Reportagens

Dragagem do Rio Paraguai ignora um Pantanal cada vez mais quente e seco

Academia e ongs protestam contra intervenção, com recursos e autorização federais, para manter fluxos do agro e da mineração

Aldem Bourscheit ·
5 de setembro de 2024

Vítima de seca, temperaturas e incêndios recordes, o Pantanal tem seu principal curso d’água, o Rio Paraguai, novamente dragado para escoar produtos agropecuários e minerais, mas cientistas e ongs avaliam que isso prejudicará o bioma todo, áreas protegidas, povos de indígenas a tradicionais.

Distribuído sobretudo no Brasil e com parcelas menores na Argentina, Bolívia e Paraguai, o Pantanal é uma das maiores áreas úmidas e abrigo de vida selvagem do planeta. 

Seus 170 mil km2, similares ao ocupado pelo Uruguai, são lar de ao menos 380 espécies de peixes, 580 de aves e mais de 2,2 mil diferentes plantas, sem contar animais icônicos como a onça-pintada, o tamanduá-bandeira e o cervo-do-pantanal.

Além dessa biodiversidade, essa região natural única sul-americana resguarda economias, culturas e populações urbanas e rurais, tradicionais e indígenas, todas dependentes da saúde dos ambientes naturais.  

Um dos pilares disso tudo são as cheias e vazantes pantaneiras, orquestradas pelo lento escoar das águas, chuvas e mais de 1.200 rios e córregos que fluem, sobretudo, de terras altas no Cerrado. Mas, todo esse sistema pode desabar.

Chamada de onça-d’água, a ariranha (Pteronura brasiliensis) é outra icônica espécie pantaneira. Foto: Bernard Dupont/Animalia/CreativeCommons

Leito cavocado

A seca deste ano trouxe novamente calor excessivo e incêndios recordes. Chuvas mais firmes foram previstas para novembro. Até lá, o Pantanal deveria ser alvo de cuidados especiais.

“Precisamos evitar que a água saia rapidamente do Pantanal”, diz Pierre Girard, do Centro de Pesquisas do Pantanal (CPP) e professor associado do Instituto de Biociências da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

Na prática, governos agem na contramão. Trechos do Rio Paraguai são dragados para aprofundar seu leito e permitir o transporte contínuo de grãos e minérios. A grande maioria serve a mercados externos.

Até meados de agosto, haviam sido retirados 110 mil m3 de sedimentos da porção norte do manancial, entre Cáceres (MT) e Corumbá (MS), suficientes para encher 44 piscinas olímpicas. 

duas décadas executado nesse trecho, o trabalho é disparado por “ordens de serviço” do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) baseadas em licenças do Ibama para “dragagens de manutenção”. 

As intervenções vão até dezembro e contam com R$ 81 milhões do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Elas incluirão o trecho sul do rio, de Corumbá a Porto Murtinho (MS), na fronteira com o Paraguai. 

As dragagens em curso incluem dezenas de pontos ao longo do Rio Paraguai. Foto: DNIT/Divulgação

Chamada geral

Contudo, ao mesmo tempo em que prometem manter o fluxo de commodities, as dragagens podem formar um “grande ralo”, esvaziar a planície alagável e catapultar prejuízos socioambientais e econômicos.

O alerta vermelho foi remetido à Presidência da República, ministérios e governos dos estados pantaneiros numa carta de quase 40 cientistas. Confira aqui a íntegra.

O documento lembra que o Rio Paraguai, naturalmente navegável por 8 meses anuais, atingiu em abril a cota mais baixa já monitorada. Assim, dragá-lo pode tirar água também de cidades, hidrelétricas, pesca e turismo.

“Que se adote formas menos impactantes, mais viáveis e racionais, como o uso de um sistema de transporte multimodal, incluindo ferrovias e rodovias, com base em tomadas de decisão adaptativas às condições hidrológicas e de navegabilidade, em especial nos períodos de seca anuais e em anos caracteristicamente mais secos”, pedem os pesquisadores.

Isso reduziria riscos ecológicos sobretudo no trecho norte do Rio Paraguai, tido como o “coração do Pantanal”. A região abriga valiosas amostras da biodiversidade e de cenários do bioma em áreas protegidas como a Estação Ecológica Taiamã e o Parque Nacional do Pantanal Matogrossense.

O bioma é listado como patrimônio nacional na Constituição Federal de 1988 e parcelas do mesmo são reconhecidas como Patrimônio Natural da Humanidade pelas Nações Unidas e abrigam Sítios Ramsar, globalmente  importantes para conservar áreas úmidas.

Conforme os autores da carta relataram a ((o))eco, só a Secretaria Nacional de Hidrovias e Navegação, ligada ao Ministério de Portos e Aeroportos, a respondeu, marcando uma reunião para este 24 de setembro.

Incontáveis tuiuiús (Jabiru mycteria) na Estação Ecológica Taiamã, reserva federal que pode ser prejudicada pela hidrovia Paraguai-Paraná. Foto: Daniel Kantek / ICMBio.

Insistência fluvial

Remover sedimentos do Rio Paraguai reforça o projeto de uma hidrovia de 4 mil km para escoar commodities de Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai ao Exterior, mostrou reportagem especial de ((o))eco.

Caso a via fluvial seja garantida, governos e setor privado esperam baratear exportações hoje carreadas por rodovias ou ferrovias sobretudo a portos no Sudeste e Sul. Menos de 10% das cargas brasileiras passam por hidrovias. 

“Mas há uma insistência na hidrovia [Paraguai-Paraná]”, constata o diretor da ong Ecologia e Ação (Ecoa), Alcides de Faria. Para ele, com nível baixo do Rio Paraguai os trens são a melhor maneira para conter prejuízos ambientais. 

“Estradas e rodovias pantaneiras foram construídas na grande maioria sobre aterros e podem colapsar com cargas tão pesadas”, explica. 

Uma alternativa ferroviária em voga é o trecho de 755 km da Ferronorte, entre Rondonópolis (MT) e Santa Fé do Sul (SP) e, dali, ao Porto de Santos.  O projeto também conecta cidades e portos na Amazônia. 

Ao mesmo tempo, consolidar a hidrovia com dragagens, remoção de rochas e retificação de rios aumentará a produção de soja, milho, cana e minério de ferro no Pantanal, bem como o assoreamento dos rios e córregos. 

A área com agropecuária nas bacias afluentes do Rio Paraguai saltou (64%) de 8,7 milhões de hectares para 14,2 milhões de ha, de 1985 a 2020, mostra o MapBiomas. O aumento foi sobretudo de pastagens para gado. 

Um dos efeitos é o crescente sufocamento de rios formadores do Pantanal, como Taquari, São Lourenço e Piquiri. “O agro quer transportar commodities ao mesmo tempo em que joga sedimentos nos rios”, diz Pierre Girard (CPP).

Cenário produzido pelos incêndios deste ano no Pantanal. Foto: Laercio Machado de Souza/Arquivo Pessoal

Régua climática

Dragagens e outras obras previstas para o Rio Paraguai parecem igualmente não pesar os efeitos da crise climática sobre o bioma. Seguem jogando no curtíssimo prazo.

“Tivemos secas por anos ao longo das décadas, mas nunca com tanto calor”, descreve Pierre Girard (CPP). “É evidente que as condições naturais do bioma estão mudando”, avisa.

A secura retornou a quatro estados nordestinos e avança forte em outros 15 estados este ano, incluindo os pantaneiros Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, indica um monitoramento da Agência Nacional de Águas (ANA), 

Enquanto isso, a temperatura média no Pantanal subiu 4ºC desde 1980 e as piores projeções elevam o patamar para 10ºC até o fim do século, junto com mais 182% de ondas de calor, mostra o Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

“Isso trará ainda mais condições para secas, incêndios e avanço do agronegócio em áreas hoje alagáveis do Pantanal”, alerta Alcides de Faria (Ecoa). 

Já um artigo publicado na revista Science of The Total Environment questiona a viabilidade da hidrovia Paraguai-Paraná justamente diante das “mudanças climáticas atuais e projetadas”.

“O Rio Paraguai é a última grande paisagem fluvial no centro da América Central ainda com uma estrutura quase natural. Ele representa um patrimônio biocultural do povo brasileiro e do mundo inteiro”, diz o texto, assinado por mais de 40 cientistas.

Ao jornal The Guardian, o Ministério de Portos e Aeroportos, pilotado pelo deputado licenciado Silvio Costa Filho (Republicanos/PE), afirmou que o artigo tinha “opiniões” sem “elementos científicos que as sustentassem”. 

Combate a incêndios deste ano no Pantanal. Foto: Marinha do Brasil/Divulgação

Tratando feridas

Além de avaliar com olhar científico e conhecimentos tradicionais e indígenas planos mirabolantes como o da Hidrovia Paraguai-Paraná, outras medidas podem aliviar o sofrimento de ambientes e povos pantaneiros.

Para Pierre Girard (CPP), é urgente recuperar nascentes e a força de rios e outros cursos d’água que mantêm o bioma vivo, muitos deles barrados já nas regiões de planalto. 

“Conservar a água deveria ser sempre um primeiro objetivo”, destaca. “Para isso é necessário aprofundar estudos, mas é sempre mais fácil liberar recursos para obras [como à dragagem] do que para a ciência”, afirma o pesquisador.

Alcides de Faria (Ecoa) afirma que a crise do clima reforçada pelos fenômenos La Niña e El Niño exige que governos e demais setores ajam fortemente em temas como prevenção e combate a incêndios. 

Segundo ele, sem contratar e treinar brigadistas e endurecer a fiscalização sobre o que ocorre nas fazendas, a situação será ainda pior nos próximos anos. “Esse modelo que desmata e depois taca fogo para renovar pastos não dá mais”, diz.

Mais de nove em cada dez ha do território pantaneiro pertencem à iniciativa privada. Atualizaremos a reportagem caso o DNIT atenda aos nossos pedidos de entrevista.

  • Aldem Bourscheit

    Jornalista cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Selvagem, Ciência, Agron...

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Comentários 10

  1. Sergio Roberto diz:

    Matéria claramente dirigida, eivada de falácias para maquiar a falta de conhecimento e as más intenções de quem é contra o desenvolvimento de nosso estado. Quem empreende não quer destruir, porque se destruir inviabiliza o próprio negócio.
    O ativismo ambiental é um entrave ao desenvolvimento de qualquer município, estado ou país.
    Em várias oportunidades o estado de Mato Grosso deixou de crescer e gerar empregos pelas ações irresponsáveis um ativismo ambiental financiado por agentes externos.
    Nesse ativismo – extremamente nocivo à economia e à própria sociedade do estado –, além do financiamento de agentes externos contrários ao incremento da competividade estadual e nacional – prevalece a questão ideológica sobre qualquer justificativa técnica ou interesses difusos.
    Das duas, uma: ou o ativismo é burro, ou é mal intencionado. Na verdade, acho que das duas, AS DUAS!


    1. Debora Calheiros diz:

      O negacionismo científico é burro e os que dele se utilizam para vantagens econômicas em detrimento da conservação de um patrimônio natural do país como o bioma Pantanal é mal intencionado…


  2. ADELVAR LUCIANO CUNHA diz:

    Fiquem tranquilos Pai Lula está no comando tudo está dando certo…. Só está queimando o que era pra queimar mesmo….A ministra do Meio Ambiente já está prevendo que o Pantanal vai acabar daqui a 50 anos; então precisamos começar agora senão não dar tempo….O governo mais ambientalista do mundo está no Poder então as ONGs não precisam se preocupar….O Pantanal segundo a ministra vai acabar então está tudo certo vamos dragar e derrocar os rios e colocar 🔥 fogo tudo controlado….O governo de antes que não sabia controlar nada!


  3. LUIZ ALBERTO DO AMARAL ASSY diz:

    O procedimento de dragagem do rio Paraguai vem sendo licenciado pelo IBAMA já há 25 anos e o enorme banco de dados gerado sequer foi objeto de analise por pesquisadores sérios. É mais confortavel prosseguir na percepção e no achismo denuncista, de que fazem eco mutos pesquisadores irresponsaveis, do que promover estudos aprofundados da hidrologia do Pantanal que confirmem ou refutem tais percepções de impacto da dragagem no ecosistema pantaneiro. Aliás a justiça federal em primeira instancia já rejeitou pedido objeto de Ação Civil Pública do MPF, fundamentado justamente nestas percepções irresponsáveis, e ratificou a legalidade dos processos de licenciamento de portos e das intervenções correntes na via navegavel. Até quando por fúteis inclinações ideologicas ou mesmo por motivos inconfessaveis, vamos estar impedindo o desenvolvimento ambientalmente sustentavel de atividades geradoras de emprego e renda em nosso país?


    1. Debora Calheiros diz:

      Dragagem de manutenção, para garantir a segurança da navegação de embarcações de pequeno e médio porte eu uma coisa..
      Mas o que os srs navegadores almejam são as dragagens de aprofundamento, capazes de aumentar a profundo rio Paraguai passar barcaças maiores e mais pesadas…
      Por que será que se omitiu esta informação?!

      O sr falou bem, decisão APENAs de 1a instância… Ou seja cabe recurso!!

      Mas e quais seriam os motivos inconfessáveis de se querer dragar o rio Paraguai na maior seca já registrada com declaração de Escassez Hídrica pelo órgão responsável?!?
      Seriam fúteis e inconfessáveis interesses econômicos particulares?!


    2. Debora Calheiros diz:

      Outra informação importante: já consultou a decisão recente do STJ?!


  4. Deodoro Moreira dos Santos diz:

    Tanto comentários do sr Miguel João como o do sr Tadeu estão retratando a “realidade brasileira” quando se trata se meio ambiente. O duro é que o desatre ecológico, no Brasil e no planeta, vem ocorrendo , PAULATINAMENTE. Quando os responsáveis quiserem “arregaçar as mangas”, vai ser pra carregar “cadaveres”, porque não haverá mais “providências” a tomar.


  5. MIGUEL JOAO GOSSN FILHO diz:

    Ótima reportagem. Mas, infelizmente, a grande maioria da população não tem nível de escolaridade (e consciência) suficiente para ter acesso a artigos e reportagens como essa. Aliás, a resposta do Ministério de Portos e Aeroportos a um artigo científico é lastimável, para dizer o mínimo.


  6. Tadeu Terzi diz:

    Parece fake a imagem que ilustra a reportagem sobre dragagem do Rio Paraguai. Na foto aparece uma frota de TRANSATLANTICOS navegando no que seria o rio pantaneiro. E se a foto é enganosa, como acreditar na matéria jornalística.


    1. Eber Benjamim diz:

      Nao é foto enganosa não. São barcaças de transporte de minério de ferro, que partem de Corumbá rumo a Argentina.