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Veneza Marajoara é a cidade costeira mais ameaçada pelas mudanças climáticas no Pará

Afuá encanta visitantes por ser uma cidade sobre palafitas onde os transportes disponíveis são apenas bicicletas e barcos. Mas tem um dos indicadores de vulnerabilidade climática mais altos do estado

Alice Martins Morais ·
18 de setembro de 2024

REPORTAGEM

Veneza Marajoara é a cidade costeira mais ameaçada pelas mudanças climáticas no Pará

Afuá encanta visitantes por ser uma cidade sobre palafitas onde os transportes disponíveis são apenas bicicletas e barcos. Mas tem um dos indicadores de vulnerabilidade climática mais altos do estado

Os habitantes de Afuá, Ilha do Marajó, convivem com o vai e vem da maré todos os dias. Conhecida como “Veneza Marajoara”, a cidade foi construída sobre o Baia do Vieira Grande, em vias de palafitas de madeiras. As águas regem a dinâmica de trabalho e decidem o horário do transporte de um local para o outro. Mas até quando a aparente harmonia com a natureza vai permanecer diante da emergência climática global? Moradores já relatam mudanças. 

“A população aqui já é adaptada a essa condição e nos organizamos para lidar com isso, seja suspendendo mais a altura das casas ou planejando a colheita dos frutos quando a água desce”, afirma Katia Pantoja, liderança da comunidade Maniva, na Ilha do Pará, zona rural de Afuá. “Mas parece que o calendário natural do fenômeno das águas mudou com a questão do clima. Não tem mais período certo de águas grandes nem da grande estiagem”, completa.

O município possui menos de 40 mil habitantes, sendo aproximadamente 25 mil em zona rural. Muitos estão dispersos em comunidades insulares, como na Ilha do Pará, onde a economia é baseada principalmente no cultivo de açaí e no extrativismo de sementes e frutos. O território é todo de várzea, ou seja, de uma planície que periodicamente fica inundada.  A maré nessa região enche e seca todos os dias, mas de janeiro a maio a cheia tende a ser maior – em especial nas “águas grandes de março”. 

Município de Afuá é composto por mais de 15 ilhas que ficam espalhadas por comunidades ribeirinhas
Município de Afuá é composto por mais de 15 ilhas que ficam espalhadas por comunidades ribeirinhas

Afuá não é somente mais um município da Amazônia. A cidade foi construída sobre o rio, em vias de palafitas de madeiras. Não é permitido veículo motorizado nas ruas, apenas bicicletas, bicitáxis, bicilâncias (adaptações de táxis e ambulâncias) e outras variações do tipo. O único barulho de motor que se escuta vem dos barcos que atracam nos diversos portos ao redor do município, que é o transporte dali para qualquer outro lugar. No final da tarde, é comum a cena de uma revoada de passarinhos vindo de ilhas próximas para passar a noite nas árvores da praça, na orla da cidade. Enquanto isso, moradores de todas as idades caminham e transitam de bicicleta, aproveitando o pôr do sol. 

Além de não permitir veículos motorizados, a cidade é pouco industrializada – existem apenas fábricas de pequeno porte, para processamento de palmito e de madeira. Apesar de não ter monitoramento local de emissões de carbono, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente acredita que o índice é muito baixo. Mesmo assim, é um dos municípios da zona costeira do estado mais vulneráveis às mudanças climáticas, de acordo com um estudo da Universidade Federal do Pará (UFPA), publicado em 2021.

Baixa emissão de carbono não protege o município das mudanças climáticas

Ali, as enchentes são recebidas como um momento de alegria. Na zona rural, a água que vai “descendo” (ou secando) traz as sementes que estão na floresta, que servem tanto como bioproduto para venda quanto para nutrir os açaizeiros; no centro urbano, as ruas e a praça central são transformadas em um balneário algumas horas do dia.

No entanto, ao transitar pela cidade no mês de junho, a equipe de reportagem conversou com várias pessoas e a resposta foi a mesma: neste ano, as cheias foram abaixo da média. Em contrapartida, no “verão amazônico” (julho a novembro) de 2023, houve seca e queimadas na floresta. “Teve um período em que os peixes apareceram mortos no rio e que crianças e idosos adoeceram muito com doenças respiratórias”, recorda Katia Pantoja.

“O município é cortado por igarapés, mas em alguns deles não chegava água. Para piorar, tivemos três incêndios grandes na sede da cidade e a brigada, que costuma combater com a água dos próprios igarapés, teve que buscar ajuda da população, que estavam com as caixas [d’água] cheias, já que tinham ido buscar água no rio maior”, conta, preocupado, Hilder Felix, Secretário Municipal de Meio Ambiente.

Secas devem fragilizar ainda mais o território

O problema agora está sendo a seca, mas, com a subida do nível do mar, no futuro pode ser outro. No Marajó, é esperado que o mar suba 10 centímetros de 2020 a 2039, conforme previsões do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – mais do que a média global, que é de 8,6 centímetros.

O climatologista Carlos Nobre explica que mesmo as secas podem, por si só, tornar o território ainda mais vulnerável a futuras enchentes, em efeito cascata. “Quando se tem seca, a mata ciliar fica muito fragilizada, e se perde muita vegetação. Quando inverte, passa do El Niño para o La Niña, e normalmente vem chuva excessiva para toda a Amazônia, não tendo mais a vegetação para segurar a água”, declara.

El Niño e La Niña são partes de um mesmo fenômeno atmosférico-oceânico, natural e cíclico, que altera as temperaturas do Pacífico ao longo da linha do Equador, com impactos meteorológicos globais. O clima no mundo tem estado sob o efeito do El Niño desde junho de 2023. Na região Norte do Brasil, houve escassez de chuva e, a partir do segundo semestre de 2024, é esperado La Niña, com prováveis chuvas acima da média nesta região.

“Tudo tem ficado mais forte nessa região, no Amapá, no Pará, na Foz do Amazonas, na Ilha do Marajó. Isso acontece em maior parte devido às mudanças climáticas. Mas uma parte também é causada localmente, com o fator humano, como o desmatamento e os incêndios”, pontua Carlos Nobre.

Contexto social e falta de vegetação prejudicam cenário

Afuá é o município com maior vulnerabilidade climática de todos os municípios litorâneos do estado, de acordo com o estudo de 2021 da Universidade Federal do Pará, com base em vários critérios. Isabel Vitorino, uma das autoras do estudo, explica que os principais motivos locais são a baixa capacidade de adaptação e suas condições socioeconômicas. “São fatores como baixo nível de escolaridade da população, grande número de domicílios sem saneamento básico e alta taxa de mortalidade infantil”, informa. Para se ter uma ideia, uma em cada cinco pessoas com 15 ou mais anos é analfabeta. E o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), de 0,489, é considerado muito baixo. O de Belém, por exemplo, é de 0,746.  

Além disso, Afuá possui poucos recursos e infraestrutura para se preparar e lidar com os impactos das mudanças climáticas. “Nesse estudo, há um componente da natureza, do ambiente e dos aspectos sociais. Um ponto que impacta muito, por exemplo, é a ausência da vegetação; outro aspecto é o contexto sociopolítico, pela própria falta de ação e ausência de políticas públicas”, detalha a pesquisadora. 

O Índice de Cobertura Vegetal (VCI) da pesquisa considera a área de cobertura vegetal nativa, tanto em área absoluta quanto em porcentagem. Segundo o documento, a cobertura vegetal é um fator importante na avaliação da vulnerabilidade porque sua remoção ou falta pode levar a problemas socioambientais, como inundações, deslizamentos de terra e erosão costeira. Nesse contexto, Afuá é o município da costa paraense com o segundo menor VCI, ficando atrás apenas de Chaves, cidade vizinha.

Ligação com o território deve ser levada em consideração

As populações que vivem em áreas altamente vulneráveis têm 15 vezes mais chance de morrer em inundações, secas e tempestades, em comparação às mais resilientes, segundo relatório de 2023 do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), comitê científico da ONU que avalia e monitora as mudanças climáticas.

E o clima está ficando cada vez mais quente. Em 2015, 195 países assinaram o Acordo de Paris e estabeleceram como meta limitar o aumento da temperatura do planeta a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais. Mas, até julho deste ano, essa marca já tem sido ultrapassada por 12 meses consecutivos, de acordo com o Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus, da União Europeia.

Porém, ainda é incerto se o modo de vida de Afuá ficará tão prejudicado ao ponto de a população ter que migrar. Se chegar a esse ponto, migrar para outros territórios pode significar maior suscetibilidade à marginalização. É o que alerta Patricia Pinho, diretora adjunta de pesquisa no Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). Especialista em Ecologia Humana e coautora do relatório do IPCC, ela explica que muitas vezes esse deslocamento, em busca de assistência médica, educação ou trabalho, leva a população aos centros urbanos. “Chegando lá, essas pessoas normalmente vão habitar regiões mais precárias, nas grandes periferias, e muitas vezes não conseguem se adaptar à força de trabalho urbana, que é diferente do que estavam tradicionalmente inseridas. Isso as deixa mais suscetíveis à violência e discriminação”, detalha.

Ronaldo Christofoletti, membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN), corrobora, destacando que muitas vezes são as comunidades mais tradicionais, e que vivem em partes mais vulneráveis das cidades, que têm uma ligação mais forte com seu espaço. “Não podemos prejudicar a cultura nem a relação humana envolvida nessa história. Não é fácil, não é barato, mas é preciso ter justiça nesse processo”, acredita Christofoletti, que também é professor do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membro do Grupo Assessor de Comunicação para a Década do Oceano da UNESCO.

Possível efeito cascata no sistema de saúde

Historicamente, a população de Afuá já se desloca, de forma definitiva ou temporária, para Macapá (AP), que é muito mais próxima geograficamente que Belém (PA). O próprio sistema público de Saúde encaminha pacientes para a capital amapaense em várias situações, como vacinação, resgate aéreo e exames. Por sua vez, Macapá também, em alguns casos, faz direcionamentos a Belém, para atendimentos mais especializados, indisponíveis localmente. 

Em um cenário de eventos climáticos extremos, a Secretária Municipal de Saúde, Patrícia Quaresma, acredita que esse fluxo possa aumentar muito mais. Por isso, ela defende que sejam feitas mais pactuações interestaduais, para consagrar o apoio mútuo que já existe na prática.

Pela proximidade maior com a capital do estado vizinho, moradores de Afuá costumam ir com mais frequência a Macapá que a Belém.

Quaresma acredita que as políticas de saúde daqui para frente precisam ser cada vez mais interseccionais, unindo Meio Ambiente, Assistência Social e outras secretarias ao mesmo tempo, além de ter uma visão de maior integração entre as fronteiras, pensando em eventos extremos futuros. “Esse acordo interfederativo precisa ser estudado constantemente, pensando-se nas possíveis necessidades futuras de saúde e na perspectiva de que o sistema pode superlotar a qualquer momento e de quetemos que estar preparados”, assinala.

Também pensando em uma visão integrada, o Secretário Municipal de Meio Ambiente, Hilder Félix, defende a criação de um plano de resiliência climática que englobe todo o Marajó, para unir forças e aumentar a resistência do território. “Já venho conversando sobre a ideia com alguns amigos secretários de outros municípios do Marajó, pois hoje ainda não pensamos assim, não temos nenhum plano emergencial. E não adianta eu fazer algo isolado aqui, sem a participação de todo o arquipélago”, declara.

O secretário reconhece que a Veneza Marajoara não tem no momento estratégias de adaptação às mudanças climáticas ou de prevenção ao aumento do nível do mar. Ele diz que não há recursos financeiros suficientes para ações robustas e, além disso, acredita que não adianta fazer uma ação isolada no município, já que o que se passa nos demais municípios do arquipélago é sentido também em Afuá. 

Um exemplo é o fenômeno das “terras caídas”. Por conta da erosão provocada pela força das águas dos rios, grandes blocos ou barrancos de terra se desprendem das margens e saem flutuando, como se fossem pequenas ilhas. Essas ocorrências tornam-se mais frequentes nas secas, e, assim como nas cheias a força da maré lançante pode provocar erosão, a vazante pode trazer consequências semelhantes. Quando algo assim acontece em municípios vizinhos de Afuá, os efeitos chegam até ele, já que esses pedaços de terra “navegam” pelo rio Amazonas.

Defensoria Pública cobra ações de prevenção de desastres

Pelo menos nove municípios do Marajó já foram identificados com risco alto ou muito alto pelo Serviço Geológico do Brasil (SGB), desde 2012. O órgão entrega uma lista de recomendações para apoiar na tomada de decisões das prefeituras, incluindo as que deveriam ser tomadas com urgência, em um prazo máximo de cinco anos, como instalação de rede de drenagem e de sistema de alertas para inundações, remoção de moradias e recuperação da vegetação nativa. 

Para investigar se essas providências foram adotadas desde o trabalho do SGB, a Defensoria Pública da União (DPU) – Pará iniciou seis Processos de Assistência Jurídica (procedimento interno da instituição, conhecido pela sigla PAJ) em junho de 2023. “É assustador saber que uma tragédia similar pode acontecer e não se ver uma preocupação dos governantes”, declara o defensor público Marcos Wagner Alves Teixeira, que tomou a iniciativa.

Mesmo após sucessivas tentativas, apenas dois municípios do Marajó deram um retorno até julho deste ano. Curralinho informou uma lista de ações que pretende desenvolver, incluindo instalar uma régua para medir a água do rio e implementar um sistema de alerta para as áreas de risco – como veiculação na mídia e uso de sirenes. Mas o município não definiu prazos para colocar as medidas em prática. Já Muaná relatou que os próprios moradores tomam providências para se adaptar às elevações de maré, elevando a altura de suas casas de palafitas, enquanto a prefeitura eleva as passarelas nessa área de risco. Afuá não foi contatada, pois não recebeu mapeamento do SGB até o momento.

O próximo passo da DPU será acompanhar, nesses municípios, obras feitas com recursos federais. “Eventualmente, podemos fazer recomendações junto ao Ministério Público e à Defensoria Pública do Estado, para que ações voltadas à prevenção de desastres sejam prioridades quando houver, por exemplo, um recurso por meio de emenda parlamentar”, acrescenta. Em casos considerados muito graves, avalia-se a possibilidade de acionar o sistema Judiciário para intervir. 

Municípios não possuem planos robustos para o aumento do nível do mar

A reportagem do ((o))eco também entrou em contato com os 17 municípios do Marajó para entender se algum tem um plano de preparação para adaptação ao aumento do nível do mar: sete disseram que não têm e oito não responderam, após sucessivas tentativas.

Apenas Anajás e Chaves informaram estar com a discussão em andamento, embora não tenham ainda um plano vigente. Chaves disse que, em resposta à provocação da DPU, está “em processo de elaboração de um plano de ação e mitigação” nas áreas afetadas, apontadas pelo SGB. Anajás, por sua vez, declarou em nota que formou uma Comissão Intersetorial, desde o primeiro semestre de 2023, para atualizar o Plano Diretor Municipal, e, nesse sentido, “já realizou várias assembleias com a participação da comunidade”, além de “manifestar sua preocupação com o aumento do nível do mar’. A Prefeitura disse que “busca parcerias com os demais entes federados” para enfrentar essa problemática.

Enquanto isso, em Afuá, a Veneza Marajoara, a configuração urbana está mudando. As passarelas de palafitas, cartão postal da cidade, estão sendo substituídas por ruas de concreto, devido à dificuldade da prefeitura para encontrar madeira legalizada na região em quantidade suficiente para fazer a manutenção e troca contínua de tábuas. Algumas casas, principalmente na área central da cidade, também já são de concreto.

A mudança vem para reduzir os custos e o trabalho da gestão municipal, mas superfícies de concreto retêm o calor e provocam desconforto térmico. Além disso, dificultam a drenagem em caso de enchentes, pois, enquanto a água transborda e vaza naturalmente entre as pontes de madeira, no asfalto a única alternativa é colocar pequenos buracos para o escoamento, mas a eficácia não é a mesma. “A gente sabe que não é a melhor opção, mas tem se tornado inviável manter as ruas de palafitas. Agora, com a mudança para concreto, há uma preocupação maior com a arborização, porque a gente precisa resfriar as nossas passarelas”, afirma Felix. 

Esta reportagem foi produzida com o apoio da Earth Journalism Network (EJN)

Ficha técnica
Reportagem: Alice Martins Morais
Imagens: Matheus Melo
Produção: Lucas Duarte
Ilustrações: Gabriela Güllich
Revisão ortográfica: Eliani Martins
Mentoria EJN: Ricardo Garcia e Fermín Koop
Edição ((o))eco: Daniele Bragança e Marcio Isensee e Sá

  • Alice Martins Morais

    Jornalista freelancer e especialista em Comunicação Científica. Sua cobertura foca especialmente em temas relacionados ao Meio Ambiente, Ciência e Amazônia.

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