinião e lembra ainda que a extração de metais, como lítio e cobalto, pode causar grandes danos socioambientais. “As fontes solares e eólicas acabam por ter uma emissão direta praticamente nula, mas nós não podemos negligenciar a pegada material, consumo de energia inerente a todo o ciclo de vida de produção dessa infraestrutura e também o descarte dessas mesmas tecnologias, se pensarmos em sistemas de armazenamento com base em bateria”, destaca.
Logicamente que os setores sabem desses impactos e afirmam trabalhar para mitigá-los. Segundo a ABEEólica, a evolução tecnológica e o investimento em pesquisa e desenvolvimento garante que os parques eólicos tenham cada vez menos impactos: as torres ficaram maiores (tinham entre 40 e 80 metros em 2011, agora chegam a 145 metros), são mais silenciosas e geram mais energia por aerogerador.
“Temos hoje no mercado algumas pás com sensores para diminuir a velocidade ao detectar a presença de aves, por exemplo. Já o impacto sonoro é uma preocupação constante dos produtores. É investido bastante em tecnologia e as turbinas novas já fazem menos barulho que as antigas. Outra medida é aumentar a distância dos parques das casas dos moradores do entorno, ao longo dos anos, com estudos e experiência, inclusive internacional, essa distância aumentou”, explica Elbia Gannoum, presidente da ABEEólica, instituição que tem, segundo ela, grupo de trabalho desenvolvendo um guia de boas práticas que vai fazer recomendações com foco em impacto ambiental e social, além de práticas ESG [governança ambiental, social e corporativa]. “Tudo isso para mitigar impactos e unificar a atuação da indústria eólica como um todo”, diz.
No balanço entre riscos e ganhos, Pereira salienta que a emergência climática é tão urgente que não deixa espaço para a busca de outras alternativas de longo prazo. “Nós temos que escolher todas elas numa escala de capacidade instalada e ampliar sem precedentes na história. Então é uma estratégia muitíssimo adequada [investir em diversas fontes renováveis] e que deixa o Brasil, claro, menos vulnerável ao mercado de petróleo”.
Planejar para mitigar
Uma forma de minimizar este impacto seria a melhoria no sistema de planejamento e licenciamento. Hoje, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) trabalha com o licenciamento caso a caso, com base em estudos de impacto ambiental. Em que pese este ser um órgão sério, “que compra muitas brigas”, como salienta Ana Toni, este é um sistema em si limitado.
O analista do IEMA, Felipe Barcellos e Silva, explica que uma avaliação ambiental estratégica, um mapeamento do Brasil em seus biomas e áreas ecológicas sensíveis, poderia garantir que os projetos — não apenas de usinas em si, mas linhas de transmissão, estradas, entre outras infraestruturas que podem ter impactos consideráveis nos biomas, na biodiversidade e nas comunidades por onde passam — fossem analisados de forma interconectada, com maior segurança ambiental e menores chances de lobbies implementarem obras em áreas que seriam previamente protegidas.
“O Brasil precisa ter de maneira institucional um órgão que faça esse planejamento. O que se vê hoje é mais uma preocupação por licenciamento ambiental, de gigantesca importância, mas acaba que ele é uma coisa mais específica da obra em si. Minimizar o impacto ou determinar alguma compensação, por exemplo. Então, [a avaliação ambiental estratégica] seria uma etapa antes do licenciamento ambiental”, explica.
Ou seja, para seguir no rumo da descarbonização, é preciso também estar atento aos impactos que cada empreendimento pode trazer e que, se não avaliados, podem derrubar todos os ganhos. “Uma ferrovia, por exemplo, pode ser uma maneira de reduzir os gases de efeito de estufa, uma vez que emite menos do que a carga transportada por caminhões. Mas, se eu for construir essa ferrovia passando por uma floresta, sendo um vetor de desmatamento, esse benefício de redução de emissões pode ser jogado fora, porque você desmata ou promove o conflito pela terra”, exemplifica, em referência à Ferrogrão, ferrovia que pretende ligar o Pará ao Mato Grosso e que passa por áreas protegidas.
Ana Toni garante que qualquer projeto cotado hoje pelo governo passará por estudos científicos sérios antes de ser aprovado, inclusive os mais polêmicos por apresentarem potenciais riscos, como a exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas. “Estudos do todo são fundamentais para planejamento, licenciamento e exploração. Então, acho que seria muito bem-vindo, não só para o Ibama, mas para todos os órgãos poderem se organizar”, disse, ao ser questionada sobre a viabilidade da avaliação ambiental estratégica. Ela acrescenta que o Ibama é regido por leis, então o diálogo com o legislativo é fundamental para embasar as melhores decisões.
Os planos de descarbonização e o bode da sala
O governo afirma que os planos do PAC, como o investimento considerável de 6,7 bilhões de reais em três novas usinas movidas a gás, além de duas usinas termelétricas renováveis ao custo de 2,1 bilhões de reais, não estão definidos. São apenas projeções, que poderão ser revistas caso se perceba que vão contra um plano de descarbonização ainda não elaborado.
“Infelizmente a gente ainda não tem os planos de descarbonização, precisamos tê-los. Até para saber se essas termelétricas estão ou não compatíveis com os planos de descarbonização do Brasil, a gente precisaria ter os planos”, admite a secretária Ana Toni. “Tenho certeza que se os planos de descarbonização forem aprovados pelo governo, aí eu acho que o governo vai ter que sentar e olhar que tipo de investimento é necessário para os planos e se tem outros investimentos que estão incompatíveis com esses planos”.
O analista do IEMA afirma que são preocupantes os investimentos em uma fonte fóssil em detrimento de eólicas, solares e termelétricas a biomassa, que estão em crescimento e se consolidando como viáveis e seguras. “Investir em novas termelétricas que vão demorar mais 30 a 40 anos para serem aposentadas pode ser um erro estratégico”, afirma.
A professora Joana Portugal Pereira concorda com a avaliação e afirma que estes investimentos, se consolidados, são incongruentes com as metas assumidas pelo governo. “A conta não fecha. Nós não podemos pensar em metas em 2050, porque os nossos governantes já vão estar aposentados e não vão estar aqui para ser responsabilizados”, diz. Ela destaca que a mudança precisa estar pautada na legislação, pois somente assim passam a ser plausíveis no longo prazo. “Se nós hoje estamos investindo em tecnologias muito energo-intensivas e hipercarbônicas, como termelétricas a gás, nós vamos ter esses investimentos nos próximos 40 anos e estamos, de fato, travando e limitando escolhas futuras. Porque, uma vez que o investimento esteja já implementado, muito dificilmente ele sairá do ar”.
A própria EPE aponta que a transição energética brasileira deve contar parcialmente com o gás natural. “Internacionalmente é percebido que o gás natural, reforçado e progressivamente substituído pelo biogás/biometano, terá o papel de integrar os paradigmas tecnológicos dos combustíveis fósseis e das renováveis ao viabilizar uma maior introdução de fontes renováveis não despacháveis no setor elétrico”, dizem os relatórios. E o Ministério de Minas e Energias (MME) alega que “o futuro da transição energética é com hidrocarbonetos”.
Com investimentos na ordem de 94,6 bi de investimentos na indústria do gás, o pico da exploração de gás natural está previsto pelo MME para 2029: 3,2 milhões de m3/dia (total de 9.171 milhões m3/dia em 2030, incluindo produção e consumo, contra 95 milhões m3/dia em 2023).
A Agência Nacional do Petróleo (ANP) informou, em nota, que “a agência vem avançando na construção de um mercado de gás natural mais aberto e competitivo, que venha a resultar no crescimento desse mercado.” Afirma, ainda, que os programas vêm se concentrando em “incentivar ganhos de eficiência que resultem em um gás natural mais competitivo para seus usuários, privilegiando, assim, um combustível tido como ‘de transição’, uma vez que apoia a gradual descarbonização do setor energético através da substituição de outros combustíveis mais poluentes, como o carvão e o óleo combustível.”
“O ponto que mais contradiz a descarbonização da matriz energética é o aumento da produção de óleo e gás, mesmo que seja para exportação”, diz o gerente de projetos do IEMA, Ricardo Baitelo. De fato, a produção nacional de petróleo pode atingir mais de seis milhões de barris em 2050. O pico da exploração de petróleo está previsto pelo MME também para 2029: 5,4 milhões de barris/dia. Em 2032, a produção ainda deve ser maior (4,9 milhões de barris/dia) que em 2023 (3,3 milhões de barris/dia).
“A gente tem que lidar com o tema de óleo e gás, até a sua contabilidade em termos de onde você conta as emissões [no país produtor ou onde o óleo é de fato queimado] tem que ser pensada, se a gente vai ter um imposto para óleo e gás no consumo ou na produção”, diz Ana Tori. “Essa é uma das controvérsias que eu acho que nas COPs, através do Acordo de Paris, digamos, é o bode na sala. Isso vai ter que ser pensado globalmente, exatamente como você conta as emissões. E eu tenho certeza absoluta que nós aqui no governo brasileiro vamos fazer parte dessa discussão, vamos olhar para o que o mundo precisa fazer, trazer esse tema para o debate que é fundamental”, afirma.
Energia nuclear: riscos e custos não compensam
Especialistas ouvidos por essa reportagem concordam que investir, agora, em energia nuclear, é como chegar atrasado em uma corrida que já terminou. Muitos países, como a Alemanha, França e Estados Unidos, já desistiram de seus projetos pelos riscos de acidentes com impactos duradouros e altos custos, Na contramão, o Brasil ainda pensa em investir 1,9 bilhões de reais para concluir o sistema de Angra, usinas que foram iniciadas em outro momento histórico.
“A questão nuclear, do meu ponto de vista, é um verdadeiro disparate no Brasil. Nós temos o elefante branco de Angra”, descreve Joana Portugal Pereira. Esta energia, ela diz, ainda é muito cara e, ao contrário de outras fontes, não segue uma curva de aprendizado que a torna mais competitiva ao longo do tempo.
Além disso, a inércia dos reatores torna esta fonte pouco maleável a mudanças nas necessidades energéticas do país. Joana compara as nucleares a grandes caminhões tentando frear diante de um sinal vermelho, enquanto eólicas e solares seriam pequenas motocicletas, muito mais fáceis de adaptar. “Ou seja, se nós tivermos e aumentarmos a nossa capacidade instalada na rede de reatores nucleares, nós estamos diretamente travando e freando a penetração de renováveis, porque nós vamos ter sempre uma linha de base muito elevada de nuclear e nós vamos ter uma inflexibilidade da rede se ajustar quando está batendo sol ou quando está ventando muito”.
O analista do IEMA segue a mesma linha de pensamento: “A energia nuclear é uma energia que o Brasil não precisa. Ela foi proposta quando o mundo estava usando mais essa energia e a matriz elétrica brasileira tinha menos fontes. Agora tem a eólica, tem a solar, tem mais biomassa, então já não faz nenhum sentido mais a nuclear, pela própria segurança, por ser uma energia muito mais cara e porque a gente já conseguiu diversificar a nossa matriz com outras coisas”.
Transição também passa por redução
A transição energética também precisa levar em consideração o fator consumo. Afinal, a produção deve acompanhar a demanda, que deve crescer nos próximos anos acompanhando o ritmo da economia. A previsão feita em 2022 pela EPE mostra que o consumo geral, que inclui indústrias, comércios, residências e outros, deve crescer a taxa média de 3,4% ao ano, chegando a até 774 TWh em 2032, comparado com 500 em 2021. Parte desta demanda é compensada pelo ganho em eficiência, que reduz em até 5% a previsão de consumo elétrico potencial em 2032.
O maior aumento deve vir do setor de comércio e serviços, chegando a 68% a mais em 2032. As residências, cujo aumento populacional é estimado em 13 milhões de pessoas, comparado a 2021, responderá por um ganho médio de até 52%. Em números absolutos, a indústria é o setor que abocanha o maior pedaço do fornecimento. Os chamados grandes consumidores — cimento, papel e celulose, química e metalurgia — respondem por um terço do consumo do setor. No total, contudo, a cadeia produtiva deve aumentar seu consumo energético em até 45%, no cenário de maior incremento, ou seja, menor que o residencial e o comércio.
Parte deste consumo não vem da rede integrada, mas da autogeração. Segundo a EPE, cerca de 11% do consumo, especialmente dos segmentos industriais de celulose e siderurgia, além de ramos do setor energético, como exploração e produção de óleo e gás e o setor sucroalcooleiro, vem da autoprodução, que deve aumentar até 9 TWh. Até 2050, o consumo potencial de energia elétrica do país pode atingir até três vezes o patamar do ano base (2015).
“Sem gerenciamento do lado da demanda nós não vamos conseguir transitar para uma economia de baixo carbono. Nós temos que repensar a forma como nós consumimos energia e o momento em que nós consumimos essa energia,” explica a pesquisadora Joana Portugal Pereira. “Por um lado, nós temos grande parte da população sofrendo carência e pobreza energética. Por outro, nós temos níveis de aquecimento global em que vamos ter cada vez maior demanda de refrigeramento. Então, nós temos que criar tecnologias e estratégias para, por um lado, descarbonizar a matriz de geração da energia elétrica e, por outro, investir muito na eficiência energética e também na mudança comportamental. Eu diria que são esses três grandes pilares no setor de energia”.
Essa reportagem faz parte do especial Transição Energética, realizado com apoio da Climate Tracker Latin América.
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