Análises

Portão do Inferno: emergência ou conveniência?

Escolha do retaludamento exclui comparação com ponte estaiada, de menor impacto ambiental e social. Intenção de duplicação está nas entrelinhas e população se mobiliza

Andreia Fanzeres ·
5 de agosto de 2024

Enquanto a Secretaria de Estado de Infraestrutura do Estado de Mato Grosso (Sinfra) protocola à toque de caixa documentos buscando cumprir as condicionantes estabelecidas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) ao processo de licenciamento que autoriza o retaludamento do Portão do Inferno, dentro do Parque Nacional de Chapada dos Guimarães, a população assiste incrédula ao sucesso da manobra do governo do estado, graças ao instituto de uma conveniente emergência.

Se entre novembro de 2023 e janeiro deste ano a tônica era de terrorismo à população para justificar interdições diurnas e um esquema de pare-e-siga que deixou os moradores de Chapada dos Guimarães à própria sorte, até agora a emergência está só no papel. Na prática, a abertura temporária da estrada durante o Festival de Inverno mostrou que a tese funciona como um engodo, uma carta branca usada para tentar realizar aquilo que há mais de 15 anos o estado tenta fazer e que foi verbalizado pelo conselheiro-presidente do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso, Sergio Ricardo, quando em entrevista ao RDNews afirmou que “a novela do Portão do Inferno já acabou. Vai haver duplicação do trevo do Manso até Chapada dos Guimarães, são projetos que já estão aprovados”.

Sob motivo de que a avaliação da situação de risco geológico no Portão do Inferno é tecnicamente complexa, a decretação da situação de emergência “em razão de desastre” pelo governo de Mato Grosso (Decreto 615/2023) foi, convenientemente, aceita sem questionamentos. Mas existem estudos que discordam da dita catástrofe iminente e que não foram sequer considerados pela Sinfra, nem pelo Ibama, como o relatório técnico “Quedas de blocos e procedimentos de segurança na MT-251 entre a Salgadeira e a curva da Mata Fria”, encomendado pela Prefeitura Municipal de Chapada dos Guimarães e realizado pela Universidade Federal de Mato Grosso, em 2024.

O estado de emergência, que a população não consegue ver nem entender, também é desculpa para que problemas no licenciamento sejam minimizados. No Parecer Técnico nº 4/2024-CGLin/Dilic, por exemplo, que autoriza a supressão de vegetação no Portão do Inferno, o Ibama afirma que “conquanto a presente análise tenha apontado algumas deficiências do estudo para caracterização da vegetação a ser suprimida, entende-se que, diante do caráter emergencial das obras de retaludamento voltadas à segurança dos usuários da rodovia e da manifestação favorável do ICMBio sobre os estudos ora analisados e a supressão pleiteada, essas deficiências não representam óbice (…)”. 

Em sua manifestação no processo, o ICMBio resgata antecedentes da intenção de duplicação da estrada, lembrando que por força de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal em 2010, o governo estadual se viu obrigado a elaborar um Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) apresentando alternativas locacionais e tecnológicas específicas para os trechos críticos do Portão do Inferno. Em 2017, foram realizadas audiências públicas sobre a duplicação da estrada em cima daqueles estudos. E o projeto, por não ser considerado viável, não prosperou. Em novembro de 2023, a Sinfra publicou um relatório técnico indicando a construção de túneis para contornar a situação de risco identificada, com base na proposta de duplicação da rodovia MT-251 no local, com valores variando de 228 milhões a 1,96 bilhão de reais, sem prazo de execução e sem análise de impactos sobre o parque nacional.

Omissão de informação

Salta aos olhos que em todo o processo de licenciamento ambiental, entre estudos submetidos pelo órgão interessado e pareceres técnicos, tão pouca atenção tenha sido dispensada a duas informações cruciais: quais são impactos socioeconômicos previstos em decorrência da intervenção e o que vai acontecer com a estrada atual durante as obras. Isto é, como a população de Chapada dos Guimarães, turistas, comerciantes, estudantes, pacientes em tratamento e trabalhadores vão fazer para acessar a capital do estado? O direito à mobilidade foi tratado em recomendação do Ministério Público Estadual, até agora sem resposta e sem discussão pública e transparente. Por conta disso, os moradores organizaram uma petição pelo direito de ir e vir que, em uma semana, reuniu mais de 1500 assinaturas. Será que estão esperando que as obras sejam iniciadas para, enfim, discutir essa questão?

Embora o Parecer Técnico nº 2/2024-CGLin/Dilic do Ibama, que fundamentou a emissão da licença de instalação, tenha sugerido “atenção especial à temática” da comunicação social, não se sabe quando, como nem por quanto tempo a MT-251 ficará bloqueada, tampouco as alternativas para a população. Muito menos discute-se a viabilidade de outras alternativas tomando-se como critério o menor impacto às pessoas. 

De acordo com o este documento, obtido graças à Lei de Acesso à Informação, a Sinfra inicialmente apresentou as soluções de retaludamento, falso túnel, redes de contenção e barreiras dinâmicas, túnel e ponte estaiada, reconhecendo que esta última é “uma solução de baixo impacto ambiental, que não interfere no trânsito do atual traçado da rodovia” e que “pode ser construída de tal sorte que se torne mais que uma passagem de veículos, mas um belvedere para apreciação de cenários”, acrescentando ainda que “seria construída sobre o despenhadeiro, ancorada dentro do maciço distante das escarpas” e “qualquer bloco que se desprenda acima ou abaixo do atual leito da estrada não interfere no funcionamento da ponte”. Todas as demais, segundo a Sinfra, “exigirão a instalação de sistemas de alerta e prevenção de acidentes, com a instrumentação das encostas, criação de parâmetros de interrupção de trânsito, sinalização local e outras funcionalidades típicas desse tipo sistema, conforme previsto na lei da defesa civil”.

Em resposta ao pedido de complementações feito pelo Ibama, que avaliou não existir justificativa nem critérios para escolha do retaludamento após a apresentação dos primeiros estudos, a Sinfra tratou de quatro alternativas, excluindo justamente a de menor impacto, a ponte estaiada. Nessa hora, o Ibama desistiu de questionar e mandou seguir o baile. “O estudo justifica que a decisão pela indicação do retaludamento ocorreu devido a disponibilidade e expertise de mão de obra, principalmente no tempo de execução sendo a menor delas, gerando assim um ganho social relevante e custo final da execução”, diz o parecer do Ibama. Como sabemos, Mauro Mendes tinha mesmo disponibilidade e expertise, pois desde abril já havia contratado, sem licitação, a empresa ligada ao seu ex-secretário da Casa Civil, Mauro Carvalho Júnior para o serviço.  Afinal, estamos numa “emergência”.

*Andreia Fanzeres é membro do Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad) e do Observatório Socioambiental de Mato Grosso (ObservaMT).

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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