Reportagens

A nova cara de Jacupiranga

Após anos de discussão, ambientalistas, pesquisadores e quilombolas chegam a consenso sobre novos limites de santuário da Mata Atlântica. Resta saber se natureza vai se dar bem.

Cristiane Prizibisczki ·
30 de janeiro de 2008 · 17 anos atrás

Refúgio de espécies em extinção e santuário da Mata Atlântica, o Parque Estadual de Jacupiranga, em São Paulo, vai ganhar, em breve, um novo desenho. A mudança virá com a sanção do projeto de lei número 638/07, que institui o Mosaico de Unidades de Conservação da área. O PL, aprovado pela Assembléia Legislativa de São Paulo no dia 20 de dezembro de 2007, aguarda ser sancionado pelo governador do Estado, José Serra. A subdivisão e reclassificação das áreas do Parque vêm sendo estudadas e discutidas há cerca de dois anos, desde que um outro Projeto de Lei, o 984/03, que propunha a exclusão de áreas ocupadas, chamou a atenção de governos e ambientalistas para o complexo problema fundiário da região.

O Parque Estadual de Jacupiranga foi criado em 1969 e está localizado no extremo Sudoeste do Estado de São Paulo, entre as regiões do Vale do Ribeira e Litoral Sul. Com área original de cerca de 150 mil hectares, o Parque abrange os municípios de Barra do Turvo, Cajati, Cananéia, Eldorado, Iporanga e Jacupiranga. Sua importância é ressaltada por ele ser o elo entre unidades de conservação de São Paulo e Paraná. Isso contribui para que ali resida a maior extensão preservada de Mata Atlântica no País e, por isso, morada de várias espécies em extinção, como os papagaios de cara-roxa e peito-roxo, mico-leão caiçara, gaviões das espécies pega-macaco, cabeça-cinza, pomba-grande e pomba-pequeno, além de pavós, jacutingas e sabiás-cica.

A criação do Parque seria a garantia de preservação da área, não fossem os inúmeros conflitos que sua administração tem que lidar. O maior problema sempre esteve relacionado à existência de moradores dentro de seus limites. Além das comunidades remanescentes de quilombos, o parque também abriga fazendeiros e famílias que, a partir da década de 1980, vieram do Paraná para ocupar áreas ao longo da Rodovia Regis Bittencourt (BR-116), que corta o Parque por aproximadamente 60 km, ao logo do município de Barra do Turvo.

“Os problemas do Parque começaram já em sua delimitação, porque foi como se ele tivesse caído em cima de comunidades tradicionais. Isso sem falar que ele foi considerado, por muito tempo, um depósito de famílias pobres”, explica Clayton Lino, presidente do Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica e coordenador do Grupo de Trabalho que deu origem ao Mosaico.

Mosaico de situações humanas

Segundo Lino, um levantamento do início da década de 1990 mostrou que Jacupiranga abrigava 2.200 famílias e cerca de 8 mil cabeças de gado. Com esse cenário, é de se imaginar que os problemas não eram poucos. Além do grande impacto ambiental causado pela construção da BR- 116 e pela ocupação irregular, o parque ainda sofria com problemas como a caça predatória, extração de plantas nativas, casos de violência ligados à questão fundiária e a interminável briga entre a população do parque – que reivindicava melhorias sociais – e governos, engessados pelas leis ambientais. “O Parque era um pouco a terra de ninguém”, diz Lino.

Além da famosa Caverna do Diabo e do conjunto de ecossistemas que compõem o Parque de Jacupiranga, como montanhas, planaltos, manguezais e restingas, muitas espécies endêmicas sofriam com os críticos problemas de degradação. Para se ter uma idéia da gravidade, em 1993, estimava-se que 45% da área total do parque estava afetada ambientalmente, e 15% destes, totalmente desmatada.

O governo de São Paulo só começou a olhar para o Jacupiranga no final da década de 1990, quando foi criado um Conselho Consultivo para gerir o parque. Em 2005, o projeto de lei o 984/03 entrou em cena. Atendendo à reivindicação de moradores locais, o deputado Hamilton Pereira (PT) apresentou uma proposição para a exclusão de áreas do Parque. O projeto foi aprovado pela Assembléia Legislativa – o que causou um frenesi entre ambientalistas -, mas foi vetado pelo então governador Geraldo Alckmin.

“O PL 984/03 era completamente inconstitucional, mas foi positivo porque colocou na mesa uma situação que precisava ser debatida”, explica Lino. No final do mesmo ano, Alckmin criou o Grupo Intersecretarial de Trabalho – Parque Estadual de Jacupiranga, o GT-PEJ, que começou a esboçar o que viria a ser o Mosaico de Unidades de Conservação do Parque.

Novo Desenho

Após dois anos de trabalhos, cerca de 60 reuniões e muitas negociações com representantes das várias realidades do Parque, o Grupo de Trabalho – que começou com sete entidades, mas hoje conta com a participação de cerca de 40 pessoas de mais de 20 instituições – chegou a um novo desenho para o Parque Estadual.

Assim que sancionado pelo governador do Estado, a área original de Jacupiranga passa a ser dividida em três parques estaduais: o PE Caverna do Diabo, com pouco mais de 43 mil hectares, o PE Rio Turvo, com aproximadamente 73,8 mil ha, e PE Lagamar de Cananéia, com área aproximada de 47,5 mil hectares.

Além dos três parques estaduais, ainda foram incluídas cinco Reservas de Desenvolvimento Sustentável, que somam 12.665,06 hectares. São elas: Barreiro/Anhemas, Quilombos de Barra do Turvo, Pinheirinhos, Lavras e Itapanhapima. Nas RDS serão permitidas a exploração de recursos naturais em regime de manejo sustentável e a substituição da cobertura vegetal por espécies cultiváveis, desde que sujeitas ao zoneamento, às limitações legais e ao Plano de Manejo da área.

Também fazem parte da nova constituição do Parque quatro Áreas de Proteção Ambiental (APA – área constituída tanto por áreas públicas quanto privadas e onde o manejo é mais restrito): a do Planalto do Turvo, a de Cajati, a APA de Rio Pardinho e Rio Vermelho, e a dos Quilombos do Médio Ribeira. O mosaico de Unidades de Conservação de Jacupiranga conta ainda com uma Reserva Extrativista: a da Ilha do Tumba.

O resultado aritmético desta exclusão e inclusão de áreas foi aparentemente positivo: as áreas de proteção integral, dividas entre os três novos parques, cresceu cerca de 15 mil ha, passando de 150 mil para 165.614,67 hectares. Nas novas áreas, mais dois ecossistemas ameaçados estarão legalmente protegidos: as restingas e caxetais. Com relação às unidades de uso sustentável, que abocanharam algumas das regiões antes localizadas dentro do parque, as terras somam 86.074,94 hectares.

Clima Otimista

Entre os envolvidos na criação do Mosaico o clima é de otimismo. Até mesmo para aquelas comunidades em que a negociação com o Grupo de Trabalho foi complicada, como foi o caso da Associação dos Remanescentes de Quilombo do Bairro de André Lopes. Localizada na área da Caverna do Diabo, a comunidade de André Lopes fez as discussões serem retomadas por várias vezes, principalmente quando reivindicou a gestão da Caverna e quando entrou na justiça contra o Estado pela não construção de uma pousada ecológica na região.

“O problema é que eles queriam, em poucos meses, resolver um conflito de décadas”, defende André Luiz Pereira Morais, representante da Associação no GT-PEJ. Segundo ele, no início das negociações, a comunidade não aceitou a proposta do Grupo de Trabalho por que ela “não garantia alguns direitos”. “Só queremos o reconhecimento de nossa área”, diz Morais, ao lembrar que grande parte do território do remanescente é terra devoluta.

Para resolver esta situação, foram reservadas duas glebas nas Comunidades Quilombolas do Bairro André Lopes para os estudos de criação de Reservas do Patrimônio Particular (RPPN), que deverão abranger o entorno da Caverna do Diabo e do Bairro Sapatu, área da cachoeira de Meu Deus. “A criação da RPPN concilia dois de nossos desejos: legitima nosso território e nos enquadra nos termos da lei”, comemora Morais. A administração do Núcleo Caverna do Diabo, segundo o Projeto de Lei do Mosaico, será feita por gestão compartilhada entre o Instituto Florestal, as comunidades quilombolas e prefeituras, configurando uma experiência inédita no país

Quem também comemorou a criação do Mosaico foi a prefeitura da Barra do Turvo. Cortado em quase toda sua extensão pela BR 116, o município sofre com problemas como a grilagem e o engessamento na atenção às reivindicações de seus moradores. “Cerca de 78% de nosso território ficava dentro do Parque. Então, quando a população pedia estrada, escolas, não podíamos atender, porque, no papel, tínhamos as limitações das leis ambientais”, explica Carlos Roesler, Secretário de Administração da Prefeitura da Barra do Turvo.

Com a reclassificação da área do município, a prefeitura da cidade garante que, agora, poderá atender as reivindicações de seus moradores. “O novo modelo deixou claro para nós o que é e o que pode ser feito em cada área. Claro que nem todo mundo saiu satisfeito 100%, mas todos ganharam um pouco. Como não tinha para quem reclamar, a população acabava caindo em cima do município. Agora há muito trabalho pela frente e o Estado vai ter que tomar uma posição”, lembra Roesler.

Até o deputado Hamilton Pereira – aquele que em 2003 propôs a diminuição da área do parque no PL 984/03 – saiu da história contente. “A criação do Mosaico contemplou todas as nossas expectativas”, diz.

Fauna e Flora

Durante as discussões que deram origem ao Mosaico de Jacupiranga, as reivindicações das comunidades locais foram muito ressaltadas e, com a flexibilização das restrições ambientais, fica a impressão que bichos e plantas saíram perdendo. No entanto, segundo o biólogo Pedro Develey, da Save Brasil dentro das opções de conservação que existiam, a constituição de um mosaico foi a melhor escolha. “É claro que para as espécies de fauna e flora do parque o melhor seria tirar todas as pessoas, destruir as casas e reflorestar. Mas isso é completamente inviável e temos que trabalhar com a realidade. O mais gritante ao se lidar com conservação são mesmo as comunidades”, explica.

A criação do Mosaico foi a melhor solução para Jacupiranga? “E qual seria a outra?”, rebate o biólogo, à pergunta de O Eco. Segundo ele, a palavra-chave para realidades como as que existiam lá é “integração”. “Essa é a chance de se resolver o conflito, é uma tentativa de integrar preservação com os direitos das comunidades. Porque é preferível ter unidades menos restritivas e com maior controle, do que unidades em que não se pode fazer nada, mas que o Instituto Florestal também não consegue fiscalizar, onde acontece um monte de irregularidades e os poderes administrativos são vistos de forma negativa. Essa é uma moeda de negociação”, defende.

Quem também compartilha da opinião de Develey é o Instituto Socioambiental, que integrou o grupo de trabalho e esteve presente desde o início das discussões. Segundo Nilto Tatto, coordenador de projetos do ISA no Vale do Ribeira, a experiência de Jacupiranga, assim como a da Juréia, é um modelo a ser seguido, já que resolveu problemas de injustiças sociais, promoveu a mudança de postura de órgãos ambientais e arregimentou parceiros para conservação. “Do ponto de vista do ISA foi um super avanço. Esse processo foi intenso e rico e isso não pode se perder. Os desafios daqui para frente são muito maiores”, diz.

Com a aprovação do Mosaico de Unidades de Conservação de Jacupiranga, uma série de outras medidas deverá ser tomada. Entre elas está a realização de Termos de Compromissos Ambientais com os moradores das áreas que compõem as RDSs, Resex e APAs até que o Plano de Manejo da Unidade esteja finalizado. Segundo Clayton Lino, também deverão ser elaborados os estudos para a constituição das RPPNs, criados conselhos em cada uma das unidades e implantadas ações imediatas, como os pedidos de benefícios sociais feitos pelas comunidades agora regularizadas. O grupo de trabalho também prepara cartazes e folders explicativos para a comunidade e estuda formas de fortalecer questões de manejo e sustentabilidade com as comunidades locais. É torcer que o mosaico não se transforme em colcha de retalhos.

  • Cristiane Prizibisczki

    Cristiane Prizibisczki é Alumni do Wolfson College – Universidade de Cambridge (Reino Unido), onde participou do Press Fellow...

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