Restrito à parte de um rio no Rio Grande do Sul, um sapinho afastou de forma inédita o projeto de uma hidrelétrica, mas pode sucumbir devido ao avanço do agronegócio e à crise climática. Pesquisadores, ONGs e comunidade uniram forças para aumentar suas chances de sobrevivência.
Reconhecido como espécie única apenas em 2006, o sapinho-admirável-de-barriga-vermelha (Melanophryniscus admirabilis) vive apenas num trecho de no máximo 2 km de extensão no rio Forqueta, nos municípios de Arvorezinha e Soledade, numa área de Mata Atlântica preservada da Serra gaúcha.
Sua população é estimada entre mil e 2 mil indivíduos e não está abrigada numa unidade de conservação. A espécie pode ter ocupado outras áreas no passado ou viver em pontos diferentes do país. Entretanto, pesquisadores até agora não a encontraram em nenhum outro local. Não é por acaso.
Sua morada serrana tem as condições ecológicas e de clima ajustadas à sua reprodução e alimentação. O sapinho desova apenas em poças deixadas pelas chuvas e cheias no leito de pedra do rio Forqueta. Com temperatura ideal, ali os girinos nascem e se desenvolvem.
“Com uma ocorrência tão pequena, a espécie é ainda mais suscetível a riscos de extinção”, ressalta Michelle Abadie de Vasconcellos, doutora em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e bolsista do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Répteis e Anfíbios (RAN).
A cientista também integra um grupo com instituições públicas, privadas, de ensino e ongs dedicado há mais de uma década a pesquisas e ações para manter a espécie. O time monitora anualmente as condições do animal e de seu habitat.
Listado como em perigo crítico de extinção desde 2014, o sapinho interrompeu o projeto de uma pequena central hidrelétrica (PCH). A barragem mudaria o fluxo das águas do rio Forqueta e poderia dar cabo da espécie, de uma só vez ou aos poucos, complicando sua reprodução.
“A obra provavelmente o extinguiria, já que o sapinho depende muito do regime natural do rio para sobreviver”, reforça Alexandre Krob, coordenador Técnico e de Políticas Públicas do Instituto Curicaca. Foi a primeira vez na história brasileira que um anfíbio barrou uma obra desse tipo.
Denúncias de ongs e cientistas ao Ministério Público fizeram o governo gaúcho cancelar as licenças da PCH Perau de Janeiro, em 2010. O caso melhorou as diretrizes estaduais para o licenciamento de hidrelétricas na bacia dos rios Taquari e Antas, da qual faz parte o rio Forqueta.
Riscos vizinhos
No entorno da morada do anfíbio predominam pequenas propriedades rurais com boas condições ecológicas. Todavia, o desmate e culturas mantidas com agrotóxicos, como o fumo e sobretudo a soja, se expandem nos municípios de Arvorezinha e Soledade, mostra a plataforma MapBiomas.
Sua área somada de florestas e campos naturais caiu de 59.750 ha para 49.410 ha de 1985 a 2021 – uma redução de 17%. Entretanto, no período a parcela com soja passou de 3 mil ha para 70 mil ha, um salto de 2.200%. As lavouras substituem sobretudo pastos para gado e cultivos como o da erva-mate.
Alertas para desmatamento monitorados pelo Instituto Curicaca apontam que, de 2019 a 2022, ao menos 70 hectares foram derrubados na área de ocorrência do raro anfíbio, de forma ilegal ou com autorizações municipais.
Solos sem vegetação podem levar terra e contaminantes ao rio Forqueta, dando cabo do sapinho-admirável. “Até araucárias [igualmente ameaçadas de extinção] são cortadas”, pontua Krob, do Curicaca.
A deriva aérea ou a contaminação direta do rio por agrotóxicos de lavouras de fumo e soja seria fatal para a única população do anfíbio. Os girinos são ainda mais sensíveis a esses venenos e outros químicos. Outro risco são alterações do clima, do nível local ao global. “Mudanças mais frequentes ou mais potentes de temperatura e chuvas podem inviabilizar a vida da espécie”, explica Michelle Vasconcelos, da UFRGS. Complicando o cenário, até agora não foi localizada nenhuma outra área com condições naturais similares para um possível deslocamento da espécie.
Caminho do meio
Atentos ao crescimento descontrolado do agronegócio convencional e ao clima mutante, pesquisadores e ongs apostam em cultivos mais amigáveis, como o da erva-mate junto à vegetação natural preservada, o ecoturismo e a educação ambiental.
Conforme Alexandre Krob, do Instituto Curicaca, cresce a cada ano o número de famílias da região interessadas em deixar uma produção em lavouras com agrotóxicos e esquemas econômicos engessados por grandes empresas de insumos agrícolas.
“Ampliar a produção de erva-mate em sistemas agroflorestais valoriza a Mata Atlântica em pé e ajuda a conservar o sapinho-admirável”, destaca o ativista.
Gerenciando uma área arrendada com camping e cabanas junto à morada do sapinho, Graziela Siva conta que o turismo cresceu com a inauguração do Cristo Protetor de Encantado, a 80 km do Perau de Janeiro. A estátua de 43,5 metros atrai romeiros e curiosos desde abril do ano passado.
“Grupos visitando a região passam também por aqui. Algumas pessoas nos procuram já sabendo do sapinho, outras descobrem no local. Estudantes e pesquisadores vêm até do Exterior interessados na espécie”, conta Siva.
Isso trouxe mais regras e sinalização para evitar danos ao animal. Trilhas foram alteradas para evitar o pisoteio em áreas de reprodução. “Não é possível estimular a observação do anfíbio com uma população tão restrita”, avalia Krob, do Instituto Curicaca.
Conforme Michelle Vasconcelos, da UFRGS, há casos isolados de pessoas que recolhem exemplares dos belos sapinhos para tentar mantê-los como animais de estimação ou para soltá-los em poças e lagoas de outros municípios.
Ao mesmo tempo, vizinhos da morada da espécie ajudam a gerar mais e melhores informações sobre seu comportamento. Isso converge em artigos científicos e ações para manter o sapinho. “Isso ajuda as pessoas a entender e ter orgulho de uma espécie tão exclusiva”, diz a pesquisadora.
Pintas e parentes
Adultos do sapinho da serra gaúcha medem até 4 cm. Mesmo assim, é um dos maiores entre seus parentes no Brasil e países vizinhos, como Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai. Cada “admirável” é identificado pelos distintos padrões de pintas na barriga, como se fossem suas impressões digitais.
“As cerca de 30 espécies de Melanophryniscus têm comportamentos e características parecidas. São pequenas, restritas a locais muito específicos e com reprodução ligada a condições ambientais”, explica Michelle Abadie de Vasconcellos, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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