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O passado não tem pressa

Quer saber por que a revolução “verde” do etanol pode ter por trás um canavial que desmata com trabalho escravo? Basta ver o que está acontecendo agora mesmo nas cidades.

19 de julho de 2007 · 17 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Nada como viver num país onde o presente, o futuro e o passado podem cair ao mesmo tempo na caixa de mensagens de seu computador. Um dos e-mails avisa que no Engenhão, o novo estádio carioca construído para o Pan,a grama do campo será regada pela chuva. Não a que cai diretamente das nuvens, quando bem quer. Mas a do AcquaSave, a patente alemã de uma cisterna capaz de aproveitar um milhão e meio de litros por mês da água que, tradicionalmente, corre para o ralo.

Pelo que diz o anúncio, dá para manter verde o gramado, prover os banheiros, arrefecer o calor nos dutos de refrigeração e até ficar de prontidão nas magueiras, para apagar incêndios. Tudo isso cortando quase vinte mil reais na conta mensal da Companhia de Águas e Esgotos.

Sem tijolos

A ecologia deve andar mesmo com a bola toda, porque a notícia apostou corrida com o convite para o lançamento do primeiro edifício residencial “sustentável” na cidade. Para merecer o título de sustentável já não basta que os alicerces mantenham o prédio de pé, ao contrário do que acontencia com as torres do empresário Sérgio Naya na Barra da Tijuca. É preciso, segundo o incorporador, que ele preserve o meio ambiente, melhore a vida dos moradores e, de quebra, reduza a taxa de condomínio.

Em outras palavras, as mais ou menos técnicas, ele tem que nascer verde desde o primeiro tijolo, justamente por dispensar tijolos. Ter paredes autoportantes, em materiais pré-moldados, que não exijam pilares e vigas para se ancorar nas fundações. Evitar o emprego de andaimes, que pareciam inseparáveis da construção civil desde que o perfil das cidades brasileiras começou a ultrapassar os telhados da vizinhança.

Na serra gaúcha, até hoje há quem culpe a construção de Brasília pela escassez de araucárias no fundo de seus pastos. Soa a exagero. Mas,basta ver uma fotografia das obras por Marcel Gautherot, com a arquitetura de Oscar Niemeyer invariavelmente enjaulada em descomunais gaiolas de tábuas, para achar que os desflorestados do Rio Grande do Sul talvez não estejam delirando.

Qualquer pessoa que tenha passado pela experiência de bater um prego numa parede em Nova York, nas últimas três ou quatro décadas,pode ter a impressão de que conhece a novidade de algum lugar. Mas isso não impede que ela desembarque com fanfarras no Rio de Janeiro, desde que escoltada, como ela veio, pelas promessas de acabar com a era das tubulações que se escondiam atrás do reboco e de lá se infiltravam sorrateiramente no teto do vizinho. Precisa também reaproveitar pelo menos 20% do entulho gerado no canteiro de obras e reciclar a água servida das pias para os vasos sanitários.

O edifício fará coleta seletiva de lixo, pretendendo amortizar parte dos custos de sua manutenção com a vendas de alumínio, papel e vidro para a reciclagem. Terá um pomar, para que os condôminos, “e principalmente as crianças, tenham contato com frutas e verduras diretamente da natureza, vendo-as crescer e aprendendo a cuidá-las, além de curtir o prazer de poder colhê-las diretamente no pé”. E, como o Engenhão, reservará água de chuva para, nas estiagens, molhar o jardim.

Pronto para morar no futuro? Calma. Há tempo para abrir o terceiro e-mail. Ele diz que, segundo o IBGE, 47,2% das cidades brasileiras não têm coleta nem tratamento de esgoto. Das que coletam, 30% não o tratam. Somadas, os sem-esgoto representam 77,2% dos municípios. Maioria suficiente para não nos deixar esquecer que há mais coisas entre os canaviais e o etanol do que supõe nossa vã futurologia.

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