Para mim, remar começou sem pensar muito. Desde quando vim morar na região da Costa Verde, ouvi falar de pessoas e suas canoas que navegavam distâncias incríveis e mares agitados, para vender produtos cultivados nas roças e peixes secos. Também compravam produtos difíceis de se encontrar na região naquela época, como sal, querosene e sabão.
Morei na vila do Abraão, na Ilha Grande e, morando em uma ilha, uma das diversas coisas que você precisa aprender é remar. Foi, para mim, tão natural quanto andar de bicicleta. Remava de caiaque, de canoa havaiana; no bote para pegar e deixar a escuna; para pescar; para rebocar clientes em caiaques Sit On Top (caiaque em que a pessoa fica com o corpo totalmente no deck do caiaque) quando o barco enguiçava; e remava por remar. Era sempre: tendo ou não tendo nada para fazer, vai remar.
Após vir para Paraty, nada mudou. Morei em Paraty Mirim, na área costeira próximo ao Saco do Mamanguá. Existia uma trilha até a praia, mas também existiam caiaques, canoas, botes e veleiro. E claro que, na maioria dos dias, a opção era pelo mar. Então, quando mudei para a cidade de Paraty, continuei fazendo o que já tinha absorvido pelos poros: remando.
Segui trabalhando com caiaque e remando, onde conheci meu amigo e sócio Michael Smith, que veio também guiar e rebocar os clientes pela baía de Paraty. A base da empresa, tinha acesso fácil ao rio Pereque Açu, onde embarcávamos e desembarcávamos. Até o dia em que abandonamos o caiaque na praia do Jabaquara, depois de muitas remadas rebocando clientes.
A partir daí, Jabaquara passou a ser nossa base de caiaques, pranchas de Stand Up Paddle, até chegarmos aos caiaques oceânicos. Na minha primeira experiência em um deles, tive a certeza de que nunca mais remaria caiaque sit on top.
Foi um amigo que me contou, na praia da Ponta Negra, dentro da Reserva Ecológica Estadual da Juatinga (RJ), que era comum sair a remo de lá até a cidade de Paraty. Uma viagem longa que atravessa a Ponta da Juatinga, local de fortes correntezas e, na maioria dos dias, com mar agitado.
Comecei a me interessar muito pelo assunto. No primeiro momento, fascinado pela história de aventura, desafio e conhecimento da natureza – era preciso tudo isso junto para remar tal distância e com o mar em condições adversas, em uma canoa que parecia ser tão pequena e frágil. Como conseguiam embarcar dezenas ou centenas de quilos, sem contar com o peso do remador ou remadores?
Num segundo momento, me dei conta que deveria ser uma vida muito difícil. Trabalhar a terra, plantar, manter, colher e processar, no caso de fazerem a farinha de mandioca, e após este ciclo todo, fazer chegar ao mercado local a remo. Dá para entender o tamanho da façanha?
Da praia da Ponta Negra, era preciso remar com esta canoa pesada, por mais ou menos quatro dias, considerando ida e volta, para chegar à cidade de Paraty. Vale destacar que, antes de 1970, não havia estrada asfaltada em Paraty. Os produtos saíam e chegavam na balsa que vinha da região de Mangaratiba e Sepetiba (RJ). Continuando as pesquisas, cheguei aos índios que moravam na região de Paraty.
Por volta de 1549, em seu livro que muitos encaram como fantasioso, outros como um relato do Brasil nos primórdios do processo colonial, Hans Stadem já descrevia bem o poder dos primeiros remadores da região. Outras narrativas dos que aqui vinham se aventurar atrás de riquezas, também falavam das mesmas canoas. Com dezenas de nativos dentro de uma mesma canoa, remando tão rápido que se o vento não estivesse forte, não conseguiam fugir. Dominavam completamente a floresta e o mar. Profundos conhecedores na construção e navegação das canoas.
A canoa é, muitas das vezes, feita de um tronco inteiro de árvore. No entanto, não é qualquer árvore que serve para fazer a embarcação. Além disso, como tirar essa árvore da mata, transportá-la até a praia ou rio, e fazer a canoa? Quantos tentativas e erros até chegar à perfeição?
Hoje sabemos que várias espécies de árvores da nossa região, são perfeitas para o feitio da canoa, como exemplos: Cedro (Cedrela fissilis), Timbuíba, (Balizia pedicellaris), Ingá amarelo, (Tachigali denudata), Jequitibá, (Cariniana legalis), Ingá flecha, (Inga sessilis), Guapuruvu, (Schizolobium parahyba) e a Figueira branca, (Ficus insipida).
Segundo o estudo de Márcia Regina Teixeira da Encarnação: “Os homens dos sambaquis, nesta região, teriam constituído um grupo humano (…) adaptado às condições de vida impostas pelas características geográficas da planície costeira marinha e pelo sistema lagunar. Suas canoas devem ter singrado as águas das lagunas e os rios regionais, por todos os recantos, vasculhando aquela homogênea região geográfica. Os homens dos sambaquis constituíram ali, uma civilização de canoeiros e um grupo humano conchófago e ictiófago [que comem moluscos e peixes] por excelência” (Homens dos Sambaquis: Registros socio geo linguísticos em São Sebastião: A presença do elemento indígena e a influência do português colonizador”, 2010).
E hoje em dia, sempre que remamos, vemos cenas que remetem a toda essa história sobre a qual discorro aqui: canoas lançando a rede e tirando-a do mar; a vida de milhares de pessoas que continuam vivendo do mar, seja como transporte ou como subsistência e que precisam manter suas tradições, cultura e a defesa de seu território ancestral. Eles pertencem ao mar e o mar pertence a eles.
Voltamos então ao início do texto, tendo ou não tendo nada para fazer, vá remar! E se quiser trilhar de uma forma diferente, dentro d’água, pegue no remo também. Há 12 anos, através da Paraty Explorer, mapeamos, desenvolvemos e operamos a Rota dos Tupinambás, uma Travessia de Tarituba até a vila de Trindade, com cerca de 120 quilômetros de extensão distribuídos ao longo de 6 dias de navegação de caiaque. A jornada é uma mistura de esporte, natureza e cultura e herança caiçara. Esta travessia é apenas uma sugestão de percurso e é divida nos seguintes trechos:
1º Trecho Tarituba – Ilha do Araújo (18 km)
2º Trecho Ilha do Araújo x Praia Vermelha (18 km)
3º Trecho Praia Vermelha x Saco do Mamanguá (20 km)
4º Trecho – Mamanguá x Pouso da Cajaíba (20 km)
5º Trecho – Pouso da Cajaíba x Ponta Negra (25 km)
6º Trecho – Ponta Negra x Trindade (18 km)
Lembro ainda que há uma série de cuidados para fazer a travessia aquática em segurança, como sempre acompanhar a previsão do tempo e dos ventos, assim como a tábua de maré; remar sempre o mais cedo possível. Além disso, é altamente recomendado ter um curso de canoagem oceânica e saber desembarcar em praias com ondas. Contratar profissionais nesse serviço também é sugerido para garantir maior segurança e apoio durante a travessia. Cuidados tomados, pé na “trilha” e mão no remo!
Assista aqui a live sobre trilhas aquáticas na íntegra:
*Rodrigo Pereira é Guia de turismo e sócio fundador da Paraty Explorer.
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