Pouco mais de dez meses depois da maior operação de repressão ao comércio ilegal de madeira em Mato Grosso, não há no estado quem desconheça a Curupira. Desde a época em que foi deflagrada, em junho de 2005, esteve na boca do povo, dos prefeitos, dos madeireiros, dos deputados, dos ambientalistas. Recebeu vaias e aplausos por provocar, durante a intervenção, uma momentânea paralisação da atividade madeireira e, depois, restrições burocráticas que enfraqueceram o setor.
Mas apagados os holofotes — e às vésperas de uma nova temporada de corte — as ousadas intenções anunciadas pelo governo federal para coibir o crime na floresta ainda não passam disso mesmo: intenções.
Com o apoio da Polícia Federal e do Ministério Público, entre prisões de madeireiros, empresários e despachantes, o Ibama identificou em seu quadro de funcionários cerca de 50 pessoas envolvidas no esquema de corrupção. Algumas estão sendo julgadas e condenadas criminalmente, mas até hoje nenhum processo disciplinar — aquele que investiga a conduta do servidor público denunciado — foi concluído. Ou seja, todos os funcionários apontados no esquema voltaram a trabalhar normalmente.
Mas existe risco de rearticulação das quadrilhas dentro do Ibama de Mato Grosso? O procurador federal Elielson Ayres Souza, que esteve à frente da Operação Curupira e comandou o Ibama no estado interinamente por dois meses, não tem dúvidas: “O risco é total”. Apesar de afirmar que a operação desmantelou 90% dos crimes ambientais que existiam no estado e que cumpriu com suas metas iniciais (envolvendo também ações no Pará e em Rondônia), Elielson parece decepcionado com os efeitos nada duradouros de tão espetacular investida. “Sabe por que a operação não deu certo? Não mandaram mais procuradores a Mato Grosso para darem continuidade aos processos abertos”, reclama.
No Ibama de Cuiabá, apenas dois procuradores cuidam dos processos de 39 servidores. E com um estranho agravante. Segundo o ex-interventor da Curupira, que hoje trabalha na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, o procurador do Ibama responsável pela maioria dos processos disciplinares insiste que Elielson deponha em Cuiabá. Mas para lá, ele diz que não vai jeito nenhum. Alega falta de segurança na capital mato-grossense. “Meu foro é aqui no Rio. Eu não tenho obrigação de ir. É só mandar o processo para o Ibama, que destaca um procurador para me ouvir e em dois minutos eu falo todos os fatos, de todos os servidores, para eles concluírem esses processos”.
Elielson conta que todos os meses é chamado para depor, no Rio, sobre processos criminais da mesma Curupira e de outras operações de que participou em anos anteriores. O procurador do Ibama de Cuiabá, Edivaldo Souza, se defende dizendo que se ele seguir essa sugestão de Elielson pode ter os processos anulados na Justiça. Ele se diz preocupado ao contrariar a lei dos servidores públicos, que dá direito aos réus de acompanharem os processos. “Eu não posso bancar que todos os servidores presos na Operação Curupira possam ir ao Rio de Janeiro assistir ao depoimento do procurador Elielson, e esse é um direito deles”, argumenta. Edivaldo garante que esse impasse será resolvido, e, por não comparecer a Cuiabá, Elielson pode responder um processo administrativo e sofrer danos patrimoniais por conta do atraso nos trabalhos.
Mas a falta dos depoimentos de Elielson não é a única responsável por tanta demora. “A maioria dos servidores apontados pela Operação Curupira mora no interior, em locais de difícil acesso, o que piora nosso contato”, diz Edivaldo. “Isso aqui é um trabalho hercúleo, estou cansado”, admite ele, que acredita serem necessários, no mínimo, mais três procuradores para ajudá-lo a dar andamento aos processos. Marcus Barros, presidente do Ibama, avisa que quer tudo pronto até junho.
Na esteira de decepções pós-Curupira, Elielson destaca que a falta de segurança para os servidores lotados no norte de Mato Grosso ainda os impede de realizar seu trabalho, sem falar no número insuficiente de pessoas e de recursos financeiros. “O Ibama continua não funcionando, como não funcionava antes da Curupira”, diz.
Parceria com o estado
O atual superintendente do Ibama de Cuiabá, Paulo Maier, se defende das críticas e diz que a reestruturação das unidades em Mato Grosso ainda está em curso. “Não são 60 dias de intervenção que permitem transformar a instituição”. Segundo ele, a Curupira serviu, entre outras coisas, para identificar uma série de falhas no Ibama, como a falta de integração entre as gerências, problemas de comunicação, descumprimento de hierarquias dentro do órgão e má distribuição de pessoal e recursos nas unidades. “Em alguns lugares, tínhamos escritórios muito próximos em área não tão importante. E outros sem estrutura em regiões prioritárias”, diz.
As mudanças só são viáveis pela diminuição de atribuições do Ibama desde que foi firmado, em setembro de 2005, um termo de cooperação com o governo do estado, transferindo parte das responsabilidades do instituto para a Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema). “Estamos assumindo melhor as nossas tarefas. E, graças a isso, hoje Mato Grosso tem uma estrutura de gestão ambiental muito maior”. Mesmo sendo um pouco precipitado falar dos efeitos dessa integração antes da época crítica de cortes, José Geraldo Araújo, gerente do Ibama de Sinop, diz que, no dia-a-dia, já é possível observar uma certa redução da ilegalidade. “A Sema tem agora instrumentos que podem vir a contribuir com a diminuição do desmatamento, como exigir informações sobre a destinação de qualquer material lenhoso, inclusive serragem”, diz.
Penúria de sempre
Internamente, o Ibama tem sentido as conseqüências da operação. Às vezes com alívio, mas sempre na penúria. “O volume de trabalho diminuiu. Agora que estamos passando toda parte de documentos para o estado, dá para trabalhar melhor, com fôlego para fiscalização e educação ambiental”, relata José Raimundo Martins Junior, gerente do Ibama em Juína. Mas a transferência de atribuições tem um outro lado. No norte de Mato Grosso, em suas atividades de campo, os próprios servidores reconhecem que ficaram desmoralizados, pois aos olhos da sociedade perderam poder e continuam sem dinheiro.
A gerência de Juína, aliás, ameaçou fechar as portas durante a operação Curupira por não ter condições de funcionamento, e só voltou atrás com as promessas do então interventor Elielson, sobre mais investimentos e a chegada de novos engenheiros. Espera até hoje. Além disso, tem funcionado sem telefone e internet, o que impede os servidores de dar andamento a denúncias e processos, integrados aos sistemas de informação do instituto.
A poeira da operação Curupira baixou, e às vésperas da seca na Amazônia pouca coisa do pacote de medidas que transformariam a gestão florestal saiu do papel. “Efetivamente, nada mudou”, conta Araújo. “O governo ainda não conseguiu implantar os principais documentos propostos, como o DOF [Documento de Origem Florestal, no lugar das ATPFs], que só entra em vigor em junho, quando a operação fizer um ano”.
Além do mais, a carência de servidores ainda é um entrave. Em novembro do ano passado, Mato Grosso recebeu 60 novos analistas ambientais, mas as gerências executivas pedem mais. A nova promessa é de que cheguem 30 servidores, o que, mesmo assim, não porá fim às demandas. “Há carência de presença do estado por aqui. Falta Ministério Público, Polícia Federal, Previdência e falta Ibama. Sobram madeireiros e pecuaristas, com trator e correntão”, desabafa Araújo.
* Colaborou com esta reportagem Eric Macedo.
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