Reportagens

Malvada carne

Festival de Cinema Ambiental de Goiás exibe três filmes sobre criação de gado. Um deles apela para imagens chocantes, os outros dois apostam na poética.

Cássia Fernandes ·
7 de junho de 2005 · 20 anos atrás

Se após o VII Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (FICA), realizado na cidade histórica de Goiás entre os dias 31 de maio e 5 de junho, os crimes e as práticas agressivas contra o meio ambiente não sofrerem uma redução significativa, o evento ao menos serviu para criar uma dezena de novos vegetarianos.

A responsabilidade será sobretudo do filme A carne é fraca, de Denise Gonçalves. O média-metragem, com 52 minutos de duração, não recebeu nenhum prêmio, mas atraiu a atenção e chocou o público ao mostrar como, apesar das sofisticadas técnicas para abate nos frigoríficos-modelo, que prometem morte com o mínimo de dor, os animais ainda são vítimas de muitas crueldades.

O jornalista Washington Novaes, que gravou um depoimento para o documentário sobre os impactos ambientais do consumo de carne no mundo, depois de ver imagens, no ano passado, deixou de comer carne por seis meses. Logo após a exibição do vídeo, não eram poucos os que, na saída do Cine Teatro São Joaquim, lotado durante a sessão, prometiam se tornar vegetarianos. “Hoje tomei a decisão de não comer mais carne. Eu até já preparei as carnes para churrasco, mas vinha pensando em parar havia muito tempo. Agora estou convencido”, observou o engenheiro Marcos Ferreira.

A carne é fraca foi produzido pelo Instituto Nina Rosa, uma ong que incentiva a proteção aos animais e o vegetarianismo. A própria Nina Rosa Jacob, que preside o Instituto e aparece várias vezes ao longo do documentário, expõe os objetivos da produção: “Muitas pessoas contribuem com a indústria da crueldade, que implica em danos sérios à saúde humana e ao meio ambiente, sem ter conhecimento disso. Nossa intenção é informar para que o cidadão possa fazer escolhas conscientes”.

O vídeo, feito em quatro idiomas – português, francês, inglês e espanhol – para ser distribuído a 400 organizações em todo o mundo, é para estômagos fortes. Mostra imagens cruéis como o manejo violento dos frangos nas granjas, onde funcionários separam com brutalidade os pintinhos que apresentam alguma má-formação daqueles que servirão para consumo, descartando-os de imediato para que sejam triturados e transformados em ração. Nessas mesmas granjas, todas as aves têm os bicos cortados para se evitar a prática do canibalismo, que se torna comum nos espaços exíguos em que ficam confinadas. O vídeo também consegue chocar o público quando apresenta os métodos utilizados para a produção do “baby beef”. Bezerros recém-nascidos são acorrentados para que não se movam e não desenvolvam músculos, e produzam assim uma carne bastante macia.

Além da crueldade, são apresentados todos os impactos ambientais imagináveis associados à pecuária. Eles vão do grande consumo de água à devastação de florestas para a formação de pastagens e até a emissão de gás metano pelos bois, que contribui muito para o efeito estufa. Segundo Washington Novaes, a produção mundial de carnes praticamente dobrou em menos de dez anos.

Talvez a produção tenha perdido pontos com os jurados por seu caráter panfletário. “Em alguns momentos, o vídeo é meio piegas e procura impor que você deve ser vegetariano”, comentou Luiz Gravatá, crítico do jornal O Globo presente ao Festival.

O documentário não foi, no entanto, o único filme do Festival a promover reflexões sobre o consumo de carne. Boi, um curta-metragem de Edu Felistoque e Nereu Cordeiro, conta, de forma poética, como o boi, depois de anos servindo ao homem no trabalho, puxando arado, no carro de boi e até mesmo como animal de estimação, acaba sendo abatido numa feira ou num açougue quando começa o período de seca. “Mesmo depois de sua morte, o boi continua servindo ao homem como alimento do imaginário, na forma do boi-bumbá, do boi-mamão”, observa Felistoque.

Ainda mais poético é Aboio, que recebeu menção honrosa do júri por sua “experimentação estilística com referências ao cinema novo, a Glauber Rocha, a Nelson Pereira dos Santos e à literatura de Guimarães Rosa”. O longa mostra a comunicação peculiar dos vaqueiros do sertão de Minas, Bahia e Pernambuco por meio do aboio, uma melodia entoada para conduzir o gado até as pastagens, e que está desaparecendo com a modernização das técnicas de criação de gado.

Embora não aborde diretamente o tema do consumo da carne ou do abate dos animais, a presença do filme no Festival provocou a nostalgia de um tempo em que o vaqueiro sabia o nome de cada bezerro, cada vaca. Contrastou assim com as práticas cruéis mostradas em A carne é fraca. “Há coisas que a gente não vai ver nunca mais, mas tem sempre o direito de lembrar”, diz um dos vaqueiros em Aboio, referindo-se a uma época em que se conduziam grandes rebanhos pelo sertão. Cenas bonitas, auxiliadas por uma fotografia caprichada, que quase nos levam a acreditar que as práticas da pecuária extensiva são mais recomendáveis do que a crueldade do confinamento. Assunto delicado. Criar o bicho solto pode render boi feliz e carne macia, mas quem abre o espaço necessário são florestas que vão ao chão.

E se você acha que o meio ambiente não tem muito a ver com boi-bumbá ou com a vida dos tocadores de gado, pode se preparar para as próximas edições do FICA. Segundo o presidente do júri deste ano, o jornalista André Trigueiro, há uma tendência de tornar o Festival cada vez menos ambiental, abrindo espaço para temas sociais e culturais. O que ele lamenta, uma vez que este é o único festival do gênero no país e um dos poucos no mundo.

Em tempo: o grande vencedor do Festival deste ano é foi o filme Morte lenta, da francesa Sylvie Deleule, sobre os males à saúde causados pelo amianto. Certamente um grave problema ambiental, mas com muito mais ênfase nos aspectos social e trabalhista.


* Cássia Fernandes é jornalista e romancista. Assina uma coluna no jornal O Popular, de Goiânia.

Leia também

Salada Verde
12 de dezembro de 2024

Garimpo já ocupa quase 14 mil hectares em Unidades de Conservação na Amazônia

Em 60 dias, atividade devastou o equivalente a 462 campos de futebol em áreas protegidas da Amazônia, mostra monitoramento do Greenpeace Brasil

Análises
12 de dezembro de 2024

As vitórias do azarão: reviravoltas na conservação do periquito cara-suja

O cara-suja, que um dia foi considerado um caso quase perdido, hoje inspira a corrida por um futuro mais promissor também para outras espécies ameaçadas

Notícias
12 de dezembro de 2024

Organizações lançam manifesto em defesa da Moratória da Soja

Documento, assinado por 66 organizações, alerta para a importância do acordo para enfrentamento da crise climática e de biodiversidade

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.