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Sacudindo um gigante 2

Daniel e Walter, responsáveis pelo Parque Nacional da Bocaina, elegem prioridades para reverter três décadas de agressões a um patrimônio ecológico e histórico.

Eduardo Pegurier ·
13 de dezembro de 2004 · 20 anos atrás

Num sábado chuvoso, O Eco teve uma longa conversa com o chefe do Parque Nacional da Serra da Bocaina, Daniel Toffoli, 32 anos, e Walter Behr, 41, analista ambiental do Ibama e um dos fundadores da Pró-Bocaina, ONG criada em 1993 para pressionar pela conservação do parque. Imersos em problemas administrativos do dia-a-dia, os dois fizeram uma pausa para falar de como pretendem tirar o parque da situação de quase abandono em que se encontra, preservando seu patrimônio ecológico e histórico.

O encontro ocorreu na Casa da Bocaina, ex-sede da Pró-Bocaina, atualmente transformada em pousada. Sentados à mesa de jantar e cercados de verde, fomos brindados pela visita de várias das 200 espécies de pássaros que habitam somente essa região, uma área adjacente ao parque nacional. Entre outros, tangarás, arapongas, japós, jacus, tucanos, sabiás, arapaçus, gaviões, andorinhas, beija-flores e pica-paus circulavam à nossa volta, pousando ocasionalmente nas árvores próximas, como se percebessem que o assunto à mesa era o futuro deles.

Daniel é geógrafo formado na PUC-Rio e começou a carreira de ambientalista na Baía da Ilha Grande, em áreas de proteção ambiental do Estado do Rio. Trabalhou dez anos nessa região de Mata Atlântica, da qual faz parte o Parque da Bocaina. Acabou saindo do sistema estadual e ingressando por concurso no Ibama, em 2002. Sua primeira incumbência foi gerir a Reserva Biológica de Abufari, no coração do Amazonas. Retornou um ano depois, com o convite de administrar o Parque Nacional da Serra da Bocaina.

Walter é administrador de empresas formado pela FGV de São Paulo. Envolveu-se com causas ambientais após estudar na Alemanha na década de 80. Lá, teve contato com o movimento verde e suas manifestações antinucleares. De volta, abraçou a causa unindo-se ao Greenpeace, que acabava de ser criado no Brasil, contra o programa nuclear e as usinas de Angra dos Reis. Foi acampando em Mambucaba, vila próxima a Angra, para organizar passeatas e manifestações, que conheceu a área da Bocaina. Acabou mudando de causa e mergulhando no objetivo de salvar o Parque Nacional.

Trabalho é o que não falta. Criado em fevereiro de 1971, só nos últimos anos o Parque da Bocaina começa a querer sair do papel. Durante todo esse tempo, acumulou problemas de várias ordens. A começar porque não foi totalmente implantado, ou seja, não se consolidou como propriedade do governo federal toda a área do parque. Apenas 26 mil de um total de 104 mil hectares foram comprados. O restante não tem sequer levantamento fundiário. Parte deve pertencer a governos estaduais e parte é de proprietários particulares que deverão ser indenizados. Mas ninguém sabe exatamente o que é de quem.

O orçamento anual do parque gira na casa dos R$ 40 mil, mal e mal suficiente para manter a pequena infra-estrutura existente. Para dificultar, a sede fica fora do parque, na cidade de São José do Barreiro (SP), distante uma hora e meia da entrada, com acesso pela estrada mais precária. Fora Daniel e Walter, o Parque da Bocaina conta com 9 funcionários do Ibama. Embora eles sejam técnicos ambientais e administrativos, passam a maior parte do tempo longe de suas funções, desviados para tarefas de vigilância. São obrigados até mesmo a pernoitar na sede para defender equipamentos essenciais como computadores, arquivos e carros da administração.

A penúria financeira do parque permite que ele seja invadido por posseiros e tenha favelizadas as suas encostas atlânticas próximas a Angra e Paraty. Os próprios prefeitos desses municípios vizinhos endossam ou fazem vista grossa às invasões. Afinal, bicho não vota. Madeireiros, caçadores e palmiteiros extraem quase sempre impunes seus recursos. As várias estradas e acessos que cruzam o parque servem até ao tráfico de drogas. Às altas horas da noite, circular em alguns caminhos não é recomendável.

Daniel e Walter sabem que não há tempo a perder. São rápidos em enumerar as prioridades para melhorar a situação. Uma das primeiras providências, segundo Daniel, é trazer a sede para dentro do parque e criar sub-sedes nos seus pontos estratégicos. Uma delas deveria ficar na área do município de Paraty, onde está 40% do parque nacional. Na saída da Trilha do Ouro, em Mambucaba (RJ), também é preciso algum tipo de controle. É lá que termina uma caminhada muito popular.

Igualmente importante será retirar invasores e posseiros das áreas que já pertencem ao governo. “Essa é a prioridade número zero. Recuperar a posse integral dos 26 mil hectares que já são da União”, diz Daniel. “É a lição de casa básica. Controlar aquilo que já é seu”, concorda Walter. Por falta de recursos para protegê-las, são justamente essas áreas, as já compradas pelo parque, as mais invadidas. Não são só humanos que precisam ser retirados. É preciso evitar que gado paste no parque, um problema crescente.

Outro objetivo importante é recolocar os técnicos em meio ambiente e administração nas suas funções verdadeiras e terceirizar a vigilância. É um desperdício de talento, por falta de alternativa, colocar técnicos em atividades que não precisam do seu treinamento. Isso fere inclusive normas federais de administração de parques.

Por fim, consideram fundamental conter os caçadores que ameaçam a riquíssima fauna local, até porque se sabe muito pouco sobre ela. Muitas espécies podem ser extintas antes mesmo de reconhecidas como comuns daquela área. “Eu me preocupo mais com a caça dentro do parque do que com os palmiteiros. Uma vez extinta uma espécie, a reintrodução é dificílima. Quando não por dificuldades práticas ecológicas, pela burocracia em se obter licença do Ibama para isso”, diz Daniel.

Se os responsáveis pelo Parque Nacional da Serra da Bocaina conseguirem atingir essas metas iniciais, poderão se dar o direito de sonhar mais alto. O parque é cenário importante do início da história do país. Cruzaram a Serra do Mar os primeiros bandeirantes que se embrenharam território adentro, matando e escravizando índios como os goitacazes, que viviam na região. Suas trilhas foram usadas para o transporte de ouro legítimo e contrabandeado de Minas Gerais para os portos litorâneos. Essa história, dizem eles, precisa ser conhecida.

A Trilha do Ouro, um caminho alternativo usado primeiro por índios e mais tarde por contrabandistas, é hoje um dos passeios favoritos dos ecoturistas que visitam a Bocaina. Sua travessia, da serra até a costa, leva três dias e atrai em média 500 andarilhos por mês. São, em geral, turistas do Rio e São Paulo, que arcam com despesas grandes de transporte, estadia e equipamentos, e poderiam muito bem pagar um ingresso substancial para gozar de atrações incomparáveis como essas. O Parque da Bocaina tem a característica rara de ir até o mar. Várias praias dentro dele, como as de Trindade, são muito procuradas por veranistas urbanos. Cobrar por amenidades como o uso de camping pode ser uma boa parte da solução de financiamento do parque.

Quanto tempo tudo isso levará, já que o parque existe no papel há 31 anos e até agora praticamente nada foi feito? Eles respondem que querem estabelecer metas para os próximos cinco anos. Depois, acham que devem ser avaliados pela performance nesse período. Mas qual é a duração do mandato de um chefe de parque? “Isso não existe. Os dois chefes anteriores duraram, respectivamente, 2 e 26 anos. Chefe de parque é um cargo de confiança, muitas vezes escolhido por prestígio político”, responde Daniel. “Na Argentina é diferente”, conta Walter, que está terminando um livro sobre parques latino-americanos com gestões bem-sucedidas. “Lá existe uma carreira estruturada para administradores de parque e uma escola para a função reconhecida internacionalmente”, explica. “Não posso reclamar, temos tido apoio do Ibama para melhorar e tirar este parque da estagnação”, diz Daniel, para completar, com bom humor: “Mas tecnicamente, posso ser demitido amanhã. Aliás, amanhã não, porque domingo não tem edição do Diário Oficial”.

  • Eduardo Pegurier

    Mestre em Economia, é professor da PUC-Rio e conselheiro de ((o))eco. Faz fé que podemos ser prósperos, justos e proteger a biodiversidade.

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