Reportagens

Por onde passa o asfalto

Governo inclui a Régis Bittencourt (BR-116) no pacote de privatização de rodovias. Mas novo traçado da Estrada da Morte ainda é tema de disputa ambiental.

Aline Ribeiro ·
3 de março de 2006 · 19 anos atrás

O governo federal retomou, no final de fevereiro, o processo de privatização de sete rodovias federais, entre elas a Régis Bittencourt (BR-116), que liga São Paulo a Curitiba. O modelo de concessão adotado é em quase tudo semelhante àquele usado pelo governo Fernando Henrique Cardoso para tirar do abandono estradas como a Via Dutra e a Rio—Juiz de Fora. O vencedor do leilão se compromete a terminar obras em curso e modernizar a rodovia para em seguida assumir a sua manutenção.

No caso da Régis Bittencourt, a empresa terá um trabalho extra. Há sete anos, 30 quilômetros da estrada estão no meio de uma pendenga jurídico-ambiental que ainda não se resolveu. O trecho vai do km 337 ao km 367, na Serra do Cafezal, entre as cidades Miracatu e Juquitiba (SP). E é responsável pelo terrível apelido de “estrada da morte” que acompanha a rodovia. Só em 2004, houve 3.185 acidentes na BR-116, com 153 mortes.

Existe um consenso de que a duplicação amenizaria o problema. Mas as opiniões sobre como fazer isso são divergentes. De um lado, o Ministério Público Federal e dezenas de entidades ambientalistas defendem a construção de uma pista paralela à já existente, o que causaria menos impacto à área, um dos últimos remanescentes de Mata Atlântica do estado. Mas o Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT), apoiado pelo Ibama, sugere que a melhor saída seja uma pista alternativa, afastada do leito atual.

“A pista variante é completamente desnecessária. Na época, achei que o DNER [antigo DNIT] estava fazendo uma besteira e resolvi intervir. Fiz um anteprojeto para provar que é possível alargar a pista do lado direito, em vez de fazer uma outra passando por fora”, lembra o engenheiro civil Horácio Ortiz, funcionário aposentado do Departamento de Estradas de Rodagem (DER). O custo do projeto do DNIT, pelos seus cálculos, seria cerca de três vezes maior do que o necessário. “Eles, safadamente, não querem aceitar o traçado que fiz porque sairiam perdendo”, alega. Em 1999, o Ministério Público comprou a briga e entrou com ação civil pública defendendo o traçado paralelo à pista atual.

Desmatamento

Ortiz também estimou os danos ambientais do projeto do DNIT. Segundo ele, a construção de uma nova pista fora do eixo original desmataria 500 mil m² de floresta, numa Área de Proteção Ambiental (APA). “Isso criaria uma ilha de Mata Atlântica no topo da Serra do Mar”, afirma. Além disso, a construção bloquearia, no mínimo, 17 nascentes virgens da sub-bacia do Caçador/São Lourencinho, cabeceira de drenagem do Ribeira do Iguape. A estrada ainda cortaria ao meio o corredor florestal que existe entre os parques estaduais Jurupará e da Serra do Mar, o que impediria o fluxo de animais e as trocas genéticas que garantem sua reprodução saudável.

A construção de uma pista ao lado da rodovia também evita a desapropriação de terras como a da Fazenda Ecológica Itereí. A estrada alternativa proposta pelo DNIT cortaria essa propriedade, rica em biodiversidade e ponto turístico para brasileiros e estrangeiros que apreciam a natureza. A dona da fazenda, Lea Correa Pinto, preside a entidade ambientalista Terrae, uma das muitas que apóiam a ação do Ministério Público Federal. “Existem soluções tecnológicas para fazer uma rodovia sem degradar tanto. Poderiam duplicar a Régis nos moldes da Imigrantes, com bastante túneis. Não defendo a conservação só por causa da minha propriedade, mas pela biodiversidade da região, por sua importância histórica e natural”, diz Lea.

Outro lado

Coordenador de Avaliação de Impactos e Riscos do Ibama, Jorge Luiz Britto defende a viabilidade do projeto do DNIT e afirma que a proposta apoiada pelo Ministério Público também causaria impactos. “A construção de túneis requer grande quantidade de material retirado da natureza. Uma pista paralela também não é a solução adequada, porque aumenta o risco de acidentes. Do ponto de vista ambiental, a duplicação vai causar o assoreamento do ribeirão Caçador”, argumenta, lembrando que, por ter sido projetada muito perto da encosta, a estrada também poderá sofrer interdições por causa de deslizamentos de terra.

O traçado sugerido pelo DNIT, que propõe a construção de uma alternativa fora do leito atual, obteve licença prévia da Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo em setembro de 1996. Impulsionado por entidades ambientalistas, o Ministério Público Federal conseguiu declarar inválida essa licença prévia, alegando insuficiência de estudos ambientais. Desde então, o MP entrou com mais duas ações civis públicas, exigindo novos estudos ao Ibama – que ficou responsável por conceder a licença prévia. “Quando assumimos o licenciamento, em 2000, pedimos toda a documentação necessária ao DNIT”, contesta Britto.

A licença prévia foi renovada pelo Ibama e tem validade até agosto de 2007. O DNIT deve obedecer algumas condições discriminadas no documento, como a apresentação de um cronograma físico e financeiro do empreendimento, incluindo as atividades de implantação dos programas ambientais. Por meio de sua assessoria de imprensa, o DNIT informou que o projeto a ser utilizado como base para o leilão das rodovias seguirá o texto do Programa de Exploração Rodoviária (PER) – um calhamaço técnico que serve de modelo para a construção de todas as estradas federais. Não quis responder, porém, o básico: se contemplará a pista paralela ou aquela fora do eixo atual. Em todo caso, a pendência só será resolvida por vias judiciais. E quem terá que encará-las é a empresa que vencer a licitação.

Caso não haja imprevistos, até maio será conhecida a concessionária responsável por administrar os 401,6 km de estrada. E por descascar esse abacaxi.

Leia também

Notícias
20 de dezembro de 2024

COP da Desertificação avança em financiamento, mas não consegue mecanismo contra secas

Reunião não teve acordo por arcabouço global e vinculante de medidas contra secas; participação de indígenas e financiamento bilionário a 80 países vulneráveis a secas foram aprovados

Reportagens
20 de dezembro de 2024

Refinaria da Petrobras funciona há 40 dias sem licença para operação comercial

Inea diz que usina de processamento de gás natural (UPGN) no antigo Comperj ainda se encontra na fase de pré-operação, diferentemente do que anunciou a empresa

Reportagens
20 de dezembro de 2024

Trilha que percorre os antigos caminhos dos Incas une história, conservação e arqueologia

Com 30 mil km que ligam seis países, a grande Rota dos Incas, ou Qapac Ñan, rememora um passado que ainda está presente na paisagem e cultura local

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.