George Schaller nasceu em Berlim em 1933 e passou a infância sob as condições duras da Segunda Guerra. Em seu último livro, Tibet Wild, ele conta como, em 1945, recolhia restos de comida deixados por soldados norte-americanos. Em 1947, emigrou com a mãe e o irmão para os Estados Unidos. Até o fim da adolescência, no período na escola, George se descreve como um aluno medíocre.
Depois de se graduar em ciências na Universidade do Alasca, em 1956 ele participou do estudo de campo, com seus professores Olaus e Mardy Murie, da região que se tornaria mais tarde – e graças aos Murie – uma área protegida, o Arctic National Wildlife Refuge. Em 1959, com a esposa Kay, iniciou, no então Congo Belga, o primeiro estudo sobre gorilas. E a partir daí os projetos se sucedem. George, às vezes em conjunto com a esposa, às vezes com outros pesquisadores, estudou tigres, leões, onças-pintadas, pandas, leopardos-da-neve (ele obteve a primeira foto deste animal na natureza) e exóticos mamíferos dos Himalaias e Planalto Tibetano como argalis, kiangs, chirus e bharals.
A conservação sempre foi uma preocupação essencial no trabalho de Schaller, do qual resultou a criação de novas reservas, algumas transnacionais, e protocolos de conservação. Um gigante tanto na ciência quanto na conservação, não são poucos os biólogos que veneram Schaller ou adorariam ter tido uma carreira como a dele.
Ele visita regularmente o Brasil, onde foi o pioneiro no estudo da onça-pintada e deu origem a uma linhagem de pesquisadores brasileiros extremamente ativa. Hoje é vice-presidente da Panthera, entidade dedicada à conservação das 38 espécies de felinos selvagens com projetos em vários países, incluindo o Brasil.
Encontrei George Schaller em Roraima juntamente com Peter Crawshaw, especialista em carnívoros e colunista de ((o))eco, que se considera filho intelectual de Schaller. Os dois estiveram juntos no Pantanal, quando Peter iniciava a sua bem-sucedida carreira, durante a qual também se dedicou a treinar novas gerações. Juntos, visitamos o belo Parque Nacional do Viruá e a área contígua proposta para ser anexada ao parque. Percorrendo as trilhas do Viruá descobri como este senhor de 81 anos é uma pessoa simples que ainda se encanta ao encontrar animais comuns. E que pode marchar por quilômetros deixando jovenzinhos para trás.
Realizei esta entrevista em nosso acampamento às margens do rio Baruana, cercados por igapós, enquanto quatro botos-rosa pescavam a alguns metros de nós.
Você acredita que biólogos de campo nascem ou são feitos?
Fico feliz por você começar com uma questão fácil. Acredito que é essencial ser exposto à natureza quando se é jovem. Você precisa ter certo caráter, o que significa não estar constantemente procurando um grande grupo de pessoas, música alta, ter medo de estar sozinho, mesmo por períodos consideráveis. Seu caráter básico e suas experiências quando jovem têm ambos, acredito, uma influência forte.
Então o atual declínio no ensino da história natural deve ser uma preocupação, você não acha?
“As pessoas certamente querem amar a onça-pintada, um símbolo no Brasil, que tem metade das onças-pintadas do mundo. Se você quer salvar este belo animal como uma espécie, o Brasil é o primeiro lugar onde você deve fazê-lo.”
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Eu penso que todas as crianças são curiosas a respeito da Natureza, mas, a menos que isso seja reforçado, tantas coisas surgem que ao atingir a adolescência elas perdem esse interesse. A menos que a mídia, revistas, jornais, rádio, TV, tudo, mencione com constância questões ambientais, isso não se torna parte de sua vida. E a mídia tem sido extraordinariamente pobre.
Apesar do National Geographic, Discovery Channel e Animal Planet….
Sim, isso é verdade. Os shows de TV têm imagens lindas de animais, mas que parecem outra realidade. Eles não fazem as pessoas sentirem que aquilo acontece no mesmo mundo em que elas vivem e que há problemas de conservação. Não dizem quais são esses problemas e o que você pode fazer para ajudar. A menos que as pessoas se sintam envolvidas elas dirão “isso é fantástico, que belo trabalho que eles fazem”, mas no momento em que desligam o aparelho elas se esquecem do assunto. Precisamos que as pessoas se sintam parte da Natureza e da conversação, e a mídia não cumpre esse papel.
Algo que me preocupa é que, ao olhar as universidades, a ciência da Ecologia hoje parece mais preocupada com modelos matemáticos do que em ir a campo descobrir como animais e plantas vivem e interagem.
Você está perfeitamente correto. Nossas universidades estão cortando cursos básicos de mastozoologia, ornitologia e outras disciplinas básicas de ecologia. No trabalho com o computador você pode medir a biomassa de um lugar sem nunca ter pisado lá. Isto é extraordinariamente valioso, mas a menos que você possa descobrir o que significa estar dentro de um pântano, como frequentemente estamos aqui, não terá a experiência do lugar e a feliz sensação de ser sugado pela lama (risos). Indo aos lugares você pode compreender os problemas de conservação, o que pode ser feito e como trabalhar a respeito disso com as pessoas que ali vivem.
Por que devemos conservar o mundo natural? Há pessoas com uma perspectiva utilitária, outras uma visão mais ética. Qual a sua perspectiva pessoal?
“O budismo não trata de se sentar em frente a algum ser sobrenatural e pedir coisas, é uma religião onde você faz o bem e é recompensado na próxima vida. Por isso, é ideal para a conservação.”
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De muitas maneiras, eu fui afortunado em iniciar meus trabalhos de campo em 1952. Veja só, havia este mundo vasto e quase nada havia sido estudado. Então eu podia selecionar espécies. Nada era conhecido sobre o tigre, então fui para a Índia conseguir alguma informação. Ou a China me convida para trabalhar com o panda. Fantástico, eu passei quatro anos estudando pandas. Este conhecimento básico é essencial, mas só isto não é conservação.
A ciência é fácil, conservação é muito difícil por que estamos lidando com pessoas, sua economia, sistemas sociais, etc. E em cada cultura, cada comunidade, as pessoas têm seus próprios desejos. E como você os satisfaz e ao mesmo tempo preserva a natureza? Isso é extraordinariamente difícil e muito frustrante porque mesmo quando as pessoas sabem que algo é para seu próprio bem elas não querem mudar. Como você convence as pessoas? Você não pode apenas pagá-las por isso. Ajuda se você pode, de alguma forma, melhorar seu padrão de vida, mas não é tudo. Elas também precisam ter um envolvimento emocional naquilo que é feito para proteger o meio ambiente. As pessoas certamente querem amar a onça-pintada, um símbolo no Brasil, que tem metade das onças-pintadas do mundo. Se você quer salvar este belo animal como uma espécie, o Brasil é o primeiro lugar onde você deve fazê-lo.
Durante suas viagens você teve contato com diferentes culturas. Você encontrou alguma que pode ser elogiada pela sua ética de conservação?
Desde 1980 tenho passado vários meses por ano no Planalto Tibetano onde se pratica o budismo tibetano. Um dos princípios básicos do budismo é mostrar amor, respeito e compaixão para com a Natureza, o que cria uma excelente linha-base. O budismo não trata de se sentar em frente a algum ser sobrenatural e pedir coisas, é uma religião onde você faz o bem e é recompensado na próxima vida. Por isso, é ideal para a conservação. No entanto, pessoas em toda parte, não importa qual a sua religião, precisam ser lembradas. Assim, quando você vai a uma cultura e os relembra daqueles princípios elas irão considerá-los na sua mensagem de conservação.
Algumas vezes é frustrante, mas também nos anima, quando vemos grupos se organizando para melhorar as coisas. Em maio passado eu estava no Kenya, onde os Maasai estabeleceram o que chamam conservancies. Elas não são criadas por conta da própria comunidade, mas sim por várias comunidades trabalhando juntas para manejar as terras de pastoreio, a vida selvagem, e tentar promover o turismo. É um verdadeiro esforço comunitário e a única maneira de conseguir resultados.
As conservancies poderiam inspirar povos indígenas e quilombolas aqui no Brasil. Isso me leva à próxima pergunta: ONGs como a The Nature Conservancy e o Greenpeace que se dedicavam à conservação mudaram seu foco principal para questões de bem-estar social como redução da pobreza e agricultura. Como você vê isso?
Bem, então eles não deveriam se chamar de organizações conservacionistas. O trabalho do governo é cuidar de questões sociais e há muitas ONGs preocupadas com agricultura, saúde e assim por diante. Se você se denomina uma organização dedicada à conservação você deveria se preocupar antes em salvar nossa herança biológica trabalhando em cooperação com aquelas comunidades.
Antes de vir para Roraima você estava em Mamirauá, no Amazonas, que é bastante famoso como um projeto de conservação baseado no desenvolvimento comunitário. Qual foi sua impressão?
“As pessoas que vivem aqui, cercadas por esta bela vegetação, devem lembrar que durante a última era glacial a maior parte da Amazônia era de savanas com algumas manchas de floresta, então as coisas podem mudar.”
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Eu fiquei muito feliz em visitar Mamirauá, que foi uma iniciativa estabelecida por Marcio Ayres. Em 1977 eu o encontrei em Belém e ele me disse que estava trabalhando nessa área e que eu deveria vir visitá-la com ele. Eu sempre adiei por que havia alguma outra coisa e décadas depois eu finalmente consegui ver o que ele criou. Ele deixou uma maravilhosa herança natural para o Brasil, não apenas o uacari. Eles também estão conduzindo pesquisas sobre as onças-pintadas, botos e outras espécies.
E há esta bela pousada, aparentemente construída pelo governo, mas administrada pela comunidade local, que recebe os lucros. Esta é uma iniciativa excelente. Se há potencial turístico as comunidades devem trabalhar em seu próprio favor para atrair turistas. O que nem sempre é fácil.
Vivemos em um mundo cada vez mais cheio de pessoas e onde o espaço para outras criaturas é cada vez menor. Você acha que áreas protegidas convencionais, como parques nacionais, ainda são um instrumento-chave para conservar a biodiversidade ou devemos buscar alternativas?
Parques nacionais continuam um instrumento-chave, não apenas por que esperamos que tenham a maior parte da biodiversidade, mas também por ser a única forma de mantê-la. A maior parte dos parques nacionais é pequena demais, então a verdadeira questão em conservação é como você dá às espécies nos parques a oportunidade de se deslocarem, o que significa tanto ter zonas-tampão onde pessoas vivem, mas onde há também habitats naturais, como corredores conectando áreas de vegetação natural.
E precisamos planejar agora por que com a mudança climática tudo vai mudar de lugar e os animais terão a chance de se deslocar se mantivermos habitats. E nisso o Brasil tem sorte, pois há enormes áreas na Amazônia. Se planejarmos com antecedência podemos administrar este problema, mas governos em todo o mundo parecem ter problemas em planejar para o futuro, em criar planos determinando onde as pessoas não devem estar, onde elas devem estar, o número de pessoas, etc.
Sobre as mudanças climáticas, você tem visitado os Himalaias e o Planalto Tibetano por décadas. É possível ver os efeitos?
Bem, eu vi isso no norte do Alasca. Fazem 55 anos que vou lá. Glaciares estão retrocedendo, arbustos estão crescendo montanha acima, o que é bem evidente. O que também vai acontecer é o que vejo no Planalto Tibetano. O permafrost, o solo permanentemente congelado, está descongelando e quando isso acontece, a água é drenada e as plantas que ali cresciam não conseguem mais obter água. Há uma mudança drástica na vegetação e isso está acontecendo muito rápido.
As pessoas que vivem aqui, cercadas por esta bela vegetação, devem lembrar que durante a última era glacial a maior parte da Amazônia era de savanas com algumas manchas de floresta, então as coisas podem mudar. Leva mais do que uma vida, mas as coisas podem mudar drasticamente.
No manejo de áreas protegidas, há pessoas que acreditam que a melhor atitude é deixar a natureza seguir seu curso. Outras pensam que é necessário um manejo ativo que inclua técnicas como reintroduções, translocações, restauração, etc. O que você acha, há um papel para reintroduções de tigres, leões e outras espécies similares?
Depende da situação. Alguns animais como elefantes, se limitados a certa área, transformam toda a vegetação derrubando as árvores e assim por diante. Isso afeta outras espécies que você pode querer manter, pois turistas gostam de ver variedade, como leões e outros. Sim, algumas áreas, se grandes o suficiente, podem ser deixadas por conta da natureza. Em outras, se drasticamente afetadas, você tem que tomar a decisão sobre o que você realmente quer.
E algumas vezes as decisões são difíceis porque há questões morais…
“Nos anos 1970, o IBDF alugou um avião, nos colocou a bordo e voamos pela Amazônia procurando áreas com boas florestas que poderiam se tornar boas reservas. Recomendamos diversas, como o Pico da Neblina, e o Brasil criou algumas delas.”
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Frequentemente não estamos falando de manejo de vida silvestre e sim de política. E muitas coisas razoáveis são sufocadas porque pessoas gritam contra, outras querem votos e ninguém consegue conversar racionalmente.
Políticos são uma espécie peculiar (risos). E sobre isso, qual foi o lugar mais difícil de trabalhar onde você já esteve?
Depende do que você quer dizer como difícil.
Vamos dividir em dificuldades naturais e dificuldades humanas…
Eu sou apenas um biólogo de campo. Meu trabalho é obter dados, que espero sejam úteis. Eu levo estes dados para o governo, para o departamento responsável, e digo: aqui está, estas são minhas sugestões. Então esperamos um pouco, voltamos, e se as autoridades confiam em você podem dar seguimento a suas ideias. Isso aconteceu em todos os países onde trabalhei porque, em certos níveis, há gente muito boa que pode fazer as coisas acontecerem.
Eu tenho satisfação com os diferentes países onde sugeri que reservas fossem criadas. O Brasil é um exemplo. Nos anos 1970, o IBDF alugou um avião, nos colocou a bordo e voamos pela Amazônia procurando áreas com boas florestas que poderiam se tornar boas reservas. Recomendamos diversas, como o Pico da Neblina, e o Brasil criou algumas delas.
Isso foi quando Maria Tereza Jorge Pádua estava à frente da criação de novas áreas protegidas….
Sim, sim. Ela fez um trabalho muito bom ao estimular a criação de reservas.
Muitas das atuais áreas protegidas na Amazônia são legados deste tempo. As coisas se tornaram mais difíceis hoje em dia.
Como você disse, há cada vez mais gente e mais preocupações com comunidades. Assim o governo sempre hesita em mover comunidades para fora das áreas para estabelecer um parque nacional na sua definição tradicional. A Índia tem um excelente programa dedicado aos tigres onde há áreas-núcleo e eles têm movido pessoas voluntariamente. Eles vão às famílias e dizem “aqui você tem uma casa nova, uma estrada nova, serviços de saúde, boas escolas”. Eles constroem um bangalô muito agradável e a decisão de se mudar é sua. Muitas pessoas estão felizes em se mudar do sertão, por isso o programa tem funcionado.
O único problema é que isso custa caro e os políticos não querem gastar.
Agora você tocou em uma questão básica. Muitos países têm bastante dinheiro, tudo depende de onde eles querem gastá-lo…
Isso é verdade. Temos visto isso no Brasil. Um único estádio construído para a Copa custou o equivalente à solução dos problemas fundiários das unidades de conservação federais…
Eu notei que isso chamou bastante atenção… Bem, o Brasil quer estar na arena mundial, é um país grande e quer chamar a atenção. É uma questão de equilíbrio.
Mudando de assunto, que projetos você ainda gostaria de conduzir? Há alguma nova espécie que você amaria estudar?
Neste estágio, o meu maior foco é em encontrar boas áreas para todas as espécies, sejam aves, mamíferos… Eu trabalho para o Panthera, que tem como principal preocupação estudar e conservar as 38 espécies de felinos selvagens no mundo. Estou agora no Brasil para aprender o que biólogos brasileiros estão fazendo e como nós podemos ajudar.
Eu não quero iniciar um grande projeto, mas antes encontrar lugares e estimular os locais a desenvolverem projetos nos seus países, e ajudá-los a conseguir financiamentos. Isso é o que estou, por exemplo, fazendo na China com um projeto envolvendo estudantes de pós-graduação da universidade de Pequim. Nós os levamos para trabalhos de campo, criamos na universidade um centro sobre natureza e sociedade, desenvolvemos programas onde ajudamos a treinar nativos a realizar parte dos monitoramentos.
Incluindo os monges?
Os mosteiros são naturalmente interessados em conservação, mas nem sempre sabem bem como contribuir. Assim, eles podem nos ajudar monitorando a vida selvagem e, por exemplo, com cursos de educação para as comunidades locais. Assim, tento estimular interesse local em vez de me dedicar à ciência pura da moda. Deixemos os estudantes fazer isso.
Fale sobre o Panthera, quais são os objetivos desta iniciativa?
“Na parte tibetana da Índia, em Ladakh, há o que chamam de homestays (…) Os locais protegem a vida selvagem nos arredores para os turistas verem e agora os leopardos-das-neves estão se habituando às pessoas.”
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O Panthera foi criado em 2006 por um nova-iorquino abastado chamado Tom Kaplan e o principal interesse é ajudar países a protegerem os grandes felinos. O ponto importante sobre os grandes gatos é que se você os protege assim como suas presas, como os porcos-do-mato, essencialmente protege todo o ecossistema. Outra coisa sobre os grandes gatos é que as pessoas prestam atenção. Elas podem não gostar deles, especialmente se matam o gado mas… (pausa). Vocês têm sorte no Brasil, as onças-pintadas não atacam pessoas exceto em ocasiões extremamente raras, enquanto tigres e leões podem causar problemas consideráveis por conta disso. Mas, esse lindo animal deve estimular as pessoas a salvar a bela herança natural brasileira.
Você vê um papel para o setor privado na conservação? Conservação pode se tornar um negócio?
Tudo pode se tornar um negócio se todos os lados podem ganhar dinheiro. O mercado de carbono é um exemplo. As grandes corporações têm aprendido que ser realmente consciente a respeito do meio ambiente implica em economizar uma enorme quantidade de dinheiro. Painéis solares estão ficando cada vez mais baratos e mais usados, o que economiza muita eletricidade gerada por outras fontes.
O que me preocupa é que governos e corporações avançam de maneira tão completamente descuidada, como petroleiras derramando óleo, como fazem no Equador, por exemplo, e mineradoras… Sinto-me frustrado com a falta de cuidado e o desperdício com que esse tipo de desenvolvimento é feito. E isso poderia ser facilmente mudado, mas depende dos governos criarem e aplicarem as leis.
Com relação à conservação dos grandes gatos, um ponto-chave é combinar usos da terra que sejam compatíveis com os gatos e com a geração de renda. Um dos estudos de caso é o Pantanal, onde o Panthera tem uma fazenda. Você pode falar sobre isso?
“Grandes felinos são difíceis de reintroduzir (…), se você os solta em uma área estranha e eles não estão habituados a caçar por conta própria, eles vão até a casa mais próxima e dizem ‘ei, há algumas cabras aqui, vamos comer algumas’. E eles acabam mortos.”
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Quando Peter Crawshaw e eu trabalhamos no Pantanal, nós só víamos uma onça-pintada por acidente, quando uma delas aparecia. As pessoas nas fazendas carregavam revólveres e atiravam nas onças que encontravam. Mas, então, pescadores esportivos começaram a aparecer e os fazendeiros perceberam que os turistas querem ver onças. Então começaram a construir pousadas e pararam de caçar as onças ao longo dos rios. O Pantanal é o único lugar onde você pode ver onças-pintadas com facilidade durante a temporada. Esse é um bom exemplo de turismo de vida selvagem.
O mesmo com relação aos gorilas com que trabalhei em Ruanda, Congo, etc., em 1959-1960. Todos diziam que era muito perigoso, que era impossível fazer qualquer coisa com eles. Muito bem, o que eu fiz foi sentar lá e eles se acostumaram comigo. Se eles dormiam eu abria meu colchonete para dormir ali, para ver o que eles faziam durante a noite. Agora, Ruanda, este minúsculo país, recebe pelo menos 18 mil turistas por ano pagando US$ 500 cada um só para ver os gorilas. Essas coisas são possíveis se houver imaginação.
Na parte tibetana da Índia, em Ladakh, há o que chamam de homestays onde os turistas se hospedam na casa de uma família local pagando uma taxa. Os locais protegem a vida selvagem nos arredores para os turistas verem e agora os leopardos-das-neves estão se habituando às pessoas. Veja, com um pouco de iniciativa as pessoas locais podem ganhar dinheiro e atrair turistas. Mamirauá é um bom exemplo. Quando estávamos lá doze turistas apareceram, alguns brasileiros. Isso é muito bom para a comunidade.
Mas às vezes há conflitos entre pessoas e animais. Há animais que podem causar danos ao matar gado ou destruir plantações, e também há pessoas que simplesmente matam animais quando podem. Sabemos que isso acontece em Mamirauá. Como lidar com isso?
Você pode reduzir os conflitos, mas não eliminá-lo. Por isso é tão importante que todos na comunidade se beneficiem e trabalhem juntos. Se há pessoas de fora que vêm caçar, os locais têm condições de expulsá-los. Mas também é necessário que o governo faça com que as leis sejam respeitadas. Há ocasiões, como quando há um tigre que come pessoas na vizinhança, não há razão para protegê-lo, pois um animal faz com que as pessoas se voltem contra os tigres. Então, ele deve ser abatido, desde que você atire no tigre certo.
Enfim, depende das circunstâncias. Se há uma fazenda com muito gado e as onças matam alguns, isso sempre chama a atenção. Se as vacas se afogam, ou morrem de doenças ou outro infortúnio ninguém se importa, então os felinos são culpados por perdas econômicas que são pequenas em comparação com as causadas por outros fatores.
Em países como os Estados Unidos e parte da Europa há um movimento de rewilding que busca tornar áreas novamente selvagens e trazer de volta espécies como grandes predadores. Na Europa, estamos vendo lobos e ursos recolonizando ou sendo reintroduzidos em regiões onde foram extintos como Itália, Alemanha, Suíça… Para biólogos dos países em desenvolvimento isso é curioso, por que estamos fazendo o oposto. Vivemos momentos diferentes da mesma história?
Sempre que você protege uma espécie ela aumentará em número e quando isso acontece podem surgir problemas. A maioria destes projetos não pensa com antecedência como proceder quando os problemas surgem e às vezes fazem coisas extraordinariamente estúpidas. Se você quer usar a terra para criar búfalos, como é feito nos Estados Unidos, você pode abater alguns para vender a carne e ganhar dinheiro…
Ted Turner faz isso no estado de Montana, nos EUA.
Isso uma boa ideia. Mas se você tem só uma área pequena, digamos como os ursos-pardos nos Alpes da Europa, e os ursos começam a atacar as vacas grandes e gordas lá em cima… Ok, alguém deve se preparar para pagar compensações ou os animais serão mortos.
Sempre há algum custo.
Certamente.
Você trabalhou em todos os continentes exceto Austrália e Antártica…
“Enormes áreas que mal e mal são habitáveis hoje por serem subdesertos se tornarão desertos. Isso significa que as pessoas terão que se mudar. Teremos enormes migrações de pessoas. Uma das questões críticas que não é aparente na Amazônia é a escassez de água.”
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Bem…. eu já estive na Austrália mas gosto de ir a lugares que foram negligenciados. Austrália tem muitos biólogos trabalhando em diferentes áreas e acho que teria nada a contribuir. Na China, e outros países, não havia um núcleo de biólogos de campo. Eles tinham bons biólogos ocupados com outras coisas. Então eu vou lá, inicio as coisas e tento ajudar até que haja gente suficiente trabalhando. Aí minha atenção se volta para outros lugares. Essa é uma das razões pelas quais trabalhei no Tajiquistão, Afeganistão e Irã. Todos ótimos países que, por alguma razão, não têm muitos biólogo de campo, mas são receptivos.
Qual foi seu projeto no Irã?
Em alguns desses países, como Mongólia e também Irã, eu apareço na porta e digo “aqui estou, o que vocês querem que a gente faça?” (risos). No Irã, eles nos disseram que precisavam trabalhar com o guepardo iraniano. Os últimos guepardos asiáticos vivem lá. Assim, fiz uma série de visitas e ajudei a estabelecer um programa (de conservação para esta espécie,) o qual continua a funcionar com ajuda do Panthera.
Sim, existe uma Iranian Cheetah Society.
Esta é uma sociedade de jovens entusiasmados. É a melhor maneira de trabalhar.
E a situação do guepardo melhorou?
Certamente ele recebe muito mais atenção. É um país grande e muitas áreas nunca haviam sido estudadas para sabermos o que existe ali. Sabemos agora que algumas das áreas-chave no Irã têm recebido atenção, há monitoramento com armadilhas fotográficas, uma fêmea apareceu com dois filhotes em uma delas. Eles parecem estar indo bem.
Alguns destes países podem ser complicados para um cidadão americano trabalhar. Você já teve problemas com pessoas achando que você era um espião?
Ah, você sabe. Os Estados Unidos, por boas razões, não são populares em alguns países. E, infelizmente, eu não tenho dupla cidadania, então, não posso me apresentar como sendo de outro país. Mas, baseado na confiança e com os locais vendo que o seu foco e preocupação verdadeiros estão na vida selvagem, os ecossistemas, etc., descobri que estes países são extremamente hospitaleiros.
Então, funciona a abordagem “confie em mim, eu sou um biólogo”.
“Há 3.000 anos os afegãos já conheciam o suficiente para entender que precisavam cobrir seus canais de irrigação. Isso evita a perda de 1/3 do volume de água por evaporação. Quem é que cobre canais de irrigação hoje em dia?”
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Sim, a menos que você comece a falar de política (risos).
Ah, muito compreensível.
Alguns podem dizer “ele deve ser da CIA porque quer trabalhar nas fronteiras”. Bem, eu trabalho nas fronteiras porque é ali que ainda resta alguma vida selvagem (risos).
Ouvi dizer que querem reintroduzir tigres no Irã.
Certamente pode ser feito se houver presas suficientes e se fizerem a coisa da maneira correta. Grandes felinos são difíceis de reintroduzir porque eles acabam se habituando às pessoas. Então, se você os solta em uma área estranha e eles não estão habituados a caçar por conta própria, eles vão até a casa mais próxima e dizem “ei, há algumas cabras aqui, vamos comer algumas”. E eles acabam mortos. É uma missão difícil. Você precisa fazer isso da maneira correta e estar preparado para fracassos.
Você sempre perderá alguns animais…
Sim, o que significa que você não pode falar em soltar 2 ou 3 animais, o que geneticamente não tem futuro. Assim, se você começa com pelo menos 12 ou 20 animais isso será caro e vai levar tempo.
O que é compreensível.
E há populações humanas em toda parte, a maior parte dos países não tem áreas grandes o suficiente e estas estão cada vez menores.
E como você acha que o mundo será em, digamos, 20 anos.
Me dê um espaço de tempo maior.
Ok, qual sua visão do futuro?
Enormes áreas que mal e mal são habitáveis hoje por serem subdesertos se tornarão desertos. Isso significa que as pessoas terão que se mudar. Teremos enormes migrações de pessoas. Uma das questões críticas que não é aparente na Amazônia é a escassez de água. Rios na maioria dos países estão secando devido ao uso descuidado para irrigação, para cidades que não param de crescer. Então teremos grandes deslocamentos populacionais, teremos grandes conflitos de fronteiras e teremos guerras por água.
É similar ao que estamos vendo hoje no Oriente Médio.
Claro, isso já começou. Se você olha o sudoeste americano, rios como o Colorado secam antes de chegar ao mar. O rio Amarelo também seca na China por causa da irrigação. Você sabe, há 3.000 anos os afegãos já conheciam o suficiente para entender que precisavam cobrir seus canais de irrigação. Isso evita a perda de 1/3 do volume de água por evaporação. Quem é que cobre canais de irrigação hoje em dia? E ainda se queixam por não ter água suficiente. Esse é uma das questões onde não aprendemos com a história.
Como você escolhe os seus trabalhos, nunca sentiu atração por conservação marinha ou criaturas do mar?
Eu não sei o porquê, mas eu não sou atraído por trabalhar na água. Se eu gosto de um habitat ou gostaria de trabalhar em um habitat, sempre consigo encontrar algo com que trabalhar. Se quero trabalhar no Himalaia posso conseguir o dinheiro para estudar leopardos-da-neve porque isso é o que chama mais atenção. Mas uma vez lá, acontece de eu passar mais tempo estudando os animais que o leopardo preda, porque eles também me intrigam. Algumas pessoas passam a vida inteira estudando uma única espécie e conseguem informações boas e sólidas. Bem, eu tenho uma capacidade de atenção curta.
E você passa de um animal para outro.
Eu trabalho bem para responder a questão que quero responder e então tento encontrar alguém que dê continuidade ao trabalho. E vou para onde minha mente me leva.
Esta é uma boa maneira de gerar descendentes acadêmicos.
Isso é essencial e me faz sentir muito bem. Alguns destes, como nos projetos dos pandas, dos tigres, dos leões, ainda continuam sem interrupção depois de décadas, mesmo depois de eu havê-los deixado há muito tempo. Por outro lado eu fui acusado de ir a lugares, conseguir alguma informação e depois ir para outro lugar. Bem, as pessoas fazem aquilo que as atrai.
Você não pode agradar a todos.
Não tente fazer isso. Escolha suas batalhas e continue lutando.
Há alguma coisa que você queira dizer para concluir?
Todos, e quero dizer todos mesmo, devem se preocupar com o meio ambiente e contribuir de alguma maneira. Devemos agir hoje para o amanhã, para nossos netos. Como envolver as pessoas? O que ajuda a conservação nos Estados Unidos são as organizações comunitárias que tentam adquirir terras para que não sejam ocupadas, que tentam limpar rios uma vez por ano, e assim por diante. Novamente, a abordagem comunitária, onde as coisas são feitas conjuntamente, mais do que qualquer coisa, ensina as pessoas sobre aquilo que devem cuidar.
*Fábio Olmos, autor desta entrevista, é biólogo, colunista de ((o))eco e autor do blog Olhar Naturalista |
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Considero que os conservacionistas do mundo fazem parte de um grupo seleto de pessoas; uma elite mesmo – infelizmente – porque eles deveriam ser muitos e comuns; e não um grupo especial. Esse fato mostra um futuro sombrio quando – cada vez mais – não temos como "vivenciar" encontros com a natureza para apreciar o "belo complexo natural demorado" porque o trocamos pelo "espetacular e o simples imediatismo tecnológico". É possível, que um alto nível de frustração social – subconsciente ou não – presente no mundo, possa nos remeter a uma fuga ilusória e efêmera na qual possamos liberar hormônios do prazer em ciclos cada vez mais curtos, numa ilusão utópica; mas, ao menos, confortável e consoladora. Esse descompromisso com um futuro razoavelmente previsível e ecologicamente necessário para todos os seres vivos (ainda que simplificado, mas não exatamente esterilizado), aliado a um modelo básico educacional medíocre – que foge do embate crítico e reflexivo, compromete – em especial – os menos afortunados; contribuindo perigosamente para reações nem sempre amigáveis. A possibilidade de migrações entre continentes – pelas injustiças cometidas em todos os níveis – e as ameaças de escassez de água, tocam em campos cerebrais reptilianos, beirando comportamentos animais irracionais. Essa grave ameaça precisa ser avaliada e discutida profundamente por pessoas de diferentes formações e não pode ser entregue para quem decida alguma coisa somente com olhares imediatas e políticos. Notas de euros ou de dólares não possuem genes. Não se reproduzem por si só. Não podem ser comidas ou bebidas numa situação de desespero. A conservação da natureza – incluindo o homem nela e sendo ela mesmo – deve ser a nossa mais nobre causa existencial, como fizeram nossos antepassados mais primitivos. Uma das regras da natureza é permitir que muitos diferentes possam usar um mesmo território sem que haja sobreposição de interesse idênticos. Caso contrário, algum mecanismo de controle surgirá, independentemente das mudanças climáticas que sempre ocorreram em nossa história geológica. Estamos dando "tiro no pé" e sendo altamente irresponsáveis com as próximas gerações. Viver num mundo do "hoje somente" não estimula esses investimentos de futuro. A roleta está girando. As apostas estão sendo feitas. O dado pode parar a qualquer momento. É um jogo de azar! Muito diferente do caos porque no primeiro alguns ganham muito e outros não ganham nada. No caos – uma imensa brincadeira perigosa – ao final do jogo, ganham todos, conforme suas competências e habilidades. Jamais será um jogo de apenas duas cores e alguns limitados números.