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Febre Amarela e Peste Negra

Vivendo no Brasil-picadeiro de Lula e Blairo Maggi, onde Dilma Rousseff é a mãe do PAC e a sogra do Meio Ambiente, talvez só mesmo uma pandemia para nos salvar de nós mesmos.

26 de maio de 2008 · 17 anos atrás
  • Fabio Olmos

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

“Com este programa vamos adentrar as entranhas da Amazônia”.

Luís Inácio Lula da Silva no lançamento do Plano Amazônia Sustentável (sic) (OESP 09/05/2008, A19)

A Amazônia realmente não merece o Brasil.

Não devo ser o único que imaginou nosso presidente falando isso pilotando um trator de esteira puxando um correntão, no estilo Blairo Maggi. O governador daquele estado responsável por 40% do desmatamento amazônico que diz que a história toda é ilusão de ótica ou coisa de satélite vesgo.

Maggi capitaneia os esforços contra a resolução 3545 do Banco Central, que condiciona o crédito rural à regularidade ambiental das propriedades, marcada para se tornar obrigatória no 1º de julho. Ganha o dinheiro apenas quem cumpre a lei, o que parece muito justo e natural, exceto para a marginália. Como apenas 20% dos produtores de Mato Grosso têm terras regularizadas – a história se repete no Pará, Rondônia, etc, paraísos da grilagem – Maggi, o governador de Rondônia, Ivo Cassol, & a bancada ruralista em peso, com apoio do ministro da agricultura Reinhold Stephanes pressionam para que o atual estado de coisas – ilegalidade subsidiada com dinheiro do contribuinte – se mantenha.

Vamos ver o quanto Lula resistirá às pressões desta banda do crime organizado.

Não à toa editorial do The Independent (15/05/2008) diz sem meias palavras que “uma coisa tem que ficar clara. Esta parte do Brasil é importante demais para ser deixada aos brasileiros. Se perdermos as florestas perderemos a batalha contra as mudanças climáticas”. O interessante é ver os britânicos preocupados enquanto por aqui as coisas caminham como se não estivéssemos entre os principais prejudicados caso o clima mude. Ganância com ignorância pode matar.

A pendenga sobre a 3545 me faz acreditar só fatores externos, como um bom surto de aftosa, colocarão um freio nos irresponsáveis que abrem fazendas com crédito barato do BASA e contam com apoio irrestrito do Bahamas, digo, do Congresso Nacional.

Tanto Lula como Maggi às vezes escorregam em seu ato circense de justificar a destruição deste lado do Atlântico enquanto posam de governantes preocupados com o meio-ambiente. Um dos momentos de sinceridade mais interessantes foi quando Maggi defendeu o desmatamento para abrir novas áreas agrícolas e resolver a atual crise de alimentos.

O factóide lembra que a tal crise dos alimentos era previsível. Quem fez Ecologia 101 conhece o conceito de capacidade de suporte. Faz algumas décadas que sabemos que se a China e a Índia começarem a consumir como os USA iremos precisar de 3 ou 4 outros planetas para dar conta (sugestão: The Ostrich Factor, de Garrett Hardin). Bom, os chineses e indianos começaram a comer mais e isso, associado à perda de áreas agrícolas e safras (cortesia de um clima cada vez mais instável), petróleo caro e à política americana para o etanol está tornando a comida mais cara.

Isso pode ser uma boa oportunidade para resolver a epidemia de obesidade que grassa nas partes mais bem alimentadas do mundo, mas nos grotões como o Haiti e a Libéria a fome está gerando instabilidade política. Nada de novo sob o sol. A fome resultante de mudanças climáticas sempre foi estopim para o colapso de regimes e nações. E civilizações..

Dado o futuro incerto é interessante ver que às vezes alguém tem a coragem de escrever o que é tão óbvio quanto politicamente incorreto. Por exemplo:

“ … o eternamente impopular reverendo Malthus estava perto da verdade quando, no final do século 18, argumentou que o crescimento populacional acabaria ultrapassando a produção de alimentos. A suposição era que a agricultura industrial deveria tornar a fome impossível. Mas acontece que esta agricultura tem dependido fortemente do petróleo barato e, com a perda de terras agriculturáveis como resultado da mudança para biocombustíveis, os limites à produção de alimentos estão voltando. Muito mais que planos fantásticos para energia renovável, precisamos garantir que contraceptivos e aborto estejam disponíveis gratuitamente em todos os lugares. Um mundo com menos gente seria um lugar bem melhor para lidar com as mudanças climáticas do que o mundo maciçamente superpovoado para o qual rumamos agora”. John Gray, Diante da Realidade Insuportável, (OESP 27/jan/2008, J7).

Antes que alguém jogue a primeira pedra não custa lembrar que, de atuais 6,5 bilhões, seremos 9,2 bilhões em 2050 e a maior parte do crescimento populacional se dará em países que deveriam pensar melhor. Como Carlos Penna já escreveu por aqui temos um pepino demográfico e não adianta vir com miragens como “desenvolvimento sustentável”, coisa tão crível quanto fadas (ooops, devo ter matado uma).

Embora recursos naturais ajudem, as verdadeiras determinantes das sociedades mais prósperas e democráticas são mais educação de qualidade – especialmente para as mulheres – e menos natalidade – pela legalização do aborto e acesso a contraceptivos (sugestão de leitura: Sexo e Poder, de Göran Therborn).

Adequar o efetivo populacional a uma menor capacidade de suporte é uma boa idéia. O problema é como fazer isso. As mulheres nos grotões deixarem de ser utensílios domésticos e terem acesso total à educação e controle sobre sua vida reprodutiva seria um bom começo. Mas os adeptos do sofrimento alheio defendem que a contracepção é o bilhete para o inferno na outra vida, nos deixando com o inferno nesta e a espera inútil por um redentor bastante atrasado.

Por outro lado, a capacidade de suporte também poderia ser elevada com culturas geneticamente modificadas, mas aí são os ecologistas que nos ameaçam com o inferno imediato. O que fazer ?

Alguns amigos sugerem que poderíamos reduzir nossa população nos tornando comunistas. Stálin, Mao, Pol Pot e os Kims (pai e filho) foram muito eficientes em reduzir as populações de seus países ao eliminarem os ideologicamente inconvenientes e fazerem quem não era da nomenklatura passar fome. Fidel, eterno modelo da esquerda nacional executou quase 131 pessoas por 100 mil habitantes (Pinochet eliminou 24 e nossos generais – que Lula deu para elogiar – 0,3), mas preferiu a transferência do problema, exportando 15% da população.

Se nossos ex-guerrilheiros – merecedores antes de menções honrosas ao Darwin Awards do que de bolsas-ditadura – tivessem realizado seu sonho de poder 30-40 anos atrás, hoje talvez tivéssemos estatísticas que se aproximassem dos feitos de seus modelos.

O problema com esta abordagem, por mais que agrade alguns, é que populações humanas têm uma impressionante capacidade de se recuperar de crises demográficas, como a própria China mostra. Dizem alguns antropólogos (os que fazem Ciência) que é uma característica de nossa estratégia evolutiva como espécie invasora e oportunista (mais uma sugestão: Genes, Memes and Human History, de Stephen Shennan), tão bem descrita no monólogo do Agente Smith no primeiro Matrix (…you are not mammals…).

O que lembra que espécies invasoras e oportunistas também podem ser fator de controle demográfico. Hoje vivemos uma epidemia de dengue que se sucede a um surto de febre amarela, coisas na qual a atual adminstração infelizmente não pode colocar placas de inauguração.

Ambas são doenças de origem africana transmitidas nas áreas urbanas por um mosquito também de origem africana que, com a também africana malária, têm um longo histórico em limitar populações humanas e, de fato, impediram a ocupação da África por colonos europeus. Mais, boa parte das grandes regiões selvagens neste planeta chegou ao século XX graças à malária, à doença do sono e outras que limitavam as populações de humanos e de seu gado. O controle destas doenças foi determinante para o grande assalto atual às florestas tropicais.

Outros antropólogos (os que dizem que fazem Ciência) afirmam que a ocupação de áreas perturbadas por espécies ruderais e oportunistas na esteira da detonação causada por “povos tradicionais” aumenta (e gera) biodiversidade e é algo a ser promovido. A este juízo de valor não resisto lembrar que o tráfico de escravos também aumentou a biodiversidade das Américas trazendo não apenas a trinca dengue – febre amarela – Aedes, mas também a malária, vários nematóides e platelmintos que são nossos amigos íntimos, a barata (que se chama Periplaneta americana por erro similar ao que nomeou o curió Sporophila angolensis), a simpática lagartixa de parede e um bom número de capins.

Nós retribuímos à África com a curiosamente nomeada Tunga penetrans. Nos anos 1890 o bicho-de-pé causou uma epidemia na Tanzânia que, segundo o explorador Oscar Baumann, eliminou vilas inteiras porquê as pessoas não sabiam do que se tratava e acabavam com septicemia. Ignorância mata.

A febre amarela introduzida nas Américas teve enormes impactos sobre a biodiversidade nativa. Até hoje, ciclicamente, dizima as populações de macacos, que são mais vítimas dela do que nós. As baixas densidades de primatas em partes do país, como setores da Mata Atlântica, têm sido atribuídas a epidemias presentes e passadas combinadas ao gosto de alguns por um bife símio.

A longa convivência na África faz com que negros com a doença sofram mortalidade média bem menor que outros grupos étnicos (Evolução Darwiniana 101). Isso foi determinante para a derrota das tropas francesas no Haiti durante a revolta que gerou a primeira nação quilombola, famosa por também ser uma hecatombe ambiental que faz as pessoas comerem tortas de barro no café da manhã por falta de comida de verdade. A perda de tropas para o vírus também estimulou os franceses a vender a vasta Louisiana para os nascentes USA, e a retirada do império francês das Américas.

É interessante imaginar como seria o mundo hoje sem não houvesse febre amarela nas Américas.

Espécies introduzidas e invasoras são um dos maiores problemas em vários ecossistemas – como os Pinus nos Pampas – e seu controle difícil e caro, mas possível em algumas situações. O Aedes aegypti foi considerado extinto no Brasil em 1955, graças a Oswaldo Cruz (o da Revolta da Vacina, demonstração maior da imbecilidade nacional) e Emílio Ribas, mas apareceu para ficar em 1976 (sob Ernesto Geisel), ganhando a companhia do asiático Aedes albopictus em 1986. Um dos maiores legados do entomófilo presidente José “Marimbondos de Fogo” Sarney.

Apesar da febre amarela ter sido um freio à ocupação de áreas e dado muito trabalho aos empreiteiros de obras do Canal o Panamá à Ferrovia Madeira-Mamoré (hoje apodrecendo em Rondônia) – provavelmente retardando o desmatamento de algumas regiões – a doença que se tornou famosa por limitar populações humanas é a Peste Negra.

Em 1347, após um período de clima anormal na Ásia Central, ratos introduzidos da Ásia carregando pulgas contaminadas com uma bactéria originária das estepes da Mongólia deflagraram uma epidemia que, por ser o mundo há tempos globalizado, ressoou por três continentes. A pandemia vitimou metade da China e pelo menos 1/3 da população da Europa. Em algumas áreas a mortalidade foi superior a 70%.

A invulgar violência de um patógeno que encontra presas novatas aliada às peculiaridades sócio-comportamentais dos europeus medievais católicos (como abominarem o banho – coisa de pagãos e muçulmanos) fez desta uma das maiores pandemias da história, com efeitos ramificados.

A Europa dos 1300s estava presa a amarras malthusianas. Após um período de explosão demográfica, o equilíbrio entre população e recursos era tênue. Em quase todo o continente as condições de vida se deterioravam (também como resultado de alterações climáticas), a pobreza e má-nutrição dominavam, a mobilidade social era rara. Novas idéias e modos de pensar eram considerados heresia e seus propagadores eliminados.

A Peste foi uma das maiores tragédias da história do continente, mas os que sobreviveram a ela construíram um mundo melhor. A mortalidade da “Era de Ouro das Bactérias”, entre 1347 e 1450, ajudou a Europa a sair de sua paralisia. A adequação à capacidade de suporte, com populações menores, significou mais recursos para os sobreviventes e um uso mais racional da terra que elevou sua produtividade. Menos trabalhadores significaram maior valor para a mão de obra e maiores salários e opções de emprego, e um estímulo à inovação e invenções, de moinhos à água à imprensa, que automatizaram atividades que eram manuais. A economia se diversificou, o capital passou a ser utilizado de forma mais intensiva, foi criada uma onda tecnológica e os padrões de vida se elevaram. O trauma das mortes levou os sobreviventes a ver o domínio da igreja católica de forma mais crítica e a formas menos bitoladas de ver o mundo.

Esta análise histórica não é minha e estimula boas meditações, como o quanto da Renascença pode ser considerado filha da Peste (mais uma sugestão de leitura: The Great Mortality, de John Kelly).

É irônico que uma bactéria turbinada tenha contribuído para o surgimento de sociedades laicas, humanistas e modernas a partir de um crowdeado atoleiro autoritário-carola. Mudanças positivas deveriam, em teoria, ser decididas pela sociedade e conduzidas de acordo com o contrato social. Controlar a exuberância reprodutiva, usar os recursos naturais de forma sábia e privilegiar a educação e a responsabilidade individual ajudam a criar sociedades mais sadias e resilientes. Infelizmente temos o pendor para avançar apenas quando movidos por crises.

É bastante provável que as próximas décadas verão, entre outros desastres auto-infligidos, a perda da maior parte da Amazônia e o conseqüente fechamento da torneira que abastece com chuvas nossas principais áreas agrícolas. Parte de uma crise anunciada graças às mudanças climáticas combinadas ao business as usual dos blairos e ivos da vida privatizando os lucros da destruição enquanto socializam os prejuízos.

No circo planetário onde todos querem ter tamanho chinês e consumo americano, vivendo em um Brasil-picadeiro onde Dilma Rousseff é a mãe do PAC e a sogra do Meio Ambiente, talvez só mesmo uma pandemia para nos salvar de nós mesmos.

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