Começa nesta quinta-feira, na Cidade do México, o 4º Fórum Mundial da Água. O Brasil é uma das estrelas do encontro, graças à sua política de gestão dos recursos hídricos por bacia hidrográfica. Ela ainda está engatinhando? Pois é, imagine como vão as coisas no resto do mundo…
Embora nos últimos anos a importância da água e de sua preservação tenha assumido ares de unanimidade nos discursos políticos, na prática os indicadores sociais e ambientais não demonstram grandes avanços.
Um quadro dramático da situação foi revelado pela Avaliação Global das Águas Internacionais (GIWA, na sigla em inglês), produzida por 1.500 cientistas e publicada em fevereiro pelo PNUMA (Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas), em colaboração com o GEF (Global Environment Facility), o fundo dos países ricos que financia projetos ambientais nas principais áreas de preocupação da comunidade internacional (biodiversidade, clima, florestas e água, entre outros).
O relatório informa que a poluição química tem causado impactos de moderados a severos em metade das regiões com bacias hidrográficas transfronteiriças. A agricultura responde por quase 70% de toda a água captada de rios, represas e lagos. A superexploração está levando muitas das regiões a sofrer estiagens. Outros fatores de degradação dos recursos hídricos são o desmatamento, a drenagem de terras úmidas para expandir as áreas agrícolas e práticas inapropriadas de uso do solo. O trabalho também investigou o estado das águas marítimas e concluiu que a pesca excessiva tornou-se um problema generalizado. Ela aparece como um aspecto de degradação hídrica presente em mais regiões do que qualquer outra questão estudada pelo GIWA.
Os efeitos de todos esses maus-tratos aos recursos hídricos se reflete na saúde da população. As Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDG, na sigla em inglês), traçadas pela ONU em 1990, estão longe de ser cumpridas. Na época, 49% da população mundial era atendida pela rede de saneamento. A meta era elevar esse percentual para 75% até 2015. No entanto, em 2002 a cobertura tinha subido para apenas 58%. O resultado explica o pessimismo de David Redhouse, coordenador de políticas da Water Aid, ong sediada em Londres. “Se nenhum avanço for obtido até 2015, teremos perdido esta meta por meio bilhão de pessoas”, afirma.
Os números mostram que aumentou o financiamento internacional de projetos relacionados à água e saneamento básico. Mas Redhouse lembra que é preciso descontar o fator Iraque. Entre 2002 e 2004, o país conflagrado pela guerra atraiu 86% dos novos investimentos britânicos, por exemplo. “Além disso, a verba para projetos de água e saneamento não cresce tão rápido quanto os outros tipos de ajuda internacional aos países pobres”, diz o especialista. E cita a União Européia, que reduziu sua ajuda para água e saneamento de 5,4% em 2000, para 4,1% em 2004.
Ele parte para o Fórum com essa desconfiança prévia das boas intenções desse tipo de encontro. “Tem havido muitas declarações internacionais. O que queremos ver agora é cada país — e seus parceiros em projetos de desenvolvimento — tomando a ação necessária”, diz.
Novidades no Brasil
No Brasil, as estatísticas também não são nada animadoras. Perto de um quarto da população não contava com acesso à rede de abastecimento de água em 2000, de acordo com o Atlas de Saneamento do IBGE de 2004. Muito mais trágico é o quadro do saneamento. Apenas 60% da população brasileira tinha acesso à rede coletora de esgoto em 2000. E do esgoto coletado, somente 20% era tratado.
“O problema da gestão dos recursos hídricos é o saneamento, que ainda não tem um marco legal. O nível de investimento que se faz no setor é mínimo. O grande desafio é termos um investimento público no mínimo dez vezes maior do que o atual”, diz Benedito Braga, diretor da Agência Nacional de Águas (ANA) e vice-presidente do Conselho Mundial da Água.
Mas Braga ressalta as conquistas do país na área. “Tivemos um grande avanço na organização de um sistema de recursos hídricos descentralizado e com a participação popular. Montamos um gerenciamento que envolve governo federal, estaduais, a sociedade civil e os usuários de água. Poucos países tiveram avanços nessa temática nos últimos três anos”, diz ele. Basicamente, Brasil e África do Sul.
No mundo desenvolvido, a exceção ficou por conta da União Européia, que adotou a chamada Diretiva 4, uma tentativa de organizar a gestão de recursos hídricos por bacia hidrográfica. “Esse modelo foi muito bem-sucedido na França, que em 30 anos conseguiu recuperar a qualidade da água dos seus rios utilizando instrumentos econômicos, especificamente a cobrança pelo uso da água”, explica Braga. Foi o modelo francês que inspirou Brasil e África do Sul na implementação de novas regras para o setor.
Processo lento
A Política Nacional de Recursos Hídricos, instaurada pela Lei das Águas (lei 9.433), de 1997, possibilitou a criação dos comitês de bacia e a cobrança pelo uso da água. O primeiro comitê a cobrar pelo uso da água foi o Ceivap, do Paraíba do Sul, em março de 2003. Em janeiro passado, o comitê do Piracicaba, em São Paulo, começou a distribuir seus primeiros boletos de cobrança.
“A implantação de mecanismos de cobrança pelo uso da água está extremamente lenta”, reclama o professor José Galizia Tundisi, do Instituto Internacional de Ecologia (IIE) e ex-presidente do CNPq. Benedito Braga concorda, mas não vê nisso um problema. “É um caminho mais demorado, sem dúvida alguma, mas tem vantagens, porque quando você envolve o usuário e a sociedade civil, a chance de que a decisão vá ser cumprida é muito maior”, acredita Braga, citando a adimplência de 98% da bacia do Piracicaba. Os próximos comitês a implantar a cobrança serão, segundo ele, o do Rio Doce (MG e ES) e o do rio São Francisco.
O mecanismo é bem-vindo, mas não é o bastante. O dinheiro é pouco e a degradação ambiental, galopante. “Não há uma política para o aproveitamento sustentável e seguro tanto das águas das chuvas como das subterrâneas. A mesma água usada para matar a sede é a que jorra nos vasos sanitários e chuveiros. O fenômeno das mudanças climáticas tende a agravar ainda mais a situação, à medida que os cursos hídricos e represas passam a ser castigados mais freqüentemente por estiagens”, alerta Tundisi. Ele espera que o Brasil avance em várias frentes. “O aproveitamento da água da chuva deve ser estimulado. O re-uso da água em indústrias, condomínios e pequenos municípios deve ser incentivado. O re-uso da água de esgoto tratada deve ser incentivado, sob condições limitadas. É recomendado, por exemplo, para irrigação de certas áreas, resfriamento térmico, agricultura e hidroponia”, explica. Ele também defende a diminuição do consumo, que deve ser incentivada em propostas diferentes, de acordo com a região.
Outro estímulo à preservação seria instituir créditos para os “produtores de água”, ou seja, os moradores ou fazendeiros que vivem ou trabalham nas áreas de nascentes de rios. De acordo com a idéia, para cada metro cúbico de água de boa qualidade que “produzissem”, receberiam um determinado incentivo, como a redução de impostos ou o pagamento de royalties.
Transposição e Amazônia
O maior projeto hídrico do país causa polêmica entre especialistas. Transpor o rio São Francisco, em si, não é o problema. Tundisi acredita até que o projeto poderia resolver questões de usos múltiplos da água na região e diminuir a escassez. Isso, desde que houvesse, simultaneamente, “um processo rigoroso de saneamento básico, com tratamento de esgotos de pequenos municípios, avaliação de fontes não pontuais e seu controle”. E mais: “O projeto deve ser complementado com várias outras medidas locais e regionais que podem ter sucesso em conjunto com a transposição: barragens subterrâneas, controle da evaporação dos açudes, reflorestamento e recuperação de mananciais”. Nada que tenha aparecido, até agora, nos planos do governo.
O diretor da ANA se esquiva do assunto. “Não cabe à ANA discutir as oportunidades de investimento do governo. Não tem competência legal para tanto e portanto a análise que fizemos se restringiu a questões de disponibilidade hídrica”, diz Benedito Braga. No entanto, em seu discurso aparece outra questão preocupante: os investimentos previstos para a Amazônia. “Queremos planejar o uso múltiplo das águas da Amazônia para o desenvolvimento do Brasil. A Amazônia tem 50% do nosso potencial hidrelétrico. E existe tecnologia para trazer a energia. Navegação também é importante na região”, afirma.
No México, menos temas
A atual edição do Fórum Mundial das Águas, que vai até o dia 22, promete focar melhor suas discussões, diferentemente do que ocorreu em Kyoto, onde houve mais de 350 sessões simultâneas. “Quando você tem um conjunto de ações tão amplo, no fim você não tem ação nenhuma”, reconhece Braga, que coordenou parte dos trabalhos em Kyoto. No México serão apenas cinco grandes temas: água para o desenvolvimento social, financiamento, gestão integrada dos recursos hídricos, alimentos e meio ambiente, e segurança hídrica (proteção contra inundações e secas, por exemplo).
A expectativa é de que, desta vez, o mundo dê mostras mais claras de que pretende cuidar melhor de suas águas. “Precisamos que os políticos, do Norte e do Sul, mostrem comprometimento e liderança. Que produzam planos nacionais para atingir as metas e garantam que todos (inclusive os financiadores) sigam esses planos. Que destinem o dinheiro necessário especificamente para saneamento. E que tornem públicas as informações sobre seus progressos, para as pessoas saberem o que está acontecendo e pressionarem, se necessário, por uma performance melhor”, diz David Redhouse, da Water Aid.
Afinal, ninguém tem dúvidas da importância da água para o futuro da humanidade. Embora haja controvérsia nas previsões. “Não tenho dúvidas de que a água deverá ser um dos recursos naturais mais importantes no século XXI e pelos próximos séculos. Água será o insumo mais disputado do mundo para manter as economias em funcionamento e para o desenvolvimento social do país”, acredita Tundisi. “Isso é uma lenda. Existe toda uma história do conflito Israel-Palestina em torno da água. É um conflito ideológico, em que a água desempenha um papel. A guerra é tão cara que sai muito mais barato dessalinizar. O pessoal fala isso para valorizar o setor, mas temos que ser honestos intelectualmente e não entrar nessa conversa”, discorda Braga.
Seja como for, o Brasil é peça-chave quando se pensa em recursos hídricos. E tem uma longa lição de casa a fazer para tratá-los como merecem, e como os merecemos.
* José Alberto Gonçalves é jornalista freelancer em São Paulo.
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