Reportagens

Os “alemão” são contra

Colonos da pequena Corupá (SC) firmaram resistência à construção de uma hidrelétrica que vai sumir com sua cachoeira. Não há royaltie que os convença.

Renan Antunes de Oliveira ·
8 de abril de 2005 · 20 anos atrás

Dez dos 11 últimos prefeitos de Corupá são “alemão”, como diz o pessoal por lá. A cidade poderia se encaixar bem às margens do Reno, mas está bem no Alto Vale catarinense. É limpa, ordeira, quase militarizada na produção de banana – mulheres vestidas em roupas surradas trabalham na roça ombro a ombro com os homens, colhendo cachos enormes de caturra. Nos grotões, os descendentes dos colonos alemães enfrentam a dureza sem queixas, até parecem desinteressados da raça humana e despreocupados com o futuro do planeta.

Vai daí que quando um grupo de empresários esclarecidos botou o olho gordo nas 14 cachoeiras que irrigam os bananais da Serra do Mar, calculando o quanto de energia elétrica elas poderiam produzir, ninguém se preocupou de contar os planos pros “alemão” das colônias.

Durante cinco anos, empresários, seus técnicos e alguns políticos inteirados da coisa fizeram cálculos e projetos, deixando os colonos na mais completa ignorância. O plano deles é barrar os rios Bruaca e Vermelho no ponto latitude 26º 25’ 01” Sul, longitude 49º 19’ 02” Oeste, pra erguer uma mini-usina. Ela poderá gerar 15 megawatts, quatro vezes mais do que consome a cidadezinha de 8 mil habitantes. Dá para vender tudo para a Eletrobrás, pagar royalties para a prefeitura e embolsar um bom lucro.

Na surdina, os homens criaram a empresa Corupá Energia Ltda., legalmente registrada na Junta Comercial. Com licença ambiental do governo catarinense e alvará da prefeitura de Corupá no bolso, pediram e ganharam do governo federal financiamento com juros de pai pra filho. No final do ano passado estavam prontos para começar a obra.

Só faltava avisar os “alemão” ignorantes da colônia.

Esta tarefa não foi cumprida antes talvez porque seria como o rato colocar o sino no pescoço do gato: alguém teria que ir dizer nas colônias que queriam tomar-lhes a cachoeira da Bruaca. Mesmo sem GPS, a turma do lugar sabe onde ela fica. É uma queda com 96 metros de altura, escondida no mato, só a vê quem chega perto. É um tesouro escondido. E se o paraíso for verde, aquilo é um pedaço dele.

Foi na hora de dizer pra turma que a coisa embananou. Em dezembro, quando os primeiros técnicos começaram a medir trilhas nos morros e fotografar bananais, os colonos ficaram inquietos. O zum zum zum desceu as picadas, nos dialetos da roça. Viajou de carroça e bicicleta, circulou nas rodas de schnaps dos armazéns, foi ouvido nas igrejas.

Quando o papo chegou na cidade veio com mais força do que a cachoeira e em bom português: alguém tá querendo represar a água da Bruaca!

Aqueles colonos aparentemente alienados começaram a se perguntar como ficariam suas lavouras, como ficariam as terras, como ficaria o futuro de seus filhos. Mostraram-se preocupados com a ecologia, com o ecoturismo, com cada folha de bananeira, com cada gota d´água de suas preciosas cachoeiras – no papel as terras onde elas estão têm proprietário, mas todos ali se sentem um pouco donos delas.

Quando os ecologistas botaram a boca no trombone, os colonos já estavam montados num porco. E a gritaria deles teve eco na cidade: “Eu jamais vou apoiar. Deixem nossa Bruaca como está”, reclama o operário João Lener. Ele pára no meio da rua principal, de bacia na mão, para dar seu discurso: “Quando um colono derruba um pé de palmito pra comer, a polícia vem prender. Agora querem subir no alto do morro pra destruir tudo de uma vez só ninguém faz nada. Nós não vamos deixar”, ele diz, abana com a bacia e volta ao trabalho.

A reação de Lener poderia ser a bravata de um homem só. Mas um ibopezinho informal na cidade e na roça, feito na tarde de 6 de abril, deu 18 votos contra, um a favor e uma abstenção. Na porta da Modas Sula estão Luciana e Eliana: “Não!”. Não dá nem pra perguntar as razões – elas gritam que “não” e “não se discute”! Seu Abraão, frentista do posto Esso, responde com o polegar para baixo.

Na farmácia, na padaria, nos Correios, só dá contra. Na prefeitura, a mais diplomática é Kida Solomon, chefe de gabinete do prefeito, ainda indecisa, como requer seu cargo. É que o próprio prefeito, dizem, está em cima do muro – o homem prudentemente não deu seu voto. A secretária alegou falta de tempo, mas o provável é que ele esteja esperando sentir a direção dos ventos.

A presidente da Câmara de Vereadores, Bernadete Hillbrecht, já sentiu de onde ele sopra e radicalizou contra. Ela era secretária de Educação na gestão anterior, cujo prefeito deu o alvará, e não sabia da obra, o que a deixou indignada: “Quiseram fazer tudo sem contar nada pra gente. As coisas mudaram, o povo está consciente, sem ele ninguém conseguirá nada”, a senhora parece até que ainda está no palanque.

Bernadete vai propor legislação específica proibindo a construção da usina, a exemplo do que fez a vizinha Joinville. Embora o tema seja competência da União, as duas cidades podem se beneficiar de uma brecha na lei para regular edificações em áreas de proteção permanente. No mínimo levaria a questão à Justiça por uma década, inviabilizando tudo.

No sábado, 2 de abril, um engenheiro da Eletrosul participou de uma reunião com moradores e avisou: “Com a usina a cachoeira vai secar”. Se a situação já estava difícil enquanto o povo sabia só da metade da história, imagine-se depois de descobrir que sua querida Bruaca vai sumir. Os ecoxiitas da cidade distribuíram uma foto da cachoeira do rio Piraí, de Joinville, seco depois de represado em 1998, como macabra advertência do que acontecerá.

E o clima na cidade esquentou, até porque a colonada das barrancas do rio e das encostas dos morros não é tão desinformada como parecia. Dona Laurita e a filha Marlene estão preocupadas com a questão progresso x vantagens econômicas. Querem discutir a economia de mercado.

Enquanto colhem cacho por cacho, manifestam suas dúvidas por causa da importância da energia. Ao saberem que a represa secaria sua lavoura: “Ah, isso muda tudo”. São mais dois votos contra.

Os empresários esclarecidos pisaram na bola quando abriram a boca para defender seu peixe. Primeiro alegaram que a cidade ficaria às escuras. Recuaram quando ficou óbvio que estando no miolo de uma região industrializada como Joinville, Jaraguá e Blumenau, Corupá sempre teria uma linha de abastecimento passando por suas casas.

Então mudaram de argumento, atacando o ecoturismo de “chinelão”. Demonstraram na ponta do lápis que as 20 mil pessoas que freqüentam o lugar por ano gastam em média apenas 20 reais por dia para passar o dia ali, em família, desfrutando de ar puro, da água limpa, da natureza intocada – uma insignificância se comparada com a rentabilidade dos royalties que a empresa pagaria à Prefeitura pela energia gerada.

O argumento foi como dar um tiro no pé. O povão não gostou de ver o pessoal desfazendo seu cantinho e seu lazer: “Então deixa tudo como está”, diz seu Konrado, um sujeito de dedos tão grossos que pareciam destroncados.

O único voto a favor veio do ferreiro Marcos Welten. Ele estava batendo ferro quente em sua forja a carvão. “É o progresso”, e mais não disse, voltando às marretadas na bigorna.

O povo já sabia que a cachoeira da Bruaca não é nenhuma Itaipu em tamanho, nem as Cataratas do Iguaçu em beleza, mas é tudo o que ele tem. Ela se desdobra em várias quedas por 30 quilômetros até a cidadezinha bananeira – e toda criança do pedaço já passeou nela.

É preciso muito fôlego para caminhar toda trilha das 14 cachoeiras. Ela começa no pé da Serra do Mar com a queda do Suspiro. A segunda é a Banheira, uma das preferidas dos visitantes. Os nomes caprichosos se sucedem: Tombo, Palmito, Surpresa. O passeio dura três horas.

É garantido: quem sobe, na volta é outro bicho. Mais natureba, menos royalties.

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