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O retratista de gigantes

Enquanto o país acaba com as florestas de araucária, Gernot Berger fotografa as últimas árvores centenárias de uma espécie que marcou a paisagem do Brasil.

29 de outubro de 2004 · 20 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Ambicioso mesmo é o programa ambiental do fotógrafo catarinense Gernot Berger. Ele tem 68 anos de idade. E a intenção de fazer sozinho a enciclopédia da araucária. Quando fala em enciclopédia, refere-se a uma coleção de livros sobre essas árvores, em 27 volumes “e três idiomas”. Ou seja: tudo sobre o personagem que ele começou a perseguir em 1958. De lá para cá, à medida que as florestas de araucária iam desaparecendo rapidamente no sul do Brasil, cresceu sem parar sua coleção de relíquias . É uma corrida contra o tempo. Mas, quase meio século depois, ele ainda não sabe até onde o projeto vai levá-lo.

Só sabe que vai em frente. Berger passa a vida entre Florianópolis, onde mora, Joinville, onde tem um laboratório fotográfico, e o mato, onde visita araucárias. Varre o interior com o tripé de carbono, a câmera panorâmica, muita paciência para aturar mosquitos e a obstinação dos viajantes que no século XIX fotografaram pela primeira vez o interior do Brasil. Procura os patriarcas e as matriarcas dessa família ilustre, que começou a povoar o continente quando os dinossauros ainda caminhavam pelo planeta. Fotografa de preferência pinheiros centenários. Melhor ainda quando eles são muitas vezes centenários. E os retrata como criaturas singulares que, desterradas de suas florestas originais pelas madeireiras, sobrevivem em beiras de cerca, fundos de pasto e grotas inacessíveis na Serra do Mar.

A maioria dessas árvores hoje tem dono. Muitas posam, com seus troncos enormes e suas rugas monumentais, junto aos atuais proprietários. São freqüentemente protagoniostas solitários ao lado de famílias numerosas. Em certos grupos rurais, entram até os cavalos e os cachorros. Suas raízes dividem com os figurantes o primeiro plano. Mas, para não deixar dúvidas sobre quem é quem naquelas fotos, feitas com uma câmera panorâmica, as imagens se desdobram para cima, enquadrando lá no alto os galhos das araucárias contra o céu.

Berger descobriu por conta própria, no sul do Brasil, o desvio que na Inglaterra levou o historiador irlandês Thomas Pakenham a fazer dois livros que não se parecem com nenhum outro. São álbuns fotográficos de árvores notáveis. E já na primeira linha do primeiro livro – “Meetings with remarkable trees” – Pakenham declara que sua obra não é convencional. A fórmula que usou para falar de árvores “deve pouco à botânica”, para começo de conversa. Nomes científicos, no livro de Pakenham, vêm atrás, muito atrás de critérios como a “forte personalidade” de cada uma das 60 árvores qwue posaram para ele. Preferiu arrumá-las num panteão vegetal, onde cabem, por exemplo, categorias como “Sagradas” ou “Fantasias”.

Mas Pakenham é um aristocrata inglês, Descende de um barão que já andava plantando carvalhos na Irlanda em 1745. Carvalhos que, por sinal, aparecem ainda de pé no livro. Para um aristocrata inglês como ele, a excentricidade é um dom natural, se não for um privilégio hereditário. E Berger, que até a semana passada nunca tinha ouvido sequer falar de Pakenham, só se meteu nessa empreitada, numa idade em que a maioria das pessoas não faz planos nem de aposentadoria, porque ainda não está convencido de que é velho. “Sou jovem há muito tempo”, diz ele.

Ele tem duplo título de pioneiro. Há 28 anos, fundou com o pai a cidade de Tunápolis, em Santa Catarina. E há 46 anos, “precisamente no dia 6 de setembro de 1958, às nove da noite”, tirou do tanque o primeiro filme Ektachrome “revelado no sul do Brasil”. No fim dos anos 60, foi contratado pelo governo de Santa Catarina para levantar, com a máquina fotográfica, o potencial turístico do estado. “Cheguei a ter dez mil imagens de homens do campo naquela época”, ele conta. Acabou convencido de que não dava para separar a história daquelas populações tradicionais da história das araucárias.

Berger selecionou pelo menos 2.500 fotografias de araucárias. Mas são as árvores velhas e raras, algumas “com cerca 350 anos e troncos de um metro e meio de diâmetro na altura do peito”, o filé da coleção. Achá-las é um problema. Fotografá-las, uma odisséia. Elas se espalham por três estados. Não constam de guias. Nem sempre estão em áreas públicas ou são fáceis de visitar “atrás das pirambeiras”. Uma ou outra já foi exposta nas Feiras do Vinho em Lajes e na sede do Ibama em Curitiba. Mas há um estoque de imagens inéditas, guardado para a enciclopédia.

Por que começar logo com uma enciclopédia? “Porque com o tempo fui descobrindo que a araucária é assunto que não acaba mais”, Berger responde. Mas tinha que ser em três idiomas? “Sem uma tradução em espanhol, ficariam de fora os argentinos, uruguaios e outros vizinhos, que também têm araucárias. E, sem versão em inglês, é muito difícil vender um livro caro como este”. E quando ele sai? “Nisso ainda não pensei. Tenho mais o que fazer”, ele diz. Por exemplo, procurar araucárias em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, onde ele e sua Noblex ainda nem começaram a estudar as poses dos últimos gigantes.

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