Reportagens

Criação amadora abastece o contrabando de aves

Relatório do governo afirma que a atividade não contribui para a conservação de espécies. ONG quer moratória nacional para registros

Aldem Bourscheit ·
6 de fevereiro de 2023 · 2 anos atrás

Um relatório do governo mostra que dados falsos registrados por criadores amadores facilitam o tráfico de aves silvestres no país. O balanço afirma que a atividade não contribui para a conservação de espécies nativas. Entidade civil quer uma moratória nacional à prática, legalizada em 1972.

Pássaros nativos mantidos em gaiolas em casas no país todo precisam de certificados e de anilhas presas nas pernas atestando que não vieram da natureza. Trocas e doação de aves, mortes, fugas e roubos devem ser registrados pelos próprios criadores em sistemas federal ou de estados.

Contudo, dados falsos inseridos por parte dos criadores no país dão margem a crimes como o comércio ilegal e a retirada de aves da natureza. A conclusão é do Ibama, que analisou dados nacionais sobre a manutenção amadora de pássaros, entre 2004 e 2020. 

Os registros saltaram 187% no período. Desde então, crescem 7% ao ano. Dos 444 mil criadores hoje registrados no país, apenas 254 mil (57%) têm licenças em dia. Conforme a autarquia, há muitos registros inativos e sonegadores de taxas anuais, definidas pelos estados.  Não pode haver movimentação de aves nesses casos.

Declarar a morte, fuga ou roubo de aves abre vagas nos viveiros para animais vindos de criações ilegais ou da natureza. O ardil também é usado quando há menos animais enjaulados do que registrados, diz Raquel Sabaini, coordenadora-geral de Gestão e Monitoramento do Uso da Fauna e da Biodiversidade Aquática no Ibama.

“Os criadores fazem muito ‘rolo’. Vendem, trocam [aves] e não inserem as informações nos sistemas. Daí tentam ‘limpar o plantel’ registrando dados falsos”, relata. O embuste mais usado é a da fuga, pois boletins de ocorrência são exigidos para roubos e anilhas são recolhidas quando as aves morrem. 

“Caso o alto índice de fugas declaradas fosse verdadeiro [1,9 milhão de 2004 a 2020] haveria o risco de bioinvasões [ocupações de ambientes por espécie estranhas ao mesmo] e demonstraria falta de segurança e cuidado ao manter animais em cativeiro”, completa Sabaini.

Criadores igualmente costumam inflar os números de nascimentos para estocar anilhas – com fabricação e distribuição monitoradas pelos órgãos ambientais – para marcar animais traficados e tentar escapar da fiscalização.

Outras conclusões do relatório reforçam que viveiros amadores não ajudam a conservar espécies nativas. As aves mais visadas pela atividade são justamente as mais traficadas, como curió, trinca-ferro e coleirinho. Isso não deveria ocorrer se a criação legal reduzisse a pressão sobre os animais.

A análise constatou muito mais machos do que fêmeas nos cativeiros. O natural seria plantéis com metade de cada gênero. Por trás do desequilíbrio está o grande interesse de criadores pelos machos, que cantam, e são na grande maioria retirados da natureza, destaca o Ibama.

Além disso, operações realizadas ao longo dos anos por órgãos ambientais e policiais flagraram irregularidades em até 90% dos criadouros fiscalizados, sobretudo em estados do Sudeste como Minas Gerais e São Paulo. A região concentra os cativeiros amadores no país. 

Coordenador da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (RENCTAS), Dener Giovanini avalia que a criação não comercial pode ajudar a salvar espécies se tiver critérios científicos e vínculo com projetos de conservação. Todavia, ela atende hoje outros interesses, diz o especialista.

“Os animais servem hoje principalmente para disputas de canto e para manter lucros de criadores e das associações de classe. Já vi aves campeãs de canto serem vendidas por até R$ 100 mil. O mercado é grande, pouco controlado e serve de fachada para o tráfico”, destaca.

A Região Sudeste concentra a criação amadora de aves no país. Mapa: Gabriela Güllich/O Eco/Diagnóstico de Delitos Ambientais 2019 – Ibama.

Crime cercado

Os ilícitos na criação de aves crescem desde 2011, quando uma lei federal permitiu o registro estadual de viveiros. Alagoas, Espírito Santo, Maranhão, Paraná, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Santa Catarina têm leis próprias para a atividade. “Isso fragilizou a fiscalização sobre o setor”, destaca Dener Giovanini, da RENCTAS. 

Dados federais apontam que 3,6 milhões de aves estão presas em viveiros amadores no Brasil. Cerca de 140 mil anilhas e 60 mil pássaros são apreendidos a cada ano no país por fiscais ambientais e polícias. “Eram animais que seriam esquentados”, diz o biólogo Roberto Borges, analista ambiental do Ibama.

Diante dos crimes que circundam o setor, a RENCTAS propôs em 2017 uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente barrando novos registros amadores e estimulando sua migração à criação comercial, mais controlada.

O texto passou por comissões técnicas, mas não chegou ao plenário porque o ex-ministro Ricardo Salles cassou os mandatos de ONGs no Conselho, em maio de 2019. “A proposta aguarda uma chance de ser analisada e votada”, diz Giovanini.

Propostas similares surgem em municípios. Um projeto de lei proibindo a criação doméstica de aves nativas e exóticas tramita desde 2021 na Câmara Municipal de Porto Alegre (RS). A sugestão é do vereador Leonel Radde (PT).

Enquanto restrições não são aprovadas, é possível reduzir as brechas usadas por criminosos. Múltiplos criadores numa mesma família sugerem que animais são alvo de trocas e comércio ilegais. Cada criador pode ter no máximo 100 animais. As transferências anuais são limitadas a 35 aves. 

Este ano devem ser adotados bancos genéticos de espécimes, para garantir que as crias venham de aves já registradas, e tamanhos mínimos dos cativeiros, para que as aves possam ao menos fazer voos curtos. 

“Apertamos o cerco e melhoramos as normatizações identificando as fraudes e pontos críticos de controle”, relata Raquel Sabaini, coordenadora-geral de Gestão e Monitoramento do Uso da Fauna e da Biodiversidade Aquática no Ibama.

Quem fraudar informações sobre a criação em cativeiro pode ser autuado e responder na Justiça por “falsidade ideológica”. Se o delito for associado a maus tratos e tráfico, as penas começam com multa e de 6 meses a um ano de prisão.

O bicudo-verdadeiro é uma das espécies ameaçadas pela criação amadora no Brasil. Foto: Hector Bottai.

Objetos animados

Casos de maus tratos se multiplicam na criação amadora legalizada ou criminosa de aves silvestres. No fim de janeiro, duas dezenas de pássaros foram confiscadas em viveiros ilegais no município de Moita Bonita, no interior do Sergipe. Os criadores não tinham autorização para mantê-los. 

No mesmo período, coleirinhos, trinca-ferros e curiós foram apreendidos em casas em Samambaia, um bairro do Distrito Federal. No início daquele mês, tucanos e outras espécies foram resgatadas também em condições precárias em Viamão, na região metropolitana de Porto Alegre (RS).

Outras agressões ocorrem com espécies cantoras. Esperando melhores atuações em campeonatos, criadores prendem animais em caixas ou até em carros para ouvir “aves campeãs” por horas a fio. Pássaros de “canto ruim” são trocados, vendidos ou até sacrificados. 

“Há uma série de agressões e descarte de aves por trás da aparente tranquilidade das competições de canto. Isso gera uma busca permanente de aves na natureza”, relata Dener Giovanini, da RENCTAS. 

O bicudo (Sporophila maximiliani), o pintassilgo-do-nordeste (Spinus yarrellii) e o cardeal-amarelo (Gubernatrix cristata) vivem livres em raros locais e enfrentam alto risco de extinção. Assim, praticamente todos os animais traficados vêm de cativeiros ilegais, afirma o Ibama.

A raiz de tantos crimes é uma portaria de 1972 que autorizou a criação amadora de aves, conta Roberto Borges, do Ibama. “Isso criou a situação esdrúxula de manter animais presos e transferir aves de um criador a outro por direito adquirido. Daí pra frente foi o caos”, reclama o especialista no combate a crimes contra a fauna.

A confederação e a federação nacionais de criadores amadores de pássaros nativos não atenderam aos nossos pedidos de entrevista até o fechamento da reportagem.

Aves localizadas em condições precárias no interior de Sergipe, em janeiro deste ano. Foto: Divulgação/FanF1
  • Aldem Bourscheit

    Jornalista cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Selvagem, Ciência, Agron...

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Comentários 4

  1. REINALDO GOMES SANTANA diz:

    Normal a “reportagem ” ter viés, mas distorcer dados e fazer graves acusações baseada numa análise parcial e tendenciosa de dados e mau jornalismo. A maioria dos criadores amadoriatas é séria e comprometida com a preservação. Falta legislação e fiscalização séria e treinada para coibir os crimes e punir os traficantes disfarçados de criadores.


  2. Moisés ramos diz:

    Melhor esses políticos se preocuparem com habilitação com a Cracolândia ao invés de querer acabar com a criação de pássaros que sempre existiu gera emprego tem crianças que tem um passarinho vcs vão tomar então acaba com TD gato /cachorro/ peixes em aquário/cavalo todos foram selvagens tirado da natureza!


  3. Maykon jonatha vieira diz:

    Já tive pássaros silvestres em gaiolas, pensando bem é uma atitude horrível do ser humano. Devemos corrigir nossos erros e ser pessoas melhores! Deus criou tudo lindo e maravinhoso e estragamos tudo. Como seria legal ver esses pássaros silvestres cantando na nossa janela ou na árvore do nosso quintal, claro que soltos como foram criados para ser, fica aqui a reflexão! Matéria muito bem feita, tanto na pessoa do jornalista como do servidor o IBAMA que forneceu as informações!


  4. Rinaldo diz:

    Esse relatório é de cunho pessoal e não profissional, não explica tudo, só o que interessa. 1°. Tem habitat Natural? Se tem explica. 2° . Como será feito para soltar(adaptações). 3° . O Relatório vai na contramão, quanto mais se cria em ambiente doméstico menos se retira do pouco que resta da natureza. 4°. Quantos animais serão sacrificados? 5°. Quem lucra com o fim da criação doméstica? 5°. Como será feito o abate dos animais exóticos, já que não podem ser soltos. Quanto aos danos na economia e postos de trabalho, nem comento, será devastador.