A tragédia ocorrida no litoral norte paulista está longe de ser um evento isolado. Encontra eco, por exemplo, no verão de 2022, quando 241 pessoas morreram também em decorrência de fortes chuvas na cidade de Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro. Nos dois casos, as principais populações atingidas vivem em áreas consideradas de risco, em morros e encostas.
Culpar a natureza, porém, além de uma estratégia para isenção de responsabilidades, fortalece o paradigma que afasta os recursos naturais de sua função como parte da solução para evitar novos desastres. “Embora esta seja uma questão complexa, o primeiro passo é justamente realizar uma mudança de paradigma, entendendo a natureza não como um mal a ser enfrentado, mas como parte da solução”, indica Henrique Evers, gerente de desenvolvimento urbano do WRI Brasil.
Como explicou ao ((o)) eco o coordenador-geral do Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), o climatologista e meteorologista José Marengo, embora os extremos climáticos possam ser observados em regiões diversas, as suas consequências tendem a atingir de maneira drástica as populações mais socialmente vulneráveis, por conta de suas condições de vida e moradia. O cientista também indica o papel das políticas públicas nesse contexto.
“É claro que não é possível colocar as cidades abaixo e construir novas, mas há iniciativas de mitigação que podem ser efetivamente preventivas, como o adensamento florestal em algumas regiões ou o investimento em saneamento básico, já que o solo degradado pelo esgoto não tratado favorece deslizamentos. É um absurdo o que aconteceu em Petrópolis [em 2021], de pessoas morando em casas que já tinham sido consideradas como pertencentes a áreas de risco em desastres anteriores. Depois que os desastres acontecem, governantes de diferentes esferas ficam apontando dedo uns para os outros e, por fim, acabam colocando a culpa na chuva, como se eles não tivessem responsabilidades”, lembrou Marengo.
Soluções híbridas
Henrique Evers explica que as Soluções Baseadas na Natureza (SBN) ainda são pouco consideradas no espectro das políticas públicas de mitigação às mudanças climáticas. Multifuncionais, elas exercem tanto o papel de favorecer o equilíbrio climático dos territórios onde são aplicadas quanto promover a prevenção a enchentes e deslizamentos.
O adensamento florestal citado por José Marengo é uma das soluções que, ao contribuírem diretamente para a drenagem do solo, possibilitam resultados positivos no enfrentamento a inundações.
Já a questão dos deslizamentos é mais delicada e solicita um conjunto de escolhas cuidadosas. Como principais indicações, Evers aponta a revegetação de áreas degradadas em conjunto com o tratamento de morros e encostas. As soluções hídricas, focadas sobretudo na drenagem e nos projetos de saneamento, podem ser atreladas às chamadas soluções cinzas, com a construção de estruturas de contenção, e também compõem estratégias importantes a serem ponderadas.
Diante da realidade das cidades que deverão enfrentar cada vez com mais frequência os extremos climáticos, seria importante também, no olhar do especialista, tratar a questão habitacional como atrelada às SBN. “Políticas habitacionais aliadas às soluções baseadas na natureza podem indicar um caminho muito importante na prevenção a desastres, já que a ocupação de áreas de risco feita principalmente por parte de populações de renda mais baixa agrava os desastres, com perda de vidas” explica Evers. No total, 65 pessoas morreram em decorrência das fortes chuvas ocorridas no litoral norte de São Paulo no último dia 19.
As desigualdades sociais precisam ser observadas neste contexto a partir de políticas que permitam de forma ampla o acesso à terra em áreas seguras e saudavelmente integradas com os ecossistemas locais. “Em um cenário ideal, um caminho seria pensar em políticas habitacionais e de reurbanização com essas soluções híbridas, que incluam as SBN”, finaliza o especialista.
Prevalência cinza
Questionada sobre o papel das políticas ambientais e das soluções baseadas na natureza e sua relação com os desastres ocorridos no litoral norte de São Paulo, a Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística (SEMIL) informou em nota que “por ser indissociável, a agenda ambiental está sendo desenvolvida de forma transversal com os outros temas da pasta”.
Neste sentido, dentre as medidas já adotadas pela nova gestão está a continuidade do Plano de Ação Climática (PAC), cujo processo de Consulta Pública ocorreu no último ano. O documento, que passa por revisão e atualização, abrange de forma ampla e integrada todas as ações que ampliam a capacidade de adaptação dos sistemas humanos e naturais aos impactos das mudanças no clima, além de ter como meta tornar o estado mais resiliente por meio de soluções baseadas na natureza. Não foi especificada, porém, nenhuma SBN específica.
A nota informa também que as iniciativas do governo paulista visam consolidar os objetivos pactuados na COP27, ao propor a redução de eventuais injustiças climáticas, e a eliminação do racismo ambiental com ações de mitigação nos territórios onde vivem comunidades tradicionais e povos originários e que a nova gestão também elabora um programa específico para essa população.
A concepção dos projetos contará com instrumentos de planejamento territorial, a exemplo do Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE), que tem como objetivo orientar o desenvolvimento ambiental, social e econômico do estado, a partir da análise de potencialidades, vulnerabilidades naturais e socioeconômicas das regiões.
Por fim, a SEMIL prepara medidas de governança em relação ao clima para estruturar ações integradas entre Estado, municípios e sociedade civil. Em seus discursos sobre os desastres, porém, o governador Tarcísio de Freitas não deu ênfase às políticas ambientais ou às soluções baseadas na natureza, voltando o seu foco de forma restrita às áreas de habitação e infraestrutura – uma visão centrada nas soluções cinzas.
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Fico imaginando de onde vem essa crença que a SMA (atual SEMIL) está dando conta do recado e dos desafios. Tem nada disso não.