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Território de caça

Mudança de hábito de índios canadenses, no século XVII, inspirou um dos artigos mais famosos da economia das instituições, fundamental para o debate ambiental.

4 de março de 2005 · 20 anos atrás
  • Eduardo Pegurier

    Mestre em Economia, é professor da PUC-Rio e conselheiro de ((o))eco. Faz fé que podemos ser prósperos, justos e proteger a biodiversidade.

Os índios Montagnais habitam até hoje as províncias de Labrador e Quebec, no Canadá. O nome, que significa montanhista, foi dado pelos franceses, que com eles cultivaram um proveitoso comércio de peles, desde o começo do século XVII. Eles também eram chamados de Kebik, provável origem do nome Quebec. Por viver em uma região de clima duro e solo ruim, as atividades de caça e pesca sempre foram importantes para a sua sobrevivência, tanto para comida como para agasalhos, feitos de pele.

Estima-se que a população dos Montagnais, antes dos europeus chegarem, chegasse a 10 mil pessoas. Viviam divididos em pequenos bandos e clãs seminômades em torno da costa norte do rio Saint Lawrence, que margeia as cidades de Montreal e Quebec. Dele, apanhavam salmões e enguias, além de abater focas em áreas próximas. Nas florestas, entre as presas mais procuradas estavam o porco-espinho (que consideravam uma iguaria), Caribou e Moose (duas espécies de alces), urso e castor.

Lá para 1609, quando os franceses chegaram pra valer, a vida dos Montagnais mudou muito. Eles queriam peles de castor e em troca acenavam com objetos metálicos extremamente atraentes para os índios, como panelas, facas, lâminas de machado e ferro para lanças e pontas de seta. Entre outras coisas, eles serviam como armas que, no início, deram grande vantagem aos Montagnais nas batalhas contra seus inimigos, os Iroquois. Diga-se, essas guerras territoriais eram ferozes e anteriores a chegada dos europeus.

Os Montagnais dispunham-se a pagar em peles um alto preço pelos bens dos franceses. E, para financiar esse comércio, aumentaram seu esforço de caça muito além daquele necessário para o seu próprio consumo. Como era de se esperar, essa mudança reduziu o número dos animais mais procurados. O novo problema, a caça rara, levou a uma nova forma de organização. Os Montagnais passaram a dividir seu território de caça em lotes alocados entre as famílias da tribo. Em torno de 1650, esse sistema de direito de propriedade estava estabelecido, como solução para evitar que os animais mais valiosos fossem dizimados.

Essa história foi documentada por Eleanor Leacock, antropóloga americana, no livro O “território de caça” dos Montagnes e o comércio de peles (The Montagnes “hunting territory” and the fur trade). Mas foi o economista Harold Demsetz que a usou como principal exemplo em um artigo clássico chamado Em direção a uma teoria dos direitos de propriedade (Toward a theory of property rights), publicado na American Economic Review, em 1967. Esse é um dos trabalhos fundadores da chamada economia das instituições. Essa área, em poucas palavras, procura responder a pergunta: que regras e formas de organização levam aos resultados socialmente mais desejáveis?

Segundo Demsetz, a criação de novas formas de direito de propriedade costuma ser uma resposta das sociedades ao aparecimento de novas tecnologias, produtos e hábitos. Estes geram novos benefícios e custos sociais. Como fazer com que boa parte dos benefícios fique com os indivíduos ou grupos que o geraram? Igualmente, como impedir que custos localizados sejam impostos a toda a sociedade? Ou, resumindo em economês, como internalizar benefícios e custos na esfera de quem os gerou? Dessa forma, a função dos direitos de propriedade seria incentivar a criação de valor e desestimular o aumento dos custos.

Na definição do autor “os direitos de propriedade delimitam e transmitem os benefícios e os males que cada um pode fazer a si mesmo e aos outros”. Repare que eles não são um pacote fechado, mas, sim, um conjunto de direitos que pode ser aumentado ou limitado à conveniência da sociedade. “O direito de um produtor prejudicar um concorrente lançando um produto superior costuma ser admitido, mas não o de lhe dar um tiro. Um homem pode ter o direito de legítima defesa contra um invasor, mas ser proibido de vender abaixo de um preço mínimo”, exemplifica Demsetz, para mostrar a flexibilidade do sistema. Uma versão ambiental e brasileira vai na linha, um fazendeiro pode vender suas terras, mas não desmatar mais que 80% delas, como é a nossa lei em vários estados.

Toda sorte de pacotes de direitos de propriedade podem ser imaginados e tentados. No fundo, trata-se de um processo de tentativa e erro, na busca de regras que melhorem o bem-estar geral. No caso dos Montagnais, as reservas familiares funcionaram para minimizar o problema do excesso de caça, De nada adiantaria criar direitos ou territórios de caça individuais, já que dada a “tecnologia” e o costume dos interessados, a atividade era realizada em pequenos grupos. Nessa situação, direitos individuais seriam um complicador desnecessário ao objetivo.

Em compensação, no mundo de hoje, impedir a propriedade individual de uma empresa pode ser a melhor maneira de levá-la à falência. O leitor provavelmente conhece várias histórias de patrimônios destruídos quando o sujeito que o originou se aposenta ou morre e a família passa a administrá-lo em regime de propriedade comum. Por isso, vale a pena a existência de um sistema de direitos de propriedade individual, mais complicado e igualmente mais sofisticado, que evite esse desfecho.

Demsetz lembra que “a questão da propriedade de terras entre povos nativos fascina antropólogos. Ela tem sido um dos grandes campos de batalha intelectuais na tentativa de avaliar a ‘verdadeira natureza’ do homem, livre dos constrangimentos ‘artificiais’ da civilização”. Ele defende que a sua teoria explica boa parte das diferenças na forma desses povos administrarem a terra, que muitos atribuem a questões culturais. Em cada sociedade, a evolução histórica dos direitos de propriedade seria uma solução potencialmente universal, por internalizar com eficiência os novos benefícios e males causados pela mudança dos gostos e dos processos produtivos.

Como comparação e prova do seu argumento, cita os índios das planícies do sudoeste norte-americano. Entre eles, não houve delimitação de territórios de caça similar a dos Montagnais. A explicação é que nessa área não havia animais de grande valor comercial. Mais ainda, a fauna das planícies do sudoeste circula entre grandes áreas, o que implica que delimitar áreas não premiaria o clã proprietário que caçasse com moderação. Estabelecer um sistema de direitos de propriedade pode custar caro. Implica, entre outras coisas, criar mecanismos de solução de conflitos (cortes) e defesa desses direitos (polícia). Eles só são criados ou evoluem quando surge a necessidade.

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