Análises

Bamburrada

O bambu é uma das plantas mais especiais e úteis em solo brasileiro, mas poucas pessoas reconhecem o seu valor. Na época da seca, poderia ser usada como muralha contra o fogo.

Carlos Secchin ·
20 de março de 2007 · 17 anos atrás

Ao certo, ninguém sabe mais a hora em que vai chegar ao consultório, nem a hora em que vai ser atendido. Melhor sair de casa com uma hora de antecedência. É raro, mas acontece de a gente chegar bem antes da hora marcada.E, quando isso acontece, não dá para ficar indiferente à quantidade de capas de Caras nos olhando. Cruza-se as pernas, coloca-se a de capa menos amassada sobre o colo e folheia-se como quem procura algum tipo de informação. Até tento, mas não consigo ler o texto. E se fizer o movimento rápido de virar as páginas, outra e mais outra me esperam. Gosto de ver casais sorrindo de deslumbramento do tipo não há infelicidade em nossas vidas. E aquilo não acaba. É até legal saber, na ante-sala de um consultório, que existe gente contaminada pela alegria, esbanjando riqueza, prazer e despreocupação com a elegância.

Foi na sala de espera do consultório de meu ortopedista que, casualmente, fiz uma das mais interessantes descobertas para o meu trabalho no campo. Debaixo da pilha de Caras achei, não sei como, um livro grosso e importado sobre a história da utilização do bambu nas antigas e modernas culturas do ocidente e do oriente. Coisa de umas 900 páginas. Todo ricamente ilustrado com desenho a bico de pena, papel de qualidade e gramatura fininha, e letra de formiga, dessas de arder os olhos.

Descobri coisas que quase fizeram com que eu entrasse com o livro para dentro da consulta. A primeira diz respeito a uma história bem curiosa. O autor conheceu um casal, natural de uma cidade do interior da Costa Rica, que resolveu passar a lua de mel no Hotel Quitandinha, em Petrópolis. Nada de mais se não tivessem chegado lá no começo dos anos 60. O Hotel estava em sua mais glamurosa época. Se Caras existisse, faria de lá a sua ilha chique na serra. Pois bem, o marido, deslumbrado com as verdadeiras muralhas de bambus que ornavam o parque do hotel, levou de volta para casa o mais importante souvenir do Brasil: mudas de bambu na mala.

Anos se passaram e o autor, baseado nas informações do turista, resolveu ver ao vivo a espécie de bambu considerada pelos botânicos como sendo a mais alta, estruturada e espessa do planeta, algo, mal comparando, como um oceanógrafo ir ao local onde as baleia-azuis se acasalam. Pois bem, o autor/pesquisador chegou por aqui no começo dos anos 90 com um cartão-postal, a prova fotográfica de que havia próximo à fachada lateral do hotel, no jardim, uma gigantesca touceira do Guadua brasilera.

Claro que perdeu a viagem, depois de tanto tempo como é que poderia haver sombra de bambu? Ao invés, no local, foi construído acesso para novas edificações e o hotel perdera, há muito, a sua categoria, estilo, charme etc. Caras? Viraria a cara pra ele. Bom, o nosso pesquisador pensou então em fazer uma busca na região acreditando que logo estaria diante desta colossal e magnífica espécie vegetal.

Rodou o estado do Rio e parte do Brasil. Não achou. Pudera, aqui entre nós, falando baixinho, a mania nacional de desvalorizar o nativo tinha dizimado o que ela considera, ainda hoje, como um dos maiores símbolos de sua pobreza: acreditem, o bambu. Tanto é verdade que eu duvido que nas páginas de Caras, nos caros jardins dos ricaços apareça uma taquarinha no cantinho. O bambu é mal visto. É considerado praga, refúgio de cobras peçonhentas e material de baixo valor utilizado por populações miseráveis na construção de palhoças. Tão depreciado que muitas espécies nativas, que outrora cobriam vastas regiões, atualmente são difíceis de serem achadas. Para se ter idéia do nosso pequeno engano, certas fibras de bambu são 6 vezes mais resistentes que o aço. E o bambu foi a única espécie vegetal que resistiu às explosões atômicas nas cidades de Hiroshima e Nagazaki. O calor das bombas e as irradiações não foram páreo para o bambu. Viva o povo brasileiro!

Uma das preocupações onde trabalho é com o fogo. Aliás, são duas, chamo de f e f.: fogo e formiga. A primeira é mais devastadora, não é seletiva, destrói tudo pelo caminho, a outra, se combatida com perseverança, é controlável.

Quem trabalha com recomposição de áreas degradadas, com reintrodução de vegetação nativa e com reflorestamento de espécies exóticas no Brasil Central, no região do Cerrado, vive o drama anual, no período da estiagem, da ameaça presente do focos de incêndio.

Para tentar minimizar o avanço sobre uma área e tentar isolá-la, adotamos a abertura de um aceiro entre cercas próximas das rodovias e de locais onde passa o bicho mais perigoso de todos: o homem com um cigarrinho na mão.

Outro dia, andando e verificando a extensão do estrago ocorrido há dois anos agrícolas e fazendo conta de quanto teria que gastar para abrir 36 km de aceiro, percebi que a área naturalmente cercada por uma espécie de bambu nativo encontrava-se totalmente protegida, não apresentando qualquer indício de que o fogo havia, nem de leve, lambido o mato. E o bambu, verde viçoso, totalmente íntegro sem mostrar qualquer sinal de queimadura na sua estrutura.

Cara, pensei, é isso! Vou, depois que o mês acabar, na Embrapa Cerrados procurar informação sobre a viabilidade de cercar a fazenda com a planta de crescimento mais rápido do mundo e a mais desprezada do Brasil. E, de quebra, se o maravilhoso livro que rapidamente folheei, estiver ainda lá, vou negociá-lo com o Doutor Diogo. Garanto que seus pacientes se sentirão felizes com os exemplares de Caras.

* Carlos Secchin é um fótografo carioca que impressionado com a falência múltipla de sua cidade e com a ausência da autoridade pública, está se movimentando para as bandas do Cerrado.

  • Carlos Secchin

    Carlos Secchin é engenheiro e fotógrafo, Carioca, vive no Cerrado onde se dedica a conservar uma pequena porção deste rico bi...

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