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Os parques da discórdia

Entre parques e lavouras, que partido deve tomar um ambientalista? A advogada Vânia Santos, de Prudentópolis, escolheu os lavradores e sabe explicar por quê.

4 de agosto de 2005 · 19 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

“É assim mesmo, eu também tive dificuldade para entender esta paisagem quando cheguei aqui”, diz a advogada Vânia Santos, ao volante da picape, que dirige no labirinto rural de Prudentópolis, no interior do Paraná, como nunca tivesse feito outra coisa na vida. Por onde passa, mesmo sem sair do carro, as pessoas a chamam pelo nome. E ela as reconhece não só pelo nome, como pelo parentesco e freqüentemente pelas questões que elas um dia levaram a seu escritório.

A “Doutora” parece nativa. Mas conta que “no começo” achou estranho aquele “cenário de roça sem cercas” dividindo propriedades. Pela beira da estrada, passa um Brasil que, de fato, não se vê todo dia, com lavradores louros, varas de porcos domésticos atravessando a pista de terra de um lado para o outro, galinhas soltas, gado pastando no meio do mato e casas que às vezes formam no acostamento agrupamentos quase urbanos.

Em volta de cada residência, há cercados de madeira ou mesmo muros, fechando o quintal. É para os bichos não entrarem. Mas, do portão para fora, a criação de espalha por largos campos aparentemente sem dono, que no entanto têm títulos de propriedade que remontam a avós ou bisavós. A primeira impressão é de desordem, para não dizer abandono. O olho do forasteiro, acostumado a só enxergar trabalho agrícola onde o arado raspou o solo até as bordas do arame farpado, leva tempo para perceber que o produto daquelas capoeiras sustentou gerações de brasileiros que não querem subir na vida às custas dos outros.

“Isso é um faxinal”, ensina Vânia. Prudentópolis, que nos folhetos turísticos se apresenta como a “terra das cachoeiras gigantes” ou “capital da malha”, “do mel” e “da oração”, detém o recorde nacional de faxinais em plena atividade. Tem 19, 16 ou, dependendo da conta, pelo menos 7, oficialmente reconhecidos no cadastro que habilita a prefeitura a receber do governo paraense cerca de R$ 30 mil por conta do “ICMs ecológico”, que premia no estado os municípios de bom comportamento ambiental. No Paraná inteiro, os faxinais não passam de 44.

Vânia vai recitando seus nomes, como se houvesse placas na entrada anunciando a chegada: Ivaí Anta Gorda, Patos Velhos, Barra Bonita, Cachoeira Palmital… Não é fácil, à primeira vista, distingui-los. Em certos trechos da viagem, daria para suspeitar que a picape andou em círculos, se as estradas de Prudentópolis não fossem surpreendentemente retas, descendentes que são das “linhas” coloniais que no fim do século XIX trançaram ali um campo reticulado, como se o povoamento por imigrantes ucranianos exigisse um projeto de urbanização para a Serra de Guarapuava.

São lugares pacíficos. Mas ultimamente estão, a seu modo, em pé de guerra. Ou seja, juntando forças para enfrentar a prefeitura. Neste domingo, dia 7, terminou em Irati, ali perto, o 1º Encontro dos Povos de Faxinais. O programa para 200 convidados teve “café da manhã ecológico”, “almoço ecológico” e “jantar ecológico”, além de “oficinas temáticas” sobre “agroflorestas”, “sementes crioulas”ou “ervas medicinais”. O cardápio era ambiental. Mas o prato forte da reunião foi a resistência desses pequenos agricultores paranaenses ao projeto municipal para salpicar parques municipais e outros tipos de reservas na paisagem que até agora eles conservavam por mero apego a suas próprias tradições.

Se depender da prefeitura, que promete com isso “incentivar o desenvolvimento regional, mediante a utilização do sítio para fins lucrativos e turísticos”, brotarão oficialmente em Prudentópolis os monumentos naturais Perehouski, Rio Barra Grande e Salto Sebastião-MlotMonumento Natural Perehouski, as áreas de proteção ambiental do Rio São Francisco, São João, Alto Rio Ivaí e Manancial do Ronda, e um parque municipal, o do Rio São João, aproveitando que eles geralmente ficam em faxinais, “muitos deles em ótimo estado de conservação”, segundo o projeto. O problema é que isso tem dono.

Tirados de sua rotina pela súbita temporada de novidades políticas, os pacatos faxinalenses reagiram. Trata-se de uma briga que não se ouve de longe, ao contrário da crise em que desaba o governo Lula. Mas, embora distantes da imprensa nacional, e aquecidas por debates nos barracões de madeira onde os agricultores se reúnem, não deixa de levantar questões subversivas. Eles querem saber se o governo tem o direito de se meter, de uma hora para outra, na conservação de terras privadas, cujo interesse só descobriu agora, depois que os turistas começam a tomar gosto pelas atrações locais. Em parte porque, usados com certa parcimônia há mais de 100 anos, os faxinais estão em boa forma, ao contrário dos lugares onde o progresso entrou a ferro e fogo.

É uma boa pergunta. Tão boa que virou a cabeça de ambientalistas como Vânia. Com a política brasileira de pernas para o ar, ela se vê de repente metida num movimento que se opõe a novas unidades de conservação. E o que o resto do país tem a ver com isso? Bem, interessando-se pelo caso de Prudentópolis, ele aprenderia pelo menos o que vem a ser um faxinal. Porque não adianta simplesmente procurar nos dicionários. O mapa dos estados sulinos pode estar cravejado de faxinais, com nomes que parecem cunhados por marqueteiros para a promoção do turismo rural. O Paraná tem o Faxinal do Céu, por exemplo. O Rio Grande do Sul, o Faxinal do Soturno. Mas os dicionários são lacônicos a respeito da palavra. Houaiss diz que se trata simplesmente de um “campo que avança”, como se isso quisesse dizer alguma coisa. E o Aurélio, um pouco mais explícito, explica que se trata de “um trecho alongado de campo que penetra a floresta”.

Para Vânia, o que define os faxinais é o uso coletivo de terras particulares para a agricultura de subsistência, a criação de animais soltos em campos abertos, a ausência de cercas entre as propriedades e o extrativismo vegetal de baixo impacto, que mantém florestas de pé para colher pinhão ou erva-mate, inquilinos naturais dos bosques de araucárias. Em Prudentópolis, pelo menos, eles ainda formam um amplo sistema comunal, atado pelos velhos laços de consagüinidade, vizinhança ou casamento que adiaram a dispersão dos colonos ucranianos no planalto paranaense. Ali as pessoas ainda nascem e morrem a poucos quilômetros dos lugares onde seus pais viveram. E por isso é preciso ter cuidado para mexer com elas, lembra Vânia.

Quando ela conheceu Prudentópolis, 17 anos atrás, as empregadas domésticas não conheciam salário na cidade, a 270 quilômetros de Curitiba. Elas trabalhavam geralmente em troca de casa, comida e “duas gratificações por ano, na Páscoa e no Natal”. Vânia estava lá para resolver, como advogada, os problemas fundiários de um terreno que o proprietário queria lotear. Mas ela começou a defender na Justiça os funcionários que a Prefeitura contratava irregularmente, lavradores envenenados pela carga brutal de agrotóxicos usada nas plantações de fumo e outras questões trabalhistas. Quando se deu conta, sua carreira havia tomado um novo rumo. Estava organizando cooperativas, comprando sérias brigas com prefeitos e levando ao Ministério Público denúncias de desmatamento. Hoje toca uma ONG, o Instituto Guardiões da Natureza, mantém em casa uma rádio comunitária, a Cidade FM, e toca um programa de agricultura orgânica, cujo lucro é convencer lavradores a dar melhores usos para suas glebas. E não há como tratar desses assuntos em Prudentópolis sem cuidar dos faxinais.

Continua na próxima edição

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