Reportagens

Descaso vitima índios no Vale do Javari

A história da vida e da morte de Sabá Mayoruna revela a inoperância do governo brasileiro em garantir atendimento adequado à saúde indígena.

Maria Emília Coelho ·
24 de maio de 2011 · 14 anos atrás
Porto de Atalaia do Norte, que os índios chamam de beira, entrada e saída dos barcos para a Terra Indígena Vale do Javari. Crédito: Maria Emília Coelho
Porto de Atalaia do Norte, que os índios chamam de beira, entrada e saída dos barcos para a Terra Indígena Vale do Javari. Crédito: Maria Emília Coelho

Tabatinga (AM) – Quando Sabá Mayoruna entendeu que estava doente tinha apenas 24 anos, mas já era tarde. Passou três meses ardendo de febre na aldeia Fruta-Pão, no Vale do Javari, no estado do Amazonas. Apesar da resistência do pai, cedeu ao pedido do cunhado e do agente indígena de saúde da comunidade. No início deste mês, deixou mulher e dois filhos pequenos para embarcar em uma canoa, pelas águas que correm ao rio Solimões, em uma viagem sem volta.

Terra Indígena Vale do Javari, segunda maior do Brasil, e área epidêmica para hepatites virais. Crédito: Acervo Funai/CGIIRC
Terra Indígena Vale do Javari, segunda maior do Brasil, e área epidêmica para hepatites virais. Crédito: Acervo Funai/CGIIRC

Foram três dias para o jovem matsés chegar à Atalaia do Norte, município de referência dos cerca de 4 mil índios que vivem na segunda maior terra indígena do Brasil, com 8,5 milhões de hectares. Nesta floresta vivem povos Kanamari, Kulina, Marubo, Matís e Matsés (Mayoruna), e a maior concentração de grupos indígenas isolados na Amazônia. A área é endêmica para hepatites virais (A,B, C e Delta), surtos de malárias são constantes, além da alta incidência de casos de desnutrição infantil. O lugar é um caso emblemático da inoperância do governo brasileiro em garantir um atendimento adequado à saúde indígena.

Na Casa de Apoio Indígena (Casai), e depois, no Hospital de São Sebastião de Atalaia do Norte, ambas instituições públicas, o quadro de Sabá, portador de hepatite B e D crônica, não evoluiu, pelo contrário, agravou-se. “Uma tristeza”, lamentou Gilson “Gaúcho” Mayoruna, recém eleito vice-coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). A liderança ouviu da equipe médica e da coordenação do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei), instituição regional ligada ao Ministério da Saúde, que o seu parente estava desenganado: “Deveríamos apenas escolher se ele morreria na aldeia ou na cidade”.

Militares no Hospital de Guarnição de Tabatinga Crédito: Maria Emília Coelho
Militares no Hospital de Guarnição de Tabatinga Crédito: Maria Emília Coelho

No dia 8 de maio, foi decidido que o índio seria transferido para o Hospital de Guarnição de Tabatinga, sob a administração do Exército, e o único instalado na maior cidade do Alto Solimões. Manoel Mayoruna, que durante dois dias foi intérprete do paciente da família linguística Pano, na unidade semi-intensiva, contou que Sabá quis arrancar a sonda que introduziram desde as suas narinas até o estômago: “Expliquei que era para o seu bem, e ele se acalmou, mas confessou que estava com medo que o médico fosse matá-lo”.

Falha na comunicação

Conheci Sabá quando fui ao hospital, no dia 16 de maio, acompanhada de Sanderson Oliveira, linguista da Frente de Proteção Etnoambiental da Vale do Javari, da Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão responsável pela política indigenista brasileira. Sanderson trabalha para assegurar a integridade física e cultural dos povos isolados e de recente contato na área, mas queria saber qual era o estado daquele mayoruna, mais uma das incontáveis vítimas da hepatite na terra indígena.

Em um quarto da enfermaria com mais quatro pacientes, o índio levantou a camisa para nos mostrar como a sua barriga estava inchada, e aonde doía mais. Assustado, quase calado, explicou que sentia “um nó dentro dele”, traduziu Júlio Mayoruna, seu sobrinho, que havia assumido a função de intérprete do paciente, apesar de falar e entender o português com dificuldade.

Quem ajudou a entendermos melhor o histórico e o destino de Sabá naquele dia foi Lúcio Mayoruna, que estava no hospital acompanhando outro índio do Vale do Javari doente. O jovem começou a visitar o índio matsés para tentar ajudá-lo: “Ele me disse que só entendeu que estava doente quando passou mal, que não sabia que ia ficar daquele jeito, e que se soubesse não teria recusado o tratamento”.

Segundo o Dsei Vale do Javari, há três anos foi constatado que Sabá tinha hepatite B, e que o mesmo optou não fazer o tratamento padronizado, que tem como base o medicamento interferon. A doença em seu início costuma apresentar poucos sinais, já o tratamento vem com adversos e violentos efeitos colaterais, como depressão e disfunção da tiróide, e alterações neuropsiquiátricas e gastrointestinais, entre outros. Os índios têm que permanecer ao menos um ano na cidade, longe das suas famílias na aldeia.

Lúcio também contou sobre a conversa que teve com o médico que acompanhava o caso: “O doutor falou que podia ser a massa, que por conta da hepatite podia ter virado um câncer, e que iam levá-lo para Manaus em 10 dias para fazer o exame. Enquanto isso ele tem que ficar aqui no hospital esperando”. No final da noite de 17 de maio, o Sabá Mayoruna não conseguiu mais esperar.

Pane no sistema

Recebi a triste notícia na manhã do dia seguinte. Corri para o hospital atrás de mais informações. A enfermeira responsável disse que não podia se pronunciar sem a autorização do Dsei. Segui para a Casai de Tabatinga, onde estavam Júlio, Lúcio, e seu primo Lucas, este último há anos na cidade fazendo tratamento com interferon. Esperavam a liberação do corpo, para encaminhá-lo à Atalaia do Norte. Nazareno Mayoruna, o pai de Sabá, um antigo cacique da comunidade Fruta-Pão, o esperava para dizer o lugar que queria que seu filho fosse enterrado.

O caixão chegou na camionete da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari. A enfermeira da Casa de Apoio à Saúde do Índio de Tabatinga, ligada ao Dsei Vale do Javari, telefonou para a indigenista da Funai, Ananda Conde, pedindo apoio no transporte do corpo, pois o carro da instituição de saúde estava sem gasolina. Todos subiram no veículo, e regressamos ao hospital. Sozinha na tarefa da remoção, a profissional de enfermagem contou com a força dos índios e da funcionária da Frente de Proteção para índios isolados, que colocaram luvas para retirar o corpo da câmara mortuária, onde o cadáver é conservado, levando o mesmo até o caixão. Eu tentava acalmar Júlio, que chorava muito no meu colo.

“É a terceira vez que faço isso. O corpo estava sem nenhum tratamento, não foi embalsamado, e a roupa que o cobria estava com mucosa, vômito e fezes. Nós que tivemos que trocá-la ali na hora. Essas secreções carregam o vírus da hepatite. Numa situação dessas, posso ser contaminada. É um absurdo”, reclama Ananda, que, ao final da operação, desabafou que esse tipo de “serviço voluntário” prejudica também o seu trabalho.

Partimos para o Porto de Tabatinga para Júlio Mayoruna seguir com o corpo em um barco até Atalaia do Norte. Às três da tarde do mesmo dia, rumo à terra indígena. O velho índio Nazareno não quis enterrar Sabá na cidade, e disse à Manoel Mayoruna: “Quando eu voltar para aldeia vou me enforcar, pois era meu único filho que ainda vivia comigo na floresta”.

Sai Funasa, entra Sesai

Flutuante da Funasa (Fundação Nacional da Saúde) no porto de Tabatinga, no estado do Amazonas, onde saem os barcos para as comunidades indígenas. Crédito: Maria Emília Coelho
Flutuante da Funasa (Fundação Nacional da Saúde) no porto de Tabatinga, no estado do Amazonas, onde saem os barcos para as comunidades indígenas. Crédito: Maria Emília Coelho

O drama da saúde dos povos indígenas do Vale Javari não é recente. Segundo um informe do final de 2010, da organização da sociedade civil Centro de Trabalho Indigenista (CTI), nos últimos 11 anos morreram 325 indígenas na área, 8 % da população. Somente em 2003, foram 30 óbitos, grande parte deles causados pela epidemia de hepatite B. O primeiro caso da doença que afeta o fígado foi registrado em 1980, em um relatório apresentado pela antropóloga Delvair Montagner à Funai.

Muitas mortes poderiam ter sido evitadas se a população do Vale do Javari estivesse realmente imunizada. Mas até hoje nenhum esquema de vacinação foi realizado adequadamente na terra indígena. O intervalo entre a primeira, a segunda, e terceira dose, com prazos estabelecidos para que a vacina seja eficiente, nunca foram cumpridos pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), instituição governamental que foi responsável pelo atendimento à saúde indígena no Brasil de 1999 a outubro de 2010.

Como resposta aos incansáveis protestos do movimento indígena contra a Funasa em todo o território brasileiro, e às inúmeras acusações de irregularidades e desvios de verba em sua gestão, foi criada a Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai). O processo de transição da Funasa para a Sesai caminha lento. Estava previsto para ser finalizado em abril deste ano, mas foi estendido, no Dia do Índio no Brasil, até dezembro.

Indígena ticuna no Hospital de Guarnição de Tabatinga, sob a administração do Exército, e o único desta cidade do Amazonas. Crédito: Maria Emília Coelho
Indígena ticuna no Hospital de Guarnição de Tabatinga, sob a administração do Exército, e o único desta cidade do Amazonas. Crédito: Maria Emília Coelho

Neste mês, a nova secretaria promoveu uma ação que deslocou 160 indígenas portadores de hepatite do Vale do Javari até a Casa de Apoio à Saúde do Índio de Tabatinga. Foram realizados exames para identificar o estágio da doença e, em alguns casos, o tipo de tratamento que receberão. Grande parte do grupo foi liberada. Agora, restam 44 índios esperando impacientes a divulgação dos resultados.

“Há mais de uma semana pedimos uma posição da Sesai e nada. Vários índios estão querendo ir embora. Na madrugada do dia 20 de maio alguns foram furtados. Os ladrões entraram na Casa de Apoio, levando roupas e documentos dos nossos parentes”, contou Vitor Mayoruna, uma das principais lideranças da região. Ele também me entregou a cópia da certidão de óbito de Sabá Mayoruna. No documento, aparece como causa da morte: parada cardiorrespiratória, anemia aguda e hemorragia digestiva. Em nenhum momento é mencionado que o índio era portador de hepatite.

Traduzir o sentimento do povo indígena do Vale do Javari, que cotidianamente perde seus parentes, e que observa a propagação sem controle das hepatites virais e de outras doenças em suas comunidades, não é fácil. Mas aqui, ao menos, fica evidente que será necessário muita vontade política, e muitos anos de trabalho, para reverter a indignante realidade desses índios que constitucionalmente também são brasileiros.

Maria Emília Coelho é jornalista e documentarista há 10 anos. Foi editora do programa Repórter Eco, da TV Cultura. Desde 2007, vive na Amazônia, entre Peru e Brasil, produzindo documentários para organizações ambientalistas e indigenistas, e colaborando para veículos de comunicação da imprensa nacional e internacional. Atualmente trabalha como consultora do Centro de Trabalho Indigenista (CTI).

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