O bloqueio de gastos do governo federal no orçamento de 2022, promovido no final de novembro pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), foi um duro golpe para a ciência brasileira, que já engatinhava há anos com muita dificuldade.
São mais de 14 mil médicos residentes sem bolsas e 100 mil pesquisadores de graduação e pós-graduação que não terão verba garantida para alimentação e despesas básicas. Isso porque para receber suporte financeiro do governo, o bolsista é obrigado a não exercer nenhuma atividade remunerada, dependendo integralmente das bolsas.
A justificativa do governo federal para o “calote natalino” aos pesquisadores foi a necessidade de “adequar o orçamento ao limite do teto de gastos”.
Mesmo em um governo marcado pelo desprezo para com a ciência, a ação foi considerada cruel. A medida provocou revolta em personagens variados, indo do ex-BBB e economista, Gil do Vigor (Gil Nogueira), até José de Almeida Meirelle, reitor da Universidade de Campinas (Unicamp).
“É inadmissível que mais de 100 mil estudantes não recebam suas bolsas! NÃO DÁ MAIS!”, disse Gil em suas redes sociais.
Com mais de 2.540 bolsistas desassistidos, sendo 1.040 no mestrado e 1.500 no doutorado, o reitor da Unicamp classificou a medida como um equívoco completo. “É lamentável que a ciência brasileira, que depende em grande medida de nossos bolsistas de pós-graduação, esteja na iminência de passar por esta situação: a de bolsas não serem pagas”, acrescentou à imprensa o reitor José de Almeida.
No início de dezembro, Jair Bolsonaro reteve R$ 5,7 bilhões do orçamento nacional. “Foram bloqueados recursos para toda despesa de pagamento imediato. O governo chega ao final da mesma maneira que foi o tempo todo. É o menor investimento nos últimos 13 anos. É impossível para os reitores fazer as universidades e institutos da forma como desejamos, tendo inclusão e a assistência estudantil. Os reitores estão fechando as portas. Mas, lamentavelmente, a situação não é emergencial, é o que se vê nos últimos anos, com bolsas que estão congeladas há mais de 10 anos. A situação é grave tanto para o investimento quanto para o custeio de 2023. Isso tem que ser revisto, além do problema emergencial deste ano”, explicou Luiz Cláudio Costa, ex-reitor da Universidade Federal de Viçosa, de Minas Gerais, e membro do grupo de trabalho para a educação da equipe de transição do novo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em coletiva nesta terça-feira (6), em Brasília.
“Qual o risco da educação esse ano? Se não pagar as bolsas se nada for feito, os bolsistas não vão receber nem para honrar os seus compromissos”, alertou Aloizio Mercadante, ex-ministro e coordenador da equipe de transição, durante a coletiva.
Federais da Amazônia no escuro
A retenção das verbas para as instituições de ensino do país chega a mais de R$ 627 milhões. Todas as nove universidades federais da Amazônia Legal não têm dinheiro para pagar a conta de luz e água.
Nota da reitoria da Universidade Federal de Mato Grosso anuncia que o Ministério da Educação (MEC) teria pago apenas 30% do que foi liquidado no mês de novembro, com a promessa de que o restante viria no início do mês de dezembro. Com os últimos bloqueios, a UFMT está com um déficit financeiro para pagamento das despesas liquidadas, a curto prazo, na ordem de R$ 5,2 milhões.
Com R$ 6 milhões a menos em caixa, a reitoria da Universidade Federal do Amazonas também anuncia estar sem condições de funcionamento.
Em nota à imprensa, a UFAM exemplifica a gravidade da situação. “O bloqueio orçamentário imposto pelo Governo Federal no último dia 1º de dezembro, impede que a Universidade consiga arcar com o pagamento de contas de água, luz, telefonia e contratos de serviços de trabalhadores terceirizados, além de bolsas de ensino, pesquisa e extensão para os estudantes e diárias para atividades acadêmicas. Seu impacto é ainda mais complexo para as contas da Universidade se comparados aos cortes anteriores, pois além do bloqueio de recursos a serem empenhados, foram suspensos todos os repasses de recursos financeiros comprometidos com serviços e compras já executados e aptos para pagamento em dezembro de 2022. A Ufam foi afetada por um déficit de cerca de R$ 6.221.630,00 milhões e somado ao corte efetuado em junho, esse comprometimento perfaz uma redução de R$ 13.582.419,02 no orçamento deste ano que, sendo mantida, impactará drasticamente o orçamento de 2023, o qual já está previsto para ser 20% inferior ao de 2022. Neste momento, a Ufam empreende todos os esforços junto ao Ministério da Educação (MEC), com vistas a minimizar os impactos e propor soluções para recomposição do orçamento e liberação dos recursos financeiros.”
A mesma realidade ocorre na Federal do Acre, que teve corte de R$ 2,2 milhões, e em Rondônia, onde o bloqueio chegou a R$ 7,2 milhões do orçamento.
O presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), Ricardo Marcelo Fonseca, e o vice-presidente da entidade, Evandro Soares, se encontraram nesta quarta-feira (7) com o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira para debater a situação.
Sem pesquisa, sem floresta, sem futuro
A falta de condições de sustento imposta aos que tentam se dedicar à pesquisa científica no Brasil terá consequências a longo e médio prazo também na área ambiental. Sem pesquisa, a tão sonhada “transição para uma nova economia verde” fica cada vez mais distante. A garantia de proteção à biodiversidade e o combate ao desmatamento também.
“Estamos em uma situação muito dramática. Tem uma geração que vai pagar essa conta. Não é hoje, ou amanhã é a longo prazo. Tudo depende da educação, desde a formação de engenheiros, biólogos e professores”, disse Aloizio Mercadante na coletiva de quarta-feira (7).
A ação do presidente no apagar das luzes de seu governo contraria, inclusive, as suas promessas de campanha eleitoral. O termo descarbonização da economia esteve na moda durante as Eleições 2022, sendo um discurso quase hegemônico entre os presidenciáveis.
Mas, foram justamente as instituições que podem gestar caminhos para esse novo modelo, as universidades e institutos federais, os mais afetados pelos cortes de Bolsonaro de 01 de dezembro.
Esperança para 2023
A PEC 32/2022 da Transição, aprovada pelo Senado Federal na noite de quarta-feira (7), com 64 votos a favor e 16 contrários, acabou tornando-se a última esperança para garantir o começo da reestruturação do ensino e pesquisa no Brasil.
A medida deve liberar R$ 145 bilhões para o novo governo, fora do teto de gastos, pelo prazo de dois anos. A PEC, a princípio, foi idealizada para garantir recursos para a área social, mas deve abrir novas janelas de gastos para saúde e educação também.
Infelizmente, tudo indica que até a posse do novo presidente, os pesquisadores nacionais terão que enfrentar um Natal sem recurso algum.
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