Em meio a uma das mais intensas ondas de calor já registradas no Rio e em grande parte do Brasil, algumas das principais referências nacionais em estudos sobre as mudanças climáticas e suas interfaces com inúmeras áreas do conhecimento trouxeram alertas importantes em debate realizado na sede da Academia Brasileira de Ciências (ABC), na última quinta-feira (dia 16). A tônica das discussões envolveu os impactos do El Niño, fenômeno natural de aquecimento anormal das águas do Oceano Pacífico Equatorial, que a cada temporada tem provocado a intensificação de secas e enchentes, entre outros eventos, com fortes consequências ambientais e socioeconômicas globais.
A diferença, segundo os cientistas reunidos, é que esse processo para o biênio 2023-2024 está sendo potencializado pela crise climática, o que tende a causar mais efeitos negativos no clima global nessa temporada. Na mesa redonda “Crise climática e desastres como consequência do El Niño 2023-2024, impactos observados e esperados no Brasil”, foi enfatizado que o cenário vem após três anos consecutivos de La Niña que, ao contrário do El Niño, esfria as águas do Pacífico Equatorial para além das médias históricas, causando estragos mundo afora também.
Não por acaso, já são atribuídas a essa conjunção de fatores, as ondas de calor cada vez mais preocupantes, como as enfrentadas nos últimos meses em grande parte do Brasil e a seca que baixou níveis históricos de rios da Amazônia, como o rio Negro, no Amazonas. Em meados do ano, o estado já havia decretado situação de emergência ambiental por causa de incêndios e desmatamento nas suas regiões sul e metropolitana de Manaus. Da mesma forma, são interpretadas as cheias altamente destrutivas com grande quantidade de mortes registradas em estados da região sul, como o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, nos últimos meses.
Como o El Niño impacta a segurança energética, hídrica e alimentar, seus efeitos no Produto Interno Bruto (PIB) per capita global são elevados, como destacou a professora Regina Rodrigues, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Como exemplos, ela mencionou resultados de estudo internacional recentemente publicado, envolvendo alguns períodos históricos severos desse fenômeno, como as perdas entre os anos de 1982 e 1983 que chegaram a 4,1 trilhões de dólares. Esse montante se elevou para 5,7 trilhões de dólares, entre 1997 e 1998. Para o período 2023-2024, embora exista uma incógnita, ela destaca que em geral levam cinco anos para a recuperação do PIB depois de um evento, sendo o Brasil um dos países mais fortemente afetados por esse contexto.
Na biodiversidade marinha, os impactos contabilizados devido às ondas de calor nos oceanos também são altos. Os custos econômicos diretos superam 800 milhões de dólares anuais e as perdas indiretas em serviços ecossistêmicos ou ambientais podem atingir 3,1 bilhões por vários anos. A pesquisadora ainda mencionou como questão preocupante, a tendência de impacto de longo prazo no ciclo hidrológico, como a redução de 20% na disponibilidade de água no Hemisfério Sul, segundo outro estudo recente, devido aos períodos de El Niño.
O climatologista Jose Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), enfatizou na sua apresentação que uma grande preocupação com a intensificação dos períodos de El Niño se refere à situação das comunidades mais vulneráveis. “O Brasil está entre os dez países com maior área afetada por deslizamento de terra, com mais de 300 mil pessoas afetadas e 5 mil fatalidades nas últimas duas décadas”, afirma.
Segundo ilustrado por estatísticas destacadas pelo pesquisador, o país tem aproximadamente 3 mil quilômetros quadrados de áreas suscetíveis a desastres climáticos, com 825 municípios em situação de vulnerabilidade crítica. Embora já tenham sido contabilizados prejuízos econômicos da ordem de 67 bilhões de dólares, entre 2013 e 2022, mais de 4 mil cidades brasileiras ainda não têm sistema de alerta de desastres.
Outro dado preocupante, segundo o climatologista, com base em levantamento do Projeto MapBiomas, envolve o avanço da urbanização em áreas de risco. Nesse perfil se inseriram em 2022, por exemplo, 3% da área urbanizada do Brasil, patamar que no caso específico das favelas chegava a 18%. “Imaginem chuvas intensas provocadas pelo El Niño. O impacto será gigantesco nessas áreas”, alerta o pesquisador.
Marengo reitera que, mesmo diante de algum grau de incerteza, inclusive no âmbito de debates do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), um futuro mais quente pode levar tanto a uma maior ocorrência como à configuração de El Niño cada vez mais forte por temporada. Tal cenário pode potencializar a tríade seca, incêndios florestais e enchentes como consequência, cenário que já vem sendo observado este ano no Brasil. “Seca e desastres causados por chuvas estão se tornando mais frequentes e extremos no mundo, principalmente, em países mais vulneráveis”, analisa.
O cenário de crise climática é real, apontam cientistas
As tendências são mais preocupantes considerando que não tem havido perspectiva de reversão no cenário de emergência climática. Uma ilustração nesse sentido envolveu a divulgação recente do recorde de concentração de emissões de gases de efeito estufa (GEE), com o dióxido de carbono (CO2) 50% acima da era pré-industrial, atingindo pela primeira vez em 2022, a marca de 418 partes por milhão.
A Organização Meteorológica Mundial também apontou, em recente relatório, que, pelo menos, até abril de 2024, devem ser sentidos impactos negativos no El Niño no clima global. Tudo isso após um 2023 que poderá ser considerado o ano mais quente em 125 mil anos, de acordo com o Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus, vinculado à União Europeia.
Para a professora Suzana Montenegro, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), “o que estamos vivenciando com a crise climática, com El Niño e La Niña, é uma realidade”. Diante desse cenário e suas consequências, a pesquisadora enfatiza como grandes desafios, a necessidade de medidas de adaptação, além da necessidade de cooperação científica e intersetorial.
Defende, ainda, a Rede de Monitoramento, além da definição de protocolos com órgãos atuantes em períodos chuvosos e de estiagem, ações estruturais para a retirada de população das áreas de risco e para garantir o funcionamento adequado da drenagem urbana em caso de chuvas intensas.
Como exemplo de iniciativa que pode fazer a diferença no enfrentamento da crise climática no Brasil, ela destacou a construção do Plano Nacional de Segurança Hídrica (PNSH) e apontou também a importância do papel da sociedade brasileira em soluções envolvendo água, energia e produção de alimentos.
Em função dos impactos potencializados pelas consequências de eventos extremos, como a recorrência de seca e enchentes, a professora também destacou a importância das Salas de Situação da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) para monitoramento das condições hidrológicas em diferentes regiões brasileiras, sendo fundamentais em contextos de crises, devendo ser cada vez mais fortalecidas, segundo a especialista.
Ao apontar que este ano marca a entrada “em território desconhecido”, com base em estudo internacional, a pesquisadora Chou Sin Chan, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), destacou em gráficos que a temperatura da superfície global de 2023 “se descolou totalmente de anos anteriores”. Vinculado cada vez mais a esse cenário, ela ressalta também que, “embora nenhum El Niño seja igual a outro, esse fenômeno tem se alterado” ao longo das últimas décadas, com projeções de mais variabilidade até o final do século, o que deverá aumentar a quantidade de eventos extremos, além da intensidade de seus efeitos.
Segundo a pesquisadora, os padrões para a América do Sul, com redução de chuvas, principalmente para a região Norte e mais recentemente para a região Sudeste, precisam ser mais profundamente estudados e adianta que no INPE novas investigações para previsões sobre o tema estão em curso.
Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP) destaca que temos registrado inúmeros recordes globais de temperatura, com efeitos evidentes na redução do manto de gelo do planeta, no aumento de incêndios florestais como os ocorridos este ano no Canadá, na elevação do nível do mar e na acidez dos oceanos, entre outros “Todos nós concordamos com a frase preocupante do secretário-geral da ONU [António Guterres] que não chama mais [o atual cenário] de global warming [aquecimento global], chama global boiling [ebulição global]”, afirma ao destacar a manchete do jornal britânico The Guardian, de 27 de julho de 2023, ao repercutir a fala de Guterres, diante do recorde de calor mundial naquele mês.
Ao apresentar uma das razões para o aumento do calor global, Nobre faz uma conexão com o aumento da temperatura dos oceanos, um dos efeitos do El Niño. “Nos oceanos, quando a temperatura passa de 26,5 ou 27 graus aumenta exponencialmente a evaporação da água”. E acrescenta que o efeito estufa é 60% formado por vapor d´água.
O cientista destaca, dentre outras preocupações, os riscos de aumento da temperatura associados à saúde da população idosa, sobretudo, de mulheres. Esse fenômeno foi percebido nos registros de mais de 61 mil mortes devido à onda de calor que assolou a Europa em 2022, nos quais se constatou que a maioria dos óbitos envolveu a população idosa feminina. E enfatiza que pelos dados do último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres já representam a maior parte da população brasileira. Além disso, vem se acentuando a quantidade de idosos no país, contingente mais suscetível ao aumento brusco de temperaturas. “Com essas ondas de calor que temos tido no Brasil precisamos de estudos sobre como a saúde da população tem sido afetada”, defende.
Na continuidade das discussões sobre as principais preocupações com a questão climática, Nobre afirma que a Amazônia está muito próxima do ponto de não retorno devido ao desmatamento e à combinação de cenários de aquecimento global, envolvendo não somente a elevação de temperaturas, mas também fatores como o derretimento dos mantos de gelo da Groenlândia que induz mais períodos de seca na região. Esse ponto sendo ultrapassado, forçado pela degradação da floresta, pode levar a perdas de mais de 250 bilhões de toneladas de carbono, em vez de se manter a sua principal característica de atuar como sumidouro de carbono.
“A combinação de seca e incêndios florestais pode aumentar a mortandade de árvores em 300%”, alerta Nobre. E explica que embora esteja havendo uma queda significativa do desmatamento da Amazônia, nos últimos meses, não tem havido a redução de incêndios, que no caso do bioma, são mais de 90% causados pela ação humana.
Apesar de seus inúmeros dilemas ambientais e socioeconômicos, segundo Carlos Nobre, o Brasil retomou o protagonismo na luta pelo equilíbrio climático, mencionando como exemplo simbólico o papel do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) que vai lançar na COP-28, em Dubai, um grande projeto denominado de Arco da Restauração Florestal da Amazônia. O país também pretende implementar a sua NDC (com metas nacionais revistas) até 2030.
Para o cientista, o país pode tornar-se ainda mais ambicioso e, para que isso seja possível, deverá “acelerar políticas e práticas de adaptação e aumento da resiliência em todos os setores, além de manter o apoio à geração de conhecimento científico”.
Combater o negacionismo climático é crucial
Os cientistas concordam que o negacionismo climático representa um fenômeno que coloca em risco os esforços globais pela estabilização do clima, tema que já foi debatido, a partir de um relatório publicado, na esteira da COP-27, realizada no ano passado no Egito, não sendo diferente no caso do Brasil, como aponta um dos trabalhos de referência sobre o assunto, lançado este ano.
Na opinião do pesquisador Carlos Nobre, para o enfrentamento desse dilema, “é preciso derrotar o populismo globalmente”. Isso porque a ascensão de políticos negacionistas, mundo afora, representa um risco não somente em relação à emergência climática, mas para outras temáticas científicas que estão sendo impactadas pela disseminação de campanhas de desinformação, incluindo as de saúde pública. Um exemplo dessa realidade ocorreu durante a pandemia da Covid-19, com tentativas de gerar descrédito sobre a importância das vacinas.
“Não tem um político populista de direita e até de esquerda que não seja negacionista das mudanças climáticas. Eu tô rezando para o Trump não ser reeleito no ano que vem nos Estados Unidos. Se ele for reeleito, ele tira os Estados Unidos do Acordo de Paris”, afirma Nobre.
No Brasil, Jose Marengo considera que até tem havido uma redução de negacionistas climáticos, embora afirme reconhecer que “eles fazem muito barulho” e também ainda estão inseridos em setores fortes como o agronegócio. Para ilustrar, menciona que uma vez ouviu um político brasileiro declarar, em um programa de rádio de grande audiência, que a mudança climática não existe e que essa narrativa representava uma tentativa de acabar com o agronegócio. “Foi a maior estupidez que já ouvi na minha vida”, afirma.
“Negacionistas são artistas, são como palhaços de circo, fazem show. Mas nós não fazemos show. Nós fazemos ciência”, acrescenta Marengo. Para o climatologista, tanto as evidências científicas como a realidade atual tornam cada vez mais concretos os cenários de emergência climática. “Eu não debato mais com negacionistas porque considero uma perda de tempo. Prefiro fazer ciência”, relata.
Marengo sugere que as pessoas devem estar alertas na hora de optar por seus representantes políticos, devendo buscar saber quais são as suas propostas para a agenda ambiental. Afirma também perceber que falta um trabalho de base educacional e de comunicação para ampliar o entendimento da população sobre os fenômenos associados às mudanças climáticas. No caso da realidade dos desastres, envolvendo populações em áreas de risco, ele considera que essa situação da falta de compreensão do problema está muito bem configurada.
A professora Regina Rodrigues concorda que a lacuna de educação representa um problema sério no Brasil. Ela informa que algumas universidades no exterior já estão incluindo a questão climática no currículo, decisão que considera fundamental para ser estendida à academia mundialmente, assim como aos níveis de educação básica.
Em contrapartida, a pesquisadora menciona que existe uma discussão ética que precisa ser ampliada, entre outras razões, para combater a desinformação sobre essa agenda. Para todas essas questões, ela opina que é preciso agir localmente e menciona como exemplo prático a Frente Parlamentar que foi criada em Florianópolis em atenção à crise climática e seus desdobramentos na cidade catarinense.
Para a professora Suzana Montenegro, um dos desafios sobre o tema se refere à popularização da ciência. “A gente precisa se comunicar melhor com a sociedade e com os próprios políticos para apresentar a resposta que a ciência pode dar a partir da tradução da informação científica”, opina.
A pesquisadora Chou Sin Chan concorda que comunicação e educação são cruciais nesse caso. “Tem gente que diz que o aumento de 1 grau de temperatura é muito pouco”, comenta. Ao mesmo tempo afirma que meio grau a mais provocado pelo El Niño é capaz de causar grandes estragos globais. Ela defende que é preciso ampliar o entendimento da sociedade de que transformações bruscas, em curso, estão modificando padrões da natureza que se consolidaram em escalas de milhares de anos.
Nesse sentido, Marengo reitera que o papel do jornalismo é fundamental para levar compreensão da agenda climática à sociedade. Ele acrescenta que o Cemaden já promoveu treinamentos para profissionais de comunicação, sendo necessário, segundo opina, ações de capacitação contínua dada à dinâmica envolvendo a complexidade dessa temática.
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