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A Torre Eiffel na Dutra

O Procurador da República carioca Maurício Andreiuolo descobriu como defender nosso patrimônio cultural e o meio ambiente, com eficiência e numa tacada só.

2 de fevereiro de 2005 · 20 anos atrás

Pode não parecer óbvio, mas cultura, arte e meio ambiente são intimamente ligados. Tomemos como exemplo a criação do primeiro Parque Nacional do mundo, o Yellowstone National Park, em 1872, que tinha como objetivo preservar não o meio ambiente, mas o espetáculo que representava a bela paisagem de cânions para as gerações presentes e futuras. A prova de que essa idéia sobrevive até os dias atuais é que os órgãos do Ministério Público especializados na tutela do meio ambiente são também os responsáveis pela tutela do patrimônio histórico, paisagístico e cultural. Para muitos, uma mistura que faz pouco sentido e só atrapalha o trabalho de promotores ou procuradores. Mas pode ser a forma mais criativa e eficiente de preservar ambos com apenas uma ação judicial.

O Procurador da República Maurício Andreiuolo, de 35 anos, há oito no cargo e há onze no MP, vê claramente essa relação. Graças a esta visão, a Rodovia Presidente Dutra conserva até hoje o seu único trecho arborizado: uma pequena reta, de alguns poucos quilômetros, na altura do município de Porto Real. Quem passa por ali pode ver marcadas com um “x” amarelo as árvores que a concessionária da rodovia queria derrubar. O pretexto era o de sempre: as árvores representariam um risco para os carros e caminhões, ameaçando cair bem no meio da pista. Além do mais, não eram árvores nativas e, portanto, não havia justificativa para a sua preservação. Andreiuolo conseguiu, em uma ação civil pública, uma liminar para impedir o corte das árvores. Segundo a sua tese, independentemente de as árvores serem nativas ou não, foram plantadas ali por algum motivo e fazem parte do patrimônio paisagístico do local, assim como a Torre Eiffel faz parte de Paris. A torre também não nasceu espontaneamente naquele local, foi construída ali para a Exposição Universal de 1900 e tornou-se o símbolo da cidade, apesar de muitos, inclusive o escritor Victor Hugo, terem pedido a sua derrubada, alegando ser uma monstruosidade.

É justamente esta visão que Maurício quer utilizar, para salvar o Rio de Janeiro do que acredita ser uma volta à barbárie. Segundo ele, o carioca apresenta já há algum tempo um comportamento típico das tribos bárbaras que vagavam pelo que hoje é o continente europeu, há mais de vinte séculos: nós não nos preocupamos em preservar o que temos; quando um lugar fica ruim, simplesmente migramos para mais adiante. Assim, o carioca vem perdendo o seu mais característico traço: a praia. Desde que o banho de mar começou no Rio de Janeiro, com a família real portuguesa, nós temos migrado em busca de uma praia que nos agrade, que nos deixe à vontade. Dessa forma, o local favorito do carioca, que já foi a Praia de Botafogo, cada vez mais se aproxima da Barra da Tijuca e do Recreio. Já foi Copacabana, não é mais. A Princesinha do Mar perdeu gradativamente seu encanto. O mesmo aconteceu com o cenário que um dia inspirou Vinícius e Tom Jobim a criar o símbolo imortal da feminilidade carioca. Ipanema também já não é mais a mesma. O Leblon então, nem se fale. Diante de tudo isso, o carioca não tratou de brigar para preservar o que tinha. Ele simplesmente colocou seu guarda-sol mais adiante.

Proteger as praias, portanto, não é apenas uma questão ambiental, é uma questão cultural, de identidade, afirma Maurício. A própria identidade do carioca, a sua alma, está na praia. Em nenhum lugar o carioca é mais carioca, lembra ele. Arrastões, despejo irregular de esgoto, línguas negras. Tudo isso não afeta apenas o meio ambiente do Rio de Janeiro, mas a cultura carioca também, ambos passíveis de tutela de acordo com a Constituição Federal. É justamente essa a briga de Andreiuolo: resgatar junto ao Judiciário a noção de que o fato sócio-cultural é passível de tutela jurisdicional, que anda um tanto esquecida.

Ele acredita ser possível compelir o Estado ou a própria União, através de ações judiciais, a manter as praias limpas e seguras. Afinal de contas, é o dever deles. Nada mais lógico, mas Andreiuolo sabe que é uma briga difícil e com poucas chances de vitória. Não importa. O mais importante é tornar a discussão pública, abrir os olhos da sociedade para o que ela está perdendo com a sua própria inércia e com a inércia do Estado.

Quando, no final do Governo Benedita da Silva, o tráfico mandou fechar as portas do comércio em Copacabana, Andreiuolo estava na rua. Um dos comerciantes o chamou para dentro de sua loja e fechou as portas de ferro atrás dele: “Entra aqui, Doutor, que o tráfico mandou fechar tudo”. De dentro da loja, Maurício ligou para seus colegas e convocou uma reunião de emergência: o Ministério Público tinha que se manifestar. Eles precisavam dar uma resposta institucional para a sociedade, com base no dano cultural causado à população por aquela inversão de valores forçada. Ninguém o apoiou. “Eles simplesmente não viam falta de juridicidade naquilo, enquanto inversão de valores”, diz. Mas Andreiuolo sentia que aquilo agredia o próprio estilo de vida carioca. “A falta de segurança faz isso. É uma questão cultural também”, afirma ele com convicção. E está certo. O carioca nunca foi tão pouco carioca quanto hoje, porque tem medo. A boemia e o banho de mar viraram atividades de risco.

Segundo Andreiuolo, é preciso dar tempo ao tempo. O Ministério Público como é hoje só apareceu em 1988, com a nova Constituição. Até então, os promotores limitavam-se a acusadores e tinham uma tremenda crise de identidade. Os procuradores eram, antes de 88, ao mesmo tempo advogados da União e promotores, o que gerava um conflito sem solução quando uma situação demandava que se ajuizasse uma ação civil pública contra a própria União. O MP atual, portanto, tem menos de vinte anos. É muito pouco tempo para que a instituição amadureça por completo e desenvolva sua identidade de defensora dos interesses difusos. “A área ambiental do Ministério Público Federal, por exemplo, ainda tem que evoluir muito em direção a uma interdisciplinaridade. O Promotor ou Procurador de meio ambiente tem que ser também biólogo, ecólogo, antropólogo e sociólogo. Não basta saber direito”, afirma ele. Entender leis, portarias e as normas em geral não é suficiente para ser um bom membro do MP atuando na área ambiental, pois isso lhe dá apenas uma visão unidimensional da situação.

O ponto de vista que Andreiuolo defende ainda não é muito bem aceito no Judiciário brasileiro, o mesmo acontecendo dentro do próprio Ministério Público. Ele tem consciência disso e sabe que, provavelmente, será derrotado em muitas de suas ações. Mas ele não se importa. Para ele, o processo judicial não é um fim em si, mas é um meio de educar a sociedade – tem a chamada “função pedagógica do processo” – e de levar à discussão pública problemas que hoje são tratados apenas como mais um mal necessário. É isso o que temos feito com a crise de segurança, com a decadência do sistema educacional, com a degradação do meio ambiente e com a perda de nossa identidade cultural. É isso o que ele pretende mudar.

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