Uma concessão onde não foi derrubada nenhuma árvore, mas foi extraída madeira; uma árvore mágica que produziu 311 metros cúbicos de cedro, suficiente para cobrir dois campos de futebol; supervisores estatais que encontram 14 tocos (restos de árvores cortadas) plantados para justificar um corte que nunca existiu. Um empresário italiano que, sem sucesso, denuncia ex-sócio sob o risco de ver penalizada sua própria empresa por retirada ilegal de madeira.
A corrupção madeireira na Amazônia peruana está ligada a duas espécies preciosas: cedro e mogno. A Environmental Investigation Agency (EIA), organização que investiga delitos ambientais, apresentou em Lima em abril deste ano um relatório chamado “A Máquina Lavadora”, um relato devastador dos níveis aos quais chegou a exploração ilegal de madeira no Peru. Dois dias depois do lançamento da publicação, autoridades peruanas resolveram reagir oficialmente, de acordo com Julio Urrunaga, um dos pesquisadores. Declarou-se, ali, o registro de mais de 100 carregamentos com madeira de origem ilegal exportados do Peru para os Estados Unidos entre janeiro de 2008 e maio de 2010, o correspondente a 35% das licenças de exportação entregues no período.
Uma licença da Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (CITES, por suas siglas em inglês, vigente desde 1975), determina que as espécies que um país inclui dentro deste convênio devem ser comercializadas de maneira correta e legal. O Peru incluiu no CITES, há pelo menos uma década, o mogno (Swietenia macrophylla) e o cedro (Cederla odorata). Feito isso era esperado que as espécies fossem conservadas e extraídas apenas legalmente, afim de não terem sua “sobrevivência prejudicada” (Anexo II, caso do mogno). As conclusões da EIA derrubam essas previsões e dão motivo para uma observação da Secretaria da CITES de 2010, na qual afirma que somente existe um “cumprimento formal” do mencionado convênio.
Após ingressar, literalmente, no terreno florestal e de evitar um ambiente burocrático que frequentemente tem negado informações a respeito de um tema que causa incômodos, a EIA encontrou provas alarmantes de como a extração ilegal não apenas avançou, mas também se converteu em um sistema corrupto, “com a cumplicidade de servidores públicos”, em palavras de Hugo Cabieses, ex-vice-ministro de Desenvolvimento Estratégico de Recursos Naturais.
Passo a passo da corrupção
Tudo começa, conta a publicação, quando a Direção Geral Florestal e de Fauna Silvestre (DGFFS) concede licenças para quem as solicita. Nas províncias é através de escritórios da Administração Técnica Florestal e de Fauna Silvestre (ATFFS). Devido ao processo de descentralização política que se vive no Peru, Governos Regionais (GOREL) também podem emitir licenças.
Uma vez que se tem o “direito de acesso”, preferencialmente em uma Área de Proteção Permanente, categoria de Unidade de Conservação que o Estado escolheu para a exploração madeireira sustentável, o concessionário pode realizar contratos com terceiros (uma comunidade indígena, por exemplo) para a extração. Deve também ter um Plano Operativo Anual (POA) realizado por um engenheiro registrado nas autoridades florestais.
Além disso, pede-se um Plano Geral de Manejo Florestal (PGMF), que estabelece a sequencia de corte, cuidados com os desperdícios e ecossistema. Feito o corte, é emitida uma Guia de Transporte Florestal (GTF) que garante que “toda a madeira transportada vem de uma zona autorizada e conta com licença válida”. A partir daí, a madeira chega na serraria e pode ser vendida ao exterior.
Tudo parece minunciosamente calculado para evitar cortes ilícitos, mas a EIA descobriu que o sistema fora do papel é falho e perfeito para fraudes: a autorização pode ser vendida para transportar madeira desde áreas protegidas, o POA é feito sem trabalho de campo, árvores designadas como “sementeiras” são cortadas, árvores fora do POA são derrubadas e licenças são falsificadas quase à vista de todos.
Na Reserva Nacional Pacaya Samiria, a área protegida mais extensa do país (2.080,000 hectares), a EIA encontrou indícios de extração ilegal. Vários tocos de cedro e restos de madeira cortada com motosserra confirmavam denúncias feitas contra madeireiros ilegais. Um paraíso da biodiversidade encontra-se ameaçado pela parte corrupta do setor madeireiro.
A exploração é feita principalmente em áreas protegidas e terras indígenas, pois lá ainda resta cedro e mogno. Para extraí-las, os madeireiros ilegais abrem caminhos, caçam e pescam sem problemas, travam batalhas violentas com indígenas e, pela lei do “mais forte”, fazem muito bem a sua parte em aumentar o desmatamento já crescente.
Suas ações vão além da colaboração para a violência no campo e a extinção de espécies. De acordo com um estudo publicado no American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, citado pelo Ministério do Ambiente do Peru, o desmate nestas regiões tem provocado avanço da malária. Nelas, o mosquito estaria picando pessoas numa quantidade “278 vezes maior do que nas áreas com floresta”.
((o))eco tentou determinar quantos hectares de floresta amazônica peruana estariam afetados pela extração ilegal de madeira, mas nenhuma autoridade ofereceu precisão sobre o tema. Porém, um relatório do Banco Mundial (BM), de março de 2012, afirma que “em alguns países o corte ilegal representa até 90% das exportações” e que no caso específico do Peru chegaria a 80%. Um recorde.
Consultado, Rolando Navarro, presidente do Organismo Supervisor dos Recursos Florestais e de Fauna Silvestre, reconheceu que ocorrem problemas e declarou que “existe uma série de passos a serem percorridos na gestão dos recursos florestais”. Um comunicado feito em abril pela Presidência do Conselho de Ministros afirma que existe “um aproveitamento inadequado do recurso florestal” no país e anuncia que “medidas serão tomadas”.
Uma dessas medidas seria a criação de um tribunal florestal, com capacidade para punir práticas ilegais. No entanto, o problema é de tal dimensão que, segundo o próprio Banco Mundial, a extração ilegal de madeira no Peru gera entre 44.5 e 72 milhões de dólares por ano. Estes números são de 2006, mas não existem indícios de que a situação tenha variado muito. Francesco Mantuano, empresário florestal italiano que trabalha em Loreto (selva nordeste do país) diz que, nessa região, as concessões ilegais chegariam pelo menos a 90%.
Ele mesmo denunciou seu ex-sócio na Operaciones y Exportaciones Amazónicas quando descobriu que ele havia provocado desmatamentos. Expôs o fato a autoridades peruanas, mas o crime foi ignorado e o culpado jamais punido. Para ele, “o corte ilegal é uma verdadeira indústria produtiva organizada, muito bem organizada, muito bem coberta”.
O setor florestal peruano foi sacudido pelo relatório da EIA e o mínimo que se espera é que autoridades cumpram sua promessa de tomar medidas urgentes no setor. O documento apresentado só fala sobre mogno e cedro, mas não para aí. Espécies de árvores como Pau-mulato e Cumarú também padecem sob este esquema de corrupção. Tudo bem abaixo dos olhos das autoridades peruanas.
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