Numa das salas de madeira prensada montadas especialmente para abrigar a Conferência do Clima de Paris, um britânico alto e magro faz uma das falas mais acachapantes do evento. Seu nome é Kevin Anderson, e ele não é político, nem diplomata. É professor da Universidade de Manchester, e não está ali para achar linguagem de consenso, mas para dar a real.
Lendo num PowerPoint o texto do mandato que originou novo acordo do clima, Anderson primeiro afirma que o objetivo comum é “manter o aumento da temperatura global abaixo dos 2ºC, e agir para chegar a esse alvo de forma consistente com a ciência e com base em equidade”. E depois emenda: “As metas do Acordo de Paris não são consistentes com os 2ºC, não são baseadas em ciência e não têm nada a ver com equidade”.
Ele prossegue: “Faz 25 anos que nós sabemos tudo de que precisamos saber para combater a mudança climática, mas as emissões hoje são 60% maiores do que eram nos anos 1990. Estamos continuando a nos travar em uma trajetória de cem anos de uso de combustíveis fósseis”.
Anderson faz parte de um grupo crescente de cientistas, economistas e analistas políticos que acham que a humanidade já perdeu a chance de manter o aumento da temperatura da Terra abaixo de 1,5ºC, o tão celebrado objetivo da COP21. E que mesmo o limite de 2oC é muito mais provável de ser ultrapassado do que de ser cumprido.
Na primeira semana de COP21, o pesquisador, vinculado ao Centro Tyndall de Pesquisa sobre Mudança Climática, publicou um comentário no periódico Nature Geoscience afirmando que cenários que mantêm o aquecimento global abaixo de 2ºC dependem de “emissões negativas especulativas ou de mudar o passado”, e que os cientistas precisam ser honestos em suas premissas, “por mais politicamente desconfortáveis que sejam as conclusões”.
O texto ecoa um outro comentário, publicado em maio na revista Nature pelo cientista político alemão Oliver Geden, que também pede integridade dos cientistas em relação à factibilidade da meta de 2ºC. Geden foi amplamente criticado quando circulou uma versão preliminar de seu artigo. Chegou a ser acusado de se alinhar com os chamados “céticos” do clima. Anderson, segundo o OC apurou, teve dificuldades para conseguir que seu comentário fosse publicado na Nature Geoscience.
“O problema é que as pessoas têm uma dificuldade terrível em lidar com a realidade”, disse ao OC em novembro David Victor, professor de Relações Internacionais da Universidade da Califórnia em San Diego e um dos acadêmicos que têm argumentado que a chance de limitar a temperatura em 2ºC sem quebrar a economia nem recorrer à geoengenharia já passou.
Pesquisadores como Victos, Anderson e Geden baseiam suas avaliações no chamado “orçamento de carbono”. Trata-se de uma conta apresentada no último relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática), de 2013, que relaciona diferentes probabilidades de elevação de temperatura neste século com emissões acumuladas de dióxido de carbono desde a Revolução Industrial.
Segundo essa conta, se quiser ter 66% ou mais de chance de manter a elevação da temperatura global abaixo de 2oC, a humanidade tem apenas 1 trilhão de toneladas de CO2 para emitir entre 2011 e o fim do século. Como a taxa atual de emissões está em torno de 50 bilhões de toneladas por ano, os cientistas estimam que teremos esgotado nosso orçamento de carbono em cerca de duas décadas.
O problema, de acordo com Anderson, é que o nosso orçamento de carbono está seriamente inflado. Primeiro, porque já emitimos cerca de 150 bilhões de toneladas de CO2 equivalente apenas entre 2011 e 2015. Segundo, porque é preciso incluir no orçamento emissões de outros setores, como desmatamento e produção de cimento – que nos subtraem mais 250 bilhões de toneladas de CO2 do total disponível para gastar. E isso tudo sem considerar outros fatores, como as emissões por derretimento de solos congelados (permafrost) no Ártico, que, segundo um estudo também apresentado em Paris, podem reduzir significativamente o saldo bancário de carbono da humanidade.
“O orçamento real é de 600 bilhões de toneladas, não de 1 trilhão”, disse Anderson. “Para dizer muito secamente, a chance de termos 66% de probabilidade de 2oC está perdida. Na melhor das hipóteses, temos 33% de chance”, prosseguiu, dizendo que o orçamento de 2015 precisaria ser ajustado para 1,1 trilhão de toneladas, que daria um terço de chance de alcançar a meta do Acordo de Paris.
Mandrake
Cenários compatíveis com 2oC usam o que o pesquisador de Manchester chama de “coelhos na cartola”. O IPCC avaliou, em seu último relatório, 400 desses cenários. Destes, 344 assumem que a humanidade terá sucesso em adotar em larga escala as chamadas “emissões negativas”, como o plantio de dezenas de milhões de hectares de florestas num curto prazo ou a expansão da bioenergia com captura e sequestro de carbono em destilarias de cana, por exemplo – o chamado BioCCS. Este é o primeiro coelho.
“Essas tecnologias nunca funcionaram em larga escala, suas dificuldades técnicas e econômicas são desconhecidas, podem causar conflito com a produção de alimentos e precisamos cruzar os dedos sobre potenciais feedbacks que elas possam ter no clima”, diz Anderson.
Mais preocupante ainda, segundo ele, é o fato de que todos os 56 cenários que não recorrem a emissões negativas assumem que o pico global de emissões de gases-estufa ocorreu em 2010 – daí a referência a mudar o passado, o segundo coelho na cartola dos cenários de 2ºC.
O pico de emissões globais foi uma das batalhas políticas de Paris. China e Índia, países emergentes cuja matriz energética é baseada em carvão e que ainsa verão suas emissões crescerem por 15 anos ou mais, foram contra a menção, no texto do acordo, de uma data para que as emissões de carbono chegassem ao ápice e começassem a declinar daí. Também se opuseram à inclusão da expressão “descarbonização” da economia no pacto. Paris teve de se contentar com um objetivo de longo prazo de atingir o pico de emissões “o quanto antes”.
Uma notícia animadora nesse sentido foi dada pelo Global Carbon Project, uma rede de uma centena de cientistas capitaneada pelo Centro Tyndall da Universidade de East Anglia em Norwich, também no Reino Unido. Durante a COP21, eles apresentaram resultados do balanço de carbono do planeta em 2014, que indica uma desaceleração no crescimento das emissões mundiais nos dois últimos anos.
Segundo dados apresentados pela física canadense Corinne LeQueré, diretora do Tyndall, no ano passado as emissões de gases-estufa por queima de combustíveis fósseis cresceram apenas 0,6%, após uma média de 1% ao ano na década de 1990 e 3% nos anos 2000. A estimativa para 2015 é que a taxa de emissões tenha se estabilizado ou mesmo declinado ligeiramente: os dados indicam um desempenho que vai de uma queda de 1,6% a um aumento de 0,5%, com uma mediana de 0,6% de declínio. Seria a primeira vez que as emissões caem na ausência de crise econômica.
“Overshoot”
Os principais fatores são a queda das emissões da União Europeia e a redução do uso de carvão para gerar energia na China, o que está fazendo despencar a relação entre uso de energia e CO2 e PIB no país que é o motor da economia mundial. Em 2014, a China cresceu 7,3%, enquanto o consumo de energia cresceu apenas 2,2%. Segundo o chinês Dabo Guan, também da Universidade de East Anglia, a redução da intensidade de carbono da economia chinesa se verifica desde 2007.
Kevin Anderson adverte que é cedo para comemorar. “As causas dessa queda dificilmente persistirão, embora no curto prazo o crescimento das emissões deva permanecer pequeno”, afirmou. Pior ainda, prosseguiu o britânico, toda a infraestrutura construída no planeta – de estradas a prédios, aviões, navios e usinas de energia – ainda é de alto carbono. Como investimentos em infraestrutura são de longo prazo, há um “travamento” em alto carbono nesse setor que vai de 30 a cem anos.
O esforço de mitigação necessário nos países em desenvolvimento para que a humanidade tenha pelo menos 50% de chance de evitar o limiar de 2oC, argumenta, envolveria um pico nas emissões globais em 2025 (contra “o quanto antes” do Acordo de Paris) e uma queda de 10% ao ano a partir daí. Para os países ricos, a redução teria de ser de 10% ao ano a partir de hoje.
“Isso significa que não temos chance de ficar em 2ºC? Não, nós temos: a chance é de 33%”, diz Anderson, lembrando em seguida a uma plateia ainda tonta pelos números que tal esforço, mesmo assim, envolveria mitigação que vai muito além de qualquer coisa discutida em Paris – o que ele chama de “Plano Marshall” para o setor energético no mundo em desenvolvimento, com uma taxação das emissões dos 10% mais ricos da população mundial. “E, sejamos francos, todos nós aqui nesta sala pertencemos a esse grupo.”
Já a meta de estabilização do aquecimento em 1,5ºC, mencionada no acordo e maior vitória política dos países vulneráveis em Paris, está simplesmente “perdida”, segundo o cientista inglês.
Outros pesquisadores têm uma visão menos fatalista. Para o alemão Hans-Joachim “John” Schelnnhuber, diretor do Instituto de Pesquisa de Estudos Climáticos de Potsdam, ter 50% de chance de ficar em 1,5ºC é algo “muito difícil”, mas “ainda compatível com a ciência”.
Porém, isso envolveria, além de um esforço brutal de mitigação, também o que os climatologistas chamam de “overshoot”: as temperaturas subiriam para além da meta e voltariam a ela após algumas décadas.
A vantagem disso é que talvez fosse possível, dessa forma, estabilizar o nível do mar, já que ele sobe mais lentamente (descontado um colapso eventual repentino do manto de gelo da Antártida, que elevaria os oceanos quase instantaneamente). Salvar os países-ilhas do Pacífico da extinção no longo prazo, portanto, talvez ainda esteja ao alcance. “Para o nível do mar, 1,5oC e 2oC são uma grande diferença”, disse Schelnnhuber.
No entanto, mesmo que seja possível fazer a reengenharia da atmosfera, o cientista acha que não dá mais para evitar outro impacto do alto CO2: a acidificação dos oceanos, que ameaça os ecossistemas e a própria capacidade do mar de sequestrar e armazenar gases-estufa.
Só os próximos anos dirão se Paris terá conseguido cumprir sua promessa.
Veja aqui toda a cobertura da COP21, uma parceria com o Observatório do Clima |
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Apesar das boas intenções, a Conferência de Paris é uma espécie de satisfação pública para explicar o inexplicável e o inatingível. Se fosse para valer mesmo já teríamos feito alguma coisa "palpável" e mais séria, a partir de 1972 com a Conferência de Estocolmo na Suécia. O que estamos assistindo é uma sucessão de promessas teóricas e algumas tímidas ações preocupadas em não afetar o poder econômico instituído. Acho que o que vai realmente contribuir para alguma mudança serão os astronômicos prejuízos que já estão ocorrendo – e vão se agravar – no decorrer deste século XXI.