Cansado de dedicar suas aflições à derrocada da ética no Brasil? Que tal variar, se preocupando com algo ainda maior, mais grave e mais complexo?
O planeta caminha velozmente para uma crise climática sem precedentes. Crise gerada pelo ser humano, que tem consciência do problema e, conseqüentemente, o dever moral de assumir sua responsabilidade e tentar reverter o quadro. Omitir-se, a esta altura, é simplesmente um crime contra a humanidade.
A conversa parece excessivamente filosófica. E é. Mas começa a fazer parte da agenda de cientistas que estão na linha de frente das negociações políticas sobre mudanças climáticas, cujo novo round está marcado para novembro, quando acontece em Nairobi, Quênia, a 12ª Conferência das Partes da Convenção de Mudanças Climáticas da ONU (COP-12).
Nos dias 30 e 31 de agosto, aconteceu no Rio de Janeiro um dos muitos encontros preparatórios para a COP, mas este com uma diferença clara de temática: a ética foi o ponto central. “As mudanças climáticas escondem sua real dimensão ética atrás de discussões econômicas e científicas. O problema do clima é urgente, já está matando muita gente e vai matar ainda mais. E o mundo não vai reagir rápido o suficiente, a menos que o vejamos como um dever ético e moral, que envolve as noções justiça e eqüidade. Os grandes países só vão se mexer quando considerarem que esta é uma causa justa”, explica Don Brown (foto), diretor do Consórcio Interdisciplinar para Políticas Ambientais da Pennsylvania, nos Estados Unidos.
Brown foi um dos fundadores, em 2004, do programa “Ethical Dimensions of Climate Change (EDCC)”, sediado na Universidade da Pennsylvania, com o apoio da ong Rock Ethics Institute. Ele próprio é um exemplo da interdisciplinaridade que propõe para o estudo dos efeitos do clima: engenheiro, tem mestrado em Filosofia e nos anos 90 participou da política externa de Bill Clinton na área das Mudanças Climáticas.
O encontro do Rio foi organizado em parceria com o Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas (FBMC) e a Coppe/UFRJ, com apoio da Fundação Ford. A intenção é colocar na mesa de negociações, para todos os governos envolvidos, questões cruciais sobre sua responsabilidade diante das ameaças e danos já causados pelo aquecimento global. Quem deve investir, quanto e como, na diminuição das emissões de gases do efeito estufa? Quem tem o dever moral de ajudar os países pobres para que se protejam das ameaças ou mitiguem prejuízos com furacões, enchentes, desertificação, quebras de safra? Qual é o peso ético de negligenciar seu dever, atrás de desculpas como as incertezas científicas que ainda rondam o aquecimento global, ou sob o argumento “enquanto todos os outros não se mexerem, não me mexo também”?
Muitas dessas perguntas têm endereço certo: os Estados Unidos, maior produtor de gases poluentes e único país desenvolvido a não assumir metas de redução das emissões no Protocolo de Kyoto. Mas o Brasil também está no centro da controvérsia. Ao lado de China e Índia, ele compõe o grupo das nações que atualmente contribuem muito para o aquecimento global, e só foram poupadas de metas em Kyoto porque sua industrialização é mais recente, o que as livra da responsabilidade histórica pela concentração de gases na atmosfera.
Desmatar ou não desmatar?
Com este salvo-conduto, a posição oficial brasileira tem sido a de investir em projetos do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), financiados por países ricos através da compra de créditos de carbono. Especialmente reflorestamento e geração de energia limpa e renovável. No entanto, aumenta a pressão para que o país assuma também o compromisso de conter o maior processo de desmatamento em curso no mundo.
O problema divide especialistas dentro do próprio governo. Em sua apresentação no encontro sobre Ética e Mudanças Climáticas, José Domingos Gonzalez Miguez, coordenador de Mudanças Climáticas do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), analisou as responsabilidades de cada país pela emissão de gases poluentes e repetiu diversas vezes que seus cálculos deixavam de fora o fator desmatamento. Questionado sobre isso, reagiu com impaciência: “Ninguém calcula o desmatamento promovido pelos países ricos nos séculos passados. Depois que comprovamos que o aquecimento global se deve aos gases acumulados na atmosfera ao longo do tempo, e não das emissões atuais, é imoral o Greenpeace pressionar o Brasil na Convenção, alegando que é o desmatamento que desequilibra o clima”, argumentou.
Eis uma boa questão ética para discussão: o desmatamento brasileiro seria defensável porque os ricos também já desmataram? Há diferença ética entre desmatar sem conhecer a realidade do aquecimento global, como nos séculos passados, e desmatar quando já se conhece o problema, como ocorre hoje?
Luiz Pinguelli Rosa, secretário-executivo do FBMC e organizador do evento ao lado da professora Maria Silvia Muylaerte, da Coppe (ambos na foto), tem outra visão. Acha que o Brasil tem o dever de “estabelecer metas internas ao país para redução progressiva da taxa de desmatamento, com base nos resultados de redução obtidos em 2005 e 2006”, como afirmou em nota oficial sobre o encontro. Mas discorda da postura de “súplica por ajuda internacional” para isso. É problema e dever nosso, em resumo.
Por sua vez, o Ministério do Meio Ambiente demonstrara, dias antes, que defende ajuda internacional para o Brasil desmatar menos. Seu secretário de Biodiversidade e Florestas, João Paulo Capobianco, anunciou em Roma que o Brasil vai apresentar à COP-12 uma proposta de metas de redução em troca de incentivo financeiro.
É um bom momento para a área ambiental tentar avanços nesse terreno. Isso porque o clima no Ministério da Ciência e Tecnologia não anda nada bom desde que o escândalo dos sanguessugas revelou também a compra de “ônibus digitais” superfaturados. Politicamente enfraquecido, o MCT enfrenta uma Marina Silva em seu melhor momento. Foi a única ministra petista a sair incólume de um governo em que a corrupção derrubou desde o chefe da Casa Civil até o ministro da Fazenda, e reduziu a taxa de desmatamento por dois anos seguidos. Exemplo de como questões éticas podem influenciar discussões sobre mudanças climáticas…
Ricos x pobres
O convidado mais ilustre presente ao encontro do Rio foi Mohan Munasinghe, professor da Universidade de Yale e co-presidente do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática: (IPCC, na sigla em inglês).
Seu discurso confere à questão ética contornos bem mais agudos. Enfatiza as urgências sociais para falar de um mal pelo qual passa a humanidade, definindo por ele como “barbarização”, o que inclui degradação ambiental, polarização social, mudanças climáticas e terrorismo. A experiência de ser passageiro de vôos internacionais para fazer a travessia do Sri Lanka ao Brasil, com suas feições mouras, apenas reforçou em Munasinghe a impressão de que o ambiente de nossa civilização não é dos mais arejados.
O que isso tem a ver com as mudanças climáticas? Tudo, a começar pelos impactos que os países mais pobres sofrem com o desequilíbrio térmico. Conselheiro do governo do Sri Lanka para a política energética, ouviu do presidente a pergunta fatídica: “O que fazemos?”. Ao que respondeu, convicto: “Cresça, rápido!”. Ele explica: “Somente o desenvolvimento econômico pode reduzir a vulnerabilidade do país aos impactos do caos climático”.
E este é o grande dilema ético da humanidade. Em termos simplificados: países pobres, ou “em desenvolvimento”, precisam crescer para reduzir suas desigualdades. Têm o direito, e até o dever, de fazê-lo. Acontece que o desenvolvimento econômico, nos moldes atuais, é inimigo do clima e do equilíbrio ambiental. O que fazer, então? Dizer aos países pobres: “Fiquem como estão, pois seu desenvolvimento é uma ameaça ao futuro da humanidade”? Certamente que não. Por outro lado, há problemas também em decidir o contrário, ou seja, que os ricos devem crescer menos (isto é, poluir menos) para que os pobres possam alcançar maior bem-estar social (poluindo um pouco mais). Quem explica é Marco Túlio S. Cabral, da Divisão de Política Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Ministério das Relações Exteriores (mas que ressaltou estar licenciado, e ter ido ao evento na condição de estudante de Filosofia):
“Se tivéssemos, hipoteticamente, que interromper completamente a emissão de ozônio, seria um grande impacto viver sem geladeira. Mas é algo imaginável, que poderia ser feito. E se tivéssemos que interromper a emissão dos gases do efeito estufa? É inimaginável. Isto congelaria a economia mundial e causaria tantos prejuízos à população que não poderia ser feito”, afirma, definindo sua compreensão da dimensão ética do problema: “Recebemos a biosfera dos antepassados e temos o dever de passá-la à frente em condições razoáveis. Que condições são estas, é difícil estabelecer. Mas é preciso discuti-las”.
Incerteza científica
Uma coisa é certa: “Ignorar grandes riscos é eticamente condenável”. Palavra de Carlos Nobre (foto), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Recado para o governo Bush, a mais perfeita tradução de comportamento anti-ético encontrada pelos participantes.
Não bastasse a recusa em aderir às metas estabelecidas pelo Protocolo de Kyoto, o país se utiliza do pretexto da “incerteza científica” para não assumir responsabilidades sobre os estragos que o aquecimento global já vem causando. Chamado a apresentar o tema, Carlos Nobre desconstruiu certeiramente este argumento, ao mostrar que, ainda que os modelos climáticos carreguem certo grau de imprecisão, as bases físicas do fenômeno são por demais conhecidas, e cada vez mais evidências vêm à tona: o ser humano é sim responsável pelo desequilíbrio climático. “Estamos afastando o planeta de seu funcionamento normal”, resume Nobre.
O cientista apresentou um estudo que comprova que o aquecimento de 0,5 grau no Atlântico Norte Tropical, provocado pelo homem nos últimos 50 anos, aumentou em 25% a intensidade do furacão Katrina, que atingiu Nova Orleans no ano passado. “É uma conclusão científica robusta. Quanta gente morreu por causa disso? E de quem é a responsabilidade por pagar as perdas? Nos próximos anos, vêm à tona mais números, e em dólares. Emerge daí uma possibilidade de apontar o aquecimento como causa dos prejuízos e haverá demanda para que essa responsabilidade seja explicitada”, espera.
Um mundo diferente
Como toda boa discussão ética, o encontro levantou muito mais perguntas do que respostas. Solução, então, é difícil propor. Algumas parecem pura utopia. Como a mudança do padrão de consumo a que os países ricos se acostumaram, e que os pobres almejam alcançar. A generalização da receita “casa, carro na garagem, TV e computador” é simplesmente inviável. “A raiz da questão do clima está no consumo abusivo de energia. Crescer é necessário para ter mais casa para as pessoas, mais emprego. Mas não é necessário haver um número tão grande de automóveis privados”, defende Pinguelli.
Mohan Munasinghe, por sua vez, acredita em uma “cidadania global”, capaz de mobilizar demandas dos povos e influenciar os processos decisórios, graças às novas tecnologias de comunicação. Utópico? Sim, mas será que já não chegou de fato a hora de começar a falar em utopias?
Uma coisa é certa: levar a dimensão ética para o debate público em torno da sobrevivência do planeta só pode ser benéfico. E é aí que entra um eixo fundamental, pouco discutido pelo grupo: a educação. Quieta no seu canto durante todo o evento, a jornalista Kristina Michahelles estava lá buscando subsídios para seu novo projeto. Autora de “O que está acontecendo com a nossa Terra?” (IBGE, 2002), ela agora foi chamada pela Agência Espacial Brasileira (AEB) para produzir um livro destinado a professores de escolas públicas do Ensino Médio. O tema: mudanças climáticas. A tiragem será de 177 mil exemplares e ele deve ser lançado até o fim do ano.
Guardando a entrada do Centro de Convenções do Hotel Flórida, no Rio, Josenaldo Marques dos Santos (foto) não sabia o que se passava lá dentro. Mas, indagado sobre a importância das mudanças climáticas, listou facilmente seu conhecimento sobre o assunto: o buraco na camada de ozônio, o risco de calor excessivo e de doenças de pele. A solução? “Reflorestamento e conscientização”.
Ao trabalho, portanto. O mundo não pode esperar.
* Lorenzo Aldé é jornalista e editor do site do Canal Futura (www.futura.org.br).
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