Reportagens

Por que o Brasil recicla somente um quarto de sucata ferrosa e a cadeia opera na ociosidade?

O uso de mais matéria-prima virgem pelas siderúrgicas, o baixo valor pago aos catadores e processadores, além da dupla tributação são fatores que explicam o índice pífio de reciclagem

Elizabeth Oliveira ·
6 de agosto de 2024

O cenário da sucata ferrosa não poderia ser diferente no país do contrassenso que atravessa o universo da reciclagem, expresso no baixo índice de reaproveitamento da maioria dos materiais que poderiam voltar à cadeia produtiva, mas seguem sendo desperdiçados por descarte inadequado ou pela ocupação desnecessária de espaços nos aterros sanitários. O setor siderúrgico tem incorporado somente cerca de 25% dessa matéria-prima na produção de aço bruto, enquanto o índice de ociosidade nas empresas processadoras gira em torno de 40%. Como sinal de que as contas não fecham para esse segmento, o Brasil dobrou as exportações de sucata ferrosa entre 2018 e 2023, passando de 356.123 toneladas para 799.994 toneladas em vendas externas no período.   

Em 2022, de acordo com estatísticas do Instituto Aço Brasil, o país produziu 34 milhões de toneladas de aço bruto e incorporou 8,9 milhões de toneladas de sucata ferrosa nesse processo. Em 2023, a produção caiu para 32 milhões de toneladas, o que proporcionalmente também levou à redução do reaproveitamento de sucata ferrosa para 7,7 milhões de toneladas. Em ambos os casos, a proporção de uso desse material reciclável foi de aproximadamente 25% pelo setor siderúrgico. Mas essa tendência de baixa reciclabilidade pela indústria de aço nacional não tem sido pontual. 

De acordo com análises do Sindicato do Comércio Atacadista de Sucata Ferrosa e Não Ferrosa do Estado de São Paulo (Sindinesfa), em estudo setorial publicado em 2022, após uma tendência de aumento no consumo de sucata metálica nas aciarias entre 2005 e 2013, essa proporção na produção de aço bruto apresentou quedas sistemáticas até 2017. E após ter ficado estável em 2018, nos anos de 2019 e 2020 o reaproveitamento foi ainda menor que o de 2016. “Isso mostra uma tendência de se utilizar menos sucata por tonelada de aço produzida nacionalmente, já notada desde o estudo de 2018”, informa o documento. A publicação também menciona como o Brasil tem tomado um direcionamento contrário em relação a outros países que estão incorporando mais esse tipo de matéria-prima nas suas indústrias siderúrgicas.

Entre gargalos e greenwashing, os inúmeros desafios da reciclagem no país

As estimativas apontadas por Clineu Alvarenga, presidente do Instituto Nacional da Reciclagem (Inesfa), são de que existam 5 milhões de pessoas que atuam com reciclagem de materiais diversos no Brasil. Isso envolve catadores, depósitos, intermediários, processadores e transportadores. “Se derem condições, essa cadeia dá conta de toda a reciclagem do país”, afirma. Como exemplo, menciona que os processadores de sucata de ferro representam um dos segmentos que mais se desenvolveram nos últimos 70 anos, conseguindo na atualidade contribuir para que todos os tipos de materiais ferrosos sejam reciclados.

 “Sendo cem por cento reciclável, infinitamente, o aço é uma coisa fantástica. Hoje é lata e amanhã é trilho de trem”, observa. Alvarenga acrescenta que esse material precisa ser mais bem valorizado na cadeia produtiva também pelo seu papel na descarbonização. Isso porque, cada tonelada de aço que contém sucata ferrosa reduz em cerca de 70% as emissões de gases de efeito estufa do setor. Ele destaca que a  reciclagem precisa ser incentivada para gerar repercussões em uma cadeia de grande importância ambiental e socioeconômica e defende que os materiais recicláveis também precisam ser valorizados pela indústria brasileira em geral. 

Entretanto, analisa que assim como ocorre em outros segmentos, com os preços mais baixos de matérias-primas virgens, essa tem sido uma opção para a maioria das grandes fabricantes no país, não sendo diferente no caso da sucata ferrosa. Com isso, analisa que se amplia a demanda pela exploração de minérios e cresce o consumo de água e energia, o que sobrecarrega a natureza, além de resultar em aumento de emissões de carbono e outros gases de efeito estufa.  O especialista considera que quando as empresas adotam esse caminho estão reforçando um posicionamento duvidoso em relação ao discurso sobre sustentabilidade, caracterizado pela prática de greenwashing que representa uma busca pela lavagem de imagem perante aos consumidores e à sociedade em geral com retóricas evasivas. 

“A falta de visão é de gestores e de políticos também, enquanto o planeta está cobrando uma mudança de postura de todos”, opina. Um questionamento levantado pelo entrevistado se refere à falta de engajamento das bancadas ambientalistas no Congresso, durante a regulamentação da Reforma Tributária, recentemente aprovada. Dessa forma, não houve  um diferencial em termos de tributação para os materiais recicláveis que serão tributados em 26,5%. “Os recicláveis entraram na vala comum de todos os produtos, por quê?”, questiona. “Se já temos lagos e rios cheios de materiais que poderiam ser reciclados, a tendência é disso piorar”, alerta.

Por outro lado, o presidente do Inesfa destaca que existem fatores macroeconômicos que se refletem em toda a cadeia produtiva da reciclagem. Dentre os gargalos, menciona a dupla tributação para produtos que incorporam materiais recicláveis, o baixo valor pago aos catadores e processadores, sem contar as inúmeras lacunas que envolvem a coleta seletiva no país. 

Em termos de preços, Alvarenga informa que o quilo de sucata ferrosa pós-consumo pago pelas indústrias de transformação às recicladoras gira em torno de R$ 1,00. Já as aparas pré-consumo, sem impurezas, valem até R$ 1,50 por quilo. Mas ele argumenta que enquanto esses valores foram puxados para baixo no pós-pandemia, os custos operacionais que envolvem energia, transporte, combustível e pagamento de pessoal, entre outros, se elevaram, o que contribuiu para que muitas empresas de reciclagem tenham quebrado nos últimos anos. E ressalta que na base da cadeia, os catadores recebem no máximo R$ 0,50, por quilo desse material coletado. Por isso, também estão enfrentando uma grave crise social. “Os catadores que prestam um serviço ambiental fundamental à sociedade são ainda muito menosprezados”, opina.

O especialista exemplifica que as empresas processadoras que se mantêm no mercado estão trabalhando com 60% da capacidade instalada. Elas seguem o ritmo das siderúrgicas que também operam nessa margem, frente aos baixos indicadores econômicos que geram naturalmente uma retração no consumo. Além disso, menciona a competição desigual do aço chinês que chega no Brasil com preços mais baixos do que os nacionais. “A nossa cadeia produtiva é muito resiliente. É por isso que a gente segue. Mas precisamos cobrar mais dos nossos representantes políticos. Vêm aí as eleições municipais e devemos questionar os candidatos sobre qual o compromisso deles com as questões ambientais”, conclui.

O Inesfa foi uma das instituições do setor que se posicionaram em relação à publicação do Decreto 12.106, popularmente chamado de “Lei Rouanet da Reciclagem”, como divulgado pelo ((o))eco. Recém-assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, essa iniciativa veio para regulamentar o incentivo fiscal à cadeia produtiva da reciclagem, conforme estabelecido na Lei 14.260 de 8 de dezembro de 2021.

Para impulsionar uma cadeia produtiva que enfrenta uma grave crise econômica ditada pela desvalorização dos preços dos materiais recicláveis e pela alta demanda por matérias-primas virgens para a fabricação de embalagens de papéis, plástico e vidro, entre outros produtos, como ((o))eco tem mostrado desde março, o decreto prevê R$ 300 milhões em benefícios tributários concedidos pelo Ministério da Fazenda por intermédio do Ministério de Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA). 

“O decreto não contempla toda a cadeia da reciclagem, deixando de fora as empresas processadoras, as que mais investem em tecnologia, máquinas e equipamentos. As recicladoras são responsáveis por todos os materiais reciclados que chegam à indústria de transformação”, afirma Alvarenga. Para ele, o decreto serve somente para cooperativas, pequenos empreendimentos e para a indústria.

Empresas recicladoras de sucata ferrosa confirmam cenário de crise 

Integrante da segunda geração da Guarulhos Sucatas, empresa familiar fundada pelo seu pai há 45 anos, Rafael Barros, diretor geral, conta que compreendeu mais amplamente a capacidade de resiliência da cadeia da reciclagem durante a pandemia. Tendo que atuar mais localmente, foi ao setor que o mercado recorreu quando fábricas e outros empreendimentos tiveram que fechar as portas. Passada a crise sanitária, esse segmento amarga a sua própria crise com preços rebaixados e a falta de valorização que preocupa quem dele depende e por ele se empenha. 

Processando mensalmente 15 mil toneladas de sucata de ferro no município de Guarulhos, região metropolitana de São Paulo, a empresa que conta com cerca de mil fornecedores ativos e aproximadamente 200 funcionários diretos, opera aquém da sua capacidade devido à demanda retraída do setor siderúrgico. Diante do cenário de crise econômica ainda visível no país, Barros relata que as usinas querem comprar dos processadores a preços cada vez mais baixos e defende que as recicladoras precisam se posicionar pela valorização do trabalho que desenvolvem. 

“Há dois anos enfrentamos um período mais difícil tendo que equilibrar altos custos de preparação dos materiais para reaproveitamento pela indústria e os baixos preços dos materiais recicláveis no mercado”, observa Barros. “Como saída para a crise, quando as indústrias do Brasil não demandam produção, se compensa com exportações. Temos que continuar existindo porque se essa cadeia quebrar, todo esse material vai parar nos aterros e os impactos socioambientais serão imensos”, acrescenta. 

Especializada em sucata de ferro, que responde por cerca de 70% dos materiais adquiridos, a empresa compra da sua rede de fornecedores recicláveis pós-consumo, como latas de aço, fogões, geladeiras, carros, máquinas, vergalhões e outras estruturas de construção. Após triagem e demais etapas de preparação, o destino é a usina siderúrgica que transforma a matéria-prima ferrosa em novos produtos. “Fechamos o ciclo da logística reversa, transformando reciclável em reciclado. Isso tem um alto valor agregado”, conclui Barros.

Renato Marchetti, sócio da Sudeste Paulista, empresa familiar processadora de sucata ferrosa há cerca de 50 anos, também lamenta o cenário de crise enfrentado por essa cadeia. “É um setor que beneficia toda a sociedade, que reduz a demanda pela extração de matérias-primas da natureza, entre outros impactos ambientais, e que emprega muita gente, mas que anda à margem da economia porque muita gente não dá muita importância”, analisa. 

Ele faz questão de ressaltar que “processadores não são atravessadores”. “São negócios de valor muitas vezes injustiçados”, argumenta o empresário que está à frente de um empreendimento sediado em Sorocaba, interior de São Paulo, que impacta uma cadeia de cerca de 2,5 mil pessoas e gera 105 empregos diretos. 

A princípio, ele relata que não tinha interesse em trabalhar com outros materiais, mas identificando uma demanda local, tomou essa decisão considerada a mais acertada, já que além dos baixos preços da sucata ferrosa, ainda falta valorização do setor siderúrgico por empreendimentos que “buscam elevar a qualidade dos serviços prestados”. A empresa também buscou diversificar suas atividades com o gerenciamento de resíduos recicláveis e não recicláveis.

Assim como argumentado por outras fontes que vêm sendo ouvidas pelo ((o))eco, em reportagens que vêm desdobrando o cenário da reciclagem no Brasil, Marchetti também considera que os baixos preços praticados pelo mercado pós-pandemia têm contribuído para que o uso de matérias-primas virgens se torne mais rentável para as indústrias do que a incorporação de materiais recicláveis nos seus processos produtivos. Nesse cenário adverso, a sucata ferrosa também enfrenta baixa demanda. “O segredo do negócio é fazer volume. Mas ainda assim a nossa margem de lucro é muito baixa. Estamos trabalhando para pagar contas, mas insistimos em fazer essa roda girar porque compreendemos que somos um elo que precisa atuar em parceria com clientes e fornecedores para benefício de toda a sociedade”, desabafa.

Além de tributação diferenciada e de fortalecimento das ações de coleta seletiva pelos municípios, Marchetti opina que para impulsionar a cadeia de reciclagem no Brasil, é preciso investir na oferta de cursos técnicos para qualificação de seus profissionais. “Em geral, as  empresas precisam treinar equipes internamente por conta própria”, lamenta. Da mesma forma, defende a implementação de políticas públicas de incentivo ao setor e considera crucial educar a sociedade sobre impactos dos seus modos de vida e consumo na natureza. “O ser humano precisa compreender que tudo o que faz impacta o ambiente onde vive. Temos um nível educacional ainda muito desigual no nosso país, mas precisamos mudar essa realidade”, conclui.

Reciclagem de sucata ferrosa demanda infraestrutura das empresas processadoras. Foto: Guarulhos Sucatas/Divulgação.
  • Elizabeth Oliveira

    Jornalista e pesquisadora especializada em temas socioambientais, com grande interesse na relação entre sociedade e natureza.

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