Reportagens

Isca sagrada

O boto vermelho, um dos principais símbolos da natureza amazônica e do imaginário caboclo, está sendo pescado de forma predatória para servir de isca para peixe consumido na Colômbia

Vandré Fonseca ·
9 de janeiro de 2007 · 18 anos atrás

As famílias ribeirinhas sempre preferiram manter os botos vermelhos distantes. Na mitologia amazônica, o animal é um tabu, feitiça mulheres e é culpado pela maioria das jovens que aparecem grávidas sem casamento. A lenda alimentou o respeito dos pescadores e ajudou a preservar o animal, mas o dinheiro fácil está desmistificando o animal. Hoje botos são procurados na Amazônia para servirem de atração para turistas e de isca para capturar piracatinga, ou urubu d´água.

A piracatinga é um peixe de pele, que se alimenta de animais mortos nos rios. Nunca fez parte do cardápio do amazônida brasileiro, mas é apreciado na Colômbia. A pesca do peixe é hoje um rentável negócio para pescadores da região e alimenta a cruel indústria de caça aos botos nos rios da Amazônia.

“É dinheiro fácil”, segundo a doutora em Mamíferos Aquáticos, Vera da Silva, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e do Projeto Boto. Um boto morto pode ser vendido por até R$ 100,00 e o quilo da piracatinga, entre R$ 0,40 e R$ 1,00.

A Amazônica é o único lugar no mundo onde as populações de golfinhos de rio ainda estão preservadas. “Mas em alguns pontos, principalmente no Alto Solimões entre Tefé e Fonte Boa (municípios do interior do Amazonas), já existem problemas”, conta Vera.

Vera Silva e sua equipe monitoram, há 12 anos, botos que vivem na Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, no Amazonas. Eles acompanham quase 450 animais marcados e identificados um a um. Os sensos que realizam todos os meses demonstram que a população dos animais que vivem no entorno da reserva começou a cair há cerca de seis anos. “Coincidiu como fenômeno da captura do jacaré e do boto para a pesca da piracatinga”, conta a cientista.

Casos de animais mortos por estragarem a rede de pescadores sempre aconteceram, mas o que hoje ela encontra nos rios da região é uma carnificina. No trabalho em campo, ela tem recolhido carcaças e animais feridos gravemente por pescadores. Na sala da pesquisadora, no Inpa em Manaus, estão pontas de arpões encontrados em botos.

Ela relata outros casos de violência. Um boto foi encontrado todo retalhado, com as nadadeiras cortadas para servir de isca. “Encontramos um boto com a corda amarrada na cauda. A região já estava necrosada”, conta. “Em outro, o nome do pescador que capturou o animal foi raspada na pele do boto, para identificar a quem pertencia”.

Com a água ao nível do peito, sem roupas de proteção e com a carcaça de um boto vermelho presa entre os joelhos, o pescador pega com as mãos piracatingas com mais de 20 centímetros que se aproximam. O trabalho é arriscado. Atrás da carne chegam também piranhas, que podem ferir com mordidas o pescador. Ele joga as piracatingas para dentro da caixa de madeira, de onde será levada para a Colômbia. “Não era um peixe comercial até que os colombianos começaram a encomendar estes peixes aos frigoríficos, de Manaus a Tabatinga, e ensinar os pescadores a usar botos e jacarés como isca”, conta Vera da Silva.

Hoje, existem comunidades no Alto Solimões, principalmente no município de Fonte Boa (AM), que praticamente vivem da pesca da piracatinga, usando botos ou jacarés mortos como isca. Em entrevistas com ribeirinhos, Vera conversou com um pescador que dizia ter matado mais de cem botos. “Nunca na história da Amazônia, o boto esteve tão ameaçado pela caça”, lamenta Vera Silva.

Vermelho e Tucuxi

Na Amazônia, vivem duas espécies de botos ou golfinhos. O boto vermelho (Inia geoffrensis), que devido à tradução mal feita do nome em inglês (pink dolphin) acabou sendo conhecido como boto cor-de-rosa, e o tucuxi (Sotalia fluviatilis), um dos menores botos do mundo. O vermelho é o maior — os machos da espécie chegam a 2,5 metros e mais de 180 quilos — e faz parte de uma família quase exclusivamente fluvial. Apenas um integrante é encontrado em água salgada, a franciscana (Pontoporia blainvillei), vive em estuários do Rio da Prata ao litoral do Sudeste Brasileiro. O tucuxi é parente próximo do boto cinza marinho (Sotalia guianensis), mas para se adaptar aos rios amazônicos diminuiu de tamanho, mede cerca de 1,5 metro quando adulto.

Apesar de ser chamada de boto vermelho, na maior parte da vida a Inia geofrensis é cinza. A cor rosada surge com a despigmentação da pele. “Só machos adultos bem velhos ficam totalmente com esta cor”, explica Vera da Silva. Ele provavelmente é descendente de botos que chegaram a Amazônia há milhares de anos, antes do levantamento dos Andes, quando os rios da região ainda corriam para o oeste.

É um animal adaptado para a caça em igapós e igarapés, mas não tem a mesma velocidade dos golfinhos do mar. Uma das diferenças entre botos de rio e de mar está nas sete vértebras da coluna cervical. “No boto vermelho, as vértebras são independentes, o que permite a eles mexerem o pescoço para os lados, como nós”, conta a pesquisadora. No caso dos botos marinhos, estas vértebras são rígidas, o que permite maiores velocidades e saltos. O tucuxi, um boto marinho que diminuiu de tamanho para se adaptar à vida na Amazônia, também tem a coluna cervical rígida e é comum vê-los saltando nos grandes rios da região.

No planeta, existem outras duas espécies de rio, ou pelo menos existiam, da mesma família do boto vermelho, a Platanistoidea. Uma ainda pode ser encontrada em rios da Índia e Paquistão, a Platanista sp, ameaçada pela poluição e represamento dos rios. A segunda está tecnicamente extinta, o baiji (Lipotes vexillifer), que era encontrado no Rio Yangtzé na China.

“Uma expedição internacional de 20 dias tentou encontrar o baiji, mas não conseguiu”, conta Vera da Silva. “E isto é muito ruim, ainda mais se a gente lembrar que o rio Yangtze era semelhante ao Solimões, com mata, e agora esta espécie está extinta pela destruição de habitat e pela pesca predatória”, alerta Vera Silva. O último exemplar da espécie foi visto em 2004.

Apesar da população de botos na Amazônia ainda ser grande, a perda de animais está sendo alta. A espécie vive cerca de 35 anos e demora para se reproduzir. A fêmea só atinge a maturidade sexual aos sete ou oito anos. A gestação demora entre 11 e 12 meses e só nasce um filhote por vez. Outro nascimento só depois que esse for desmamado, e isto demora dois anos. Só com três anos de idade, o filho se afasta da mãe.

O macho demora mais tempo para começar a se reproduzir, porque precisa ficar forte o suficiente para enfrentar a concorrência e conquistar uma fêmea. “Se você tirar um macho ou fêmea que ainda não se reproduziu, a perda para a população é ainda mais rápida. Em décadas, pode chegar a níveis críticos”, destaca a bióloga.

Outra ameaça são o contato de turistas com botos, cada vez mais direto. Se para o visitante o pior que pode acontecer é uma mordida, para os botos também existem implicações. “Estão colocando as pessoas em contato com os animais sem avaliação prévia”, destaca Vera da Silva. Um dos problemas segundo a especialista é a alimentação. Na brincadeira com os mamíferos aquáticos, muitas vezes, os turistas dão peixes congelados, pouco adequados aos animais que deveriam comer alimento fresco.

Apesar das ressalvas, o boto é considerado pela pesquisadora um ótimo recurso turístico, que pode inclusive ajudar na preservação do animal. “A idéia é excelente, o boto deve ser visto como um animal típico e único da Amazônia, como um recurso turístico, mas existem leis que protegem estes animais, como a Lei 9605 e a 5197”, diz a bióloga.

As histórias de boto já não assustam o homem e isto tem duas implicações, de acordo com a pesquisadora Vera da Silva. A primeira é a magia, os visitantes podem ficar encantados e ajudar a preservar os golfinhos da Amazônia. A outra pode ser uma maldição: transformar o boto em um simples pedaço de carne, para alimentar os urubus d´água. “Estão usando um animal de grande importância ecológica e turística para um uso pobre e desqualificado. Para ser isca!”, lamenta.

* O jornalista Vandré Fonseca vive na Amazônia há dez anos. Morou primeiro em Roraima, agora está em Manaus.

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